Sobre um tal de James Joyce
James Joyce (1882-1941) foi um escritor irlandês que continua a assombrar a literatura universal e que permanece como uma ferida aberta na tradição literária que o sucedeu devido a complexidade de obras como Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Reconhecido por mesclar ficção e biografia, o autor propõe grandes dificuldades para a leitura de seus textos, pois, além das inúmeras referências internas e externas à cultura, sociedade e política da Irlanda, é importante que também se conheça a vida do escritor, pois isso joga luz sobre diversos aspectos que uma leitura desavisada ignora.
Exemplo disso aparece na relação com os familiares, com a fé cristã e com a língua inglesa, três pontos capitais que Stephen Dedalus – alter-ego e personagem de Joyce – tenta contornar em Retrato de um artista quando jovem (1916); os mesmos que o escritor problematizará em seus textos.
“Eu e meus dublinenses”
Apesar de pouco produtivo quantitativamente (Joyce escreveu pouco mais que cinco obras completas), o autor irlandês captou, ao longo de sua escrita, inúmeros retratos da sociedade de Dublin, destilados eles sob a linguagem estilisticamente pessoal e bem trabalhada. Frases que a primeira vista são simples, ganham dimensões profundas nas palavras do narrador joyceano, como no caso da frase que abre o quarto conto de Dublinenses, Eveline:
A sonoridade dessa sentença é nítida e dificílima de se traduzir para o português, por conta do excesso das consoantes S, W, V e T nas palavras, que se perdem quando passadas para o português. Ainda assim, se por um lado temos esse trabalho lindo e complexo com os termos de Joyce, por outro há um de fácil adaptação e tradução: o conteúdo das histórias.
Mesmo tratando-se de experiências vividas ao longo da primeira metade do século XX, os contos de Dubliners (1914) ainda possuem forte ressonância com acontecimentos do dia a dia nas cidades contemporâneas. A solidão, a paralisia, a morte e o suicídio, os abusos e o medo e as questões familiares são temas que orientam os pequenos contos da coletânea escrita por Joyce, e é sobre questões familiares que figuram, mais especificamente, em dois contos que falarei agora.
Entre mães e filhas
Casa de Pensão e Uma mãe (The Boarding House e A Mother, títulos originais) são duas das quinze estórias que compõem o livro Dublinenses. A relação entre mãe e filha é protagonista dos conflitos em ambos, e, de forma sutil, Joyce evidencia traços obscuros da convivência das personagens na sociedade da qual fazem parte.
Apesar de apresentarem desfechos diferentes, em ambos os contos, o “motor” que coloca o conflito principal para funcionar é o plano que as mães de Polly e Kathleen traçam para a vida das filhas. Matriarcas obstinadas, essas mães descritas por Joyce mostram-se como personagens-autoridade. As filhas, contudo, e também os outros personagens que aparecem ao longo das narrativas, configuram-se como submissas e omissas.
Tanto a Sra. Mooney, mãe de Polly, bem como a Sra. Kearney, mãe de Kathleen, casaram-se não pelos sentimentos que tinham com o cônjuge, mas pelos negócios da família. Ambas querem o bem estar próprio, tomando atitudes que não prejudiquem a imagem de madame que construíram e valorizam. Elas tratam a vida e as relações pessoais como mercadoria; além de apresentarem uma crença de que imagem e status são mais importantes que o sentimentalismo, pois dariam conta de solucionar os problemas pessoais.
Por outro lado, as filhas passam uma imagem de graça e classe e não se preocupam com a própria vida. Polly, em Casa de Pensão, escuta e executa as exigências da mãe, mesmo tendo consciência de que está sendo manipulada por ela. Kathleen, por sua vez, sempre foi tratada como um objeto de status: a mãe a preparara mandando-a jovem para um convento onde aprendeu música e francês, além de ter feito tudo para que o nome da filha fosse reconhecido por todos. Assim, as duas filhas se anulam frente a vontade de suas mães e não expressam seus desejos; seguem os planos estipulados pelas “chefes” e muitas vezes apresentam uma cumplicidade cega.
É para orientar nosso olhar, suscitando essas conclusões sobre as personagens, que o irlandês coloca pequenas passagens – pontos de singularidade – em seu texto. Esses pontos condensam muito da complexidade dos personagens, e acabam por definir o seu comportamento. No caso da Sra. Mooney, Joyce pontua que ela:
Em outras palavras, de forma objetiva e fria, precisa e apática.
A pensão e o concerto, cenários dos respectivos contos, são um microcosmo da sociedade daquela época: ou as personagens são duras – tratando de questões morais feito o facão cortando a carne – ou seriam elas o pedaço de carne a ser cortado. Assim, apresenta-se um lado cruel existente não só na forma familiar, em que não há espaço para a boa convivência entre os pares, como também na sociedade em que essas famílias existem. A culpa de tamanha crueza está no peso social, o fardo, carregado pelas mães dos contos: a açougueira que deve manter a imagem de dama, e a senhora que luta pelos direitos da filha e pelos próprios direitos.
Em uma leitura contemporânea dessas histórias, Joyce constata para nós leitores e leitoras o fato de que a mulher precisava ser forte e calculista ou a sociedade as destruiria. Mas essas são as impressões do escritor: um homem! As personagens por si só não podem falar, pois só existem nas histórias; já vocês podem muito bem extrair, da melhor forma, as próprias sobre o mundo observado por Joyce: lendo sua obra!
Você encontra, aqui, o Dublinenses!