É possível ensinar poesia? Indagações sobre poesia, ensino e filosofia

Desaprender oito horas por dia ensina os princípios

Manoel de Barros, O livro das ignorãças.

Se uma das prerrogativas da poesia é promover a liberdade – conferindo “um novo sentido às palavras da tribo”, já escrevera Stéphane Mallarmé –, não seria contraditório submeter o jovem leitor às amarras de um ensino tradicional, e ainda assim esperar que ele aprenda a ser livre, isto é, que aprenda “poesia”? E, pensando por outro lado, a poesia não deve, ou melhor, não pode ser ensinada?

Afinal, como ensinar a ser livre? — seria uma outra maneira de perguntar: como ensinar poesia, gênero dos mais conhecidos da literatura, mas simultaneamente (e infelizmente) um dos menos apreciados pelos leitores brasileiros. Foi pensando nisso que trouxemos esta publicação de fim de ano, convidando a pesquisadora e autora Isadora Urbano para discutir e refletir sobre essas questões em um texto breve, mas provocador.

Para baixá-lo e conferir, clique no botão abaixo:

“306 a 1929”, crônica por G. R. Martins

para Rafael Fava Belúzio

— Timinho difícil esse — o papai dizia, eu sem entender. Mas o diminutivo não era tanto por conta do tamanho do time – jogadores eram onze, do mesmo jeito, de um lado e de outro; ele dizia aquilo assim, porque aquele time tinha saído de lugar nenhum de dentro de Minas: “timinho”, do interior, era isso, ainda que vindo jogar na capital. A coisa do “difícil”, essa era mais fácil, porque, mesmo sendo “timinho”, a província vinha dar trabalho para a metrópole de um jeito que meu pai nem imaginava, e que mesmo eu mesmo ainda nem sei bem como, mas que, vira e mexe, aparece no gramado.

Neste ano, o time do meu pai atropelou província por província, capital por capital, e foi campeão mineiro e, agora, brasileiro, depois de cinquenta anos sem nem cheiro. Mas, para a sua decepção, eu não sou tão dado a futebol, comemorei pouco, me comovi com a derrota dos que eram menores. A verdade é que eu fico num jogo de quero e não quero saber da vitória e da derrota, jogo que me afunda e me levanta. Daí, enquanto ele comemorava a vitória, posso dizer, rebolando sobre as teclas, eu carangolava pela casa afora, mesmo que em festa de campeão seja difícil achar lugar para carangolices.

Se não são um verbo e um substantivo saborosos, uma mistura de calango, carambola e parabólica, que conheci desde há pouco. Nada eles têm a ver com futebol, eu acho; são um empréstimo útil que faço do último livro que li, que talvez nada tenha a ver comigo também, mas que, por ter gostado um tanto, vou pelo menos tentar resenhar de um jeito diferente, e timidamente, por aqui.

Título: 1929
Autor:
Rafael Fava Belúzio
Editora:
Impressões de Minas.
Ano: 2021

— Livrozinho difícil esse — eu dizia, ainda sem entender a frase muito bem. Deve ser porque também nunca fui dado à crônica, que tem lá sua coisa de futebol, e que é gênero menor da literatura. Nem sei muito bem como eu ando lendo… sei só que li as 29 crônicas que fazem 1929, e que fiquei sabendo um pouco sobre a cidade de Carangola, cidade mineira de coisa nenhuma, e que “1929” é o número do apartamento onde mora o autor do livro, na cidade grande, um tanto longe daquela Princesinha da Zona da Mata. Carangola: 50% é melancosmopolitismo. Outros 50%, carongolidade, numa conta que, quem sabe, não dá pra fechar com números bestas. A chance de vitória contra o time da casa é baixa, mas não sou matemático e nem comentarista esportivo, e, mesmo estudando literatura, o que sei eu de crônica pra falar alguma coisa sobre? Só que é um gênero menor da literatura.

— No sentido deleuziano? — perguntou minha noiva.

Não sei… Mas tem qualquer coisa no livro de disputa entre campeão do campeonato contra time que tenta evitar o rebaixamento. E qualquer outra coisa que se desprendeu de Carangola, de dentro do interior, pra ocupar meu gramado. Ontem encontrei um carangolense no pedinte do sinal, e nas crianças do playground no prédio, e outra comprando remédios com o balconista da farmácia… Nenhum deles deve conhecer Carangola, que eu saiba, mas a gente nunca sabe mesmo o que está fazendo com a nossa vida… Eu mesmo, nasci na cidade grande em que, hoje, o autor de 1929 tem morado; e vivi a maior parte da minha vida (até aqui) bem aqui. Isso, na verdade, nem tem importância nenhuma para Carangola, que não me conhece e nem precisa… Que sei eu de você, Carangola? Tanto quanto sei de crônica, que é o que me contou um livro, apenas.

Eu nunca fui até Carangola, mas acho que, algumas muitas vezes, ela veio visitar minha casa. Foi num domingo, bem no fim da tarde, na última cerveja do freezer, que congelou. Veio também numa quarta, à noite, quando li um verso de Drummond, e num outro dia, quando li um de Mário, e até num romance de Lygia Fagundes, num poema que escrevi, e detestei.

— Belo Horizonte, 2021.

Resenha – “Anos de Chumbo e Outros Contos”, de Chico Buarque de Hollanda

Chico Buarque de Hollanda é o típico caso de artista que não precisa fazer qualquer esforço para estar entre os mais vendidos e lidos na semana de sua publicação, seja com um novo disco ou mesmo com sua prosa. Recentemente, vimos o fenômeno se repetir, quando o autor carioca lançou pela Companhia da Letras uma coletânea de contos, que recebeu o instigante título de Anos de Chumbo e Outros Contos (2021), livro cuja resenha você encontra a seguir.

Do chumbo antigo ao chumbo novo

Parentes descontrolados, violentos e abusadores; crianças perversas e em situação familiar de desamparo e negligência; moradores de rua delirantes, apaixonados por tempos idos e inalcançáveis; e relacionamentos desencontrados. Composto por oito narrativas curtas e a princípio sem relação, Anos de chumbo e Outros Contos joga luz sobre um Rio de Janeiro marcado pela violência da milícia, pela corrupção e pelas ambições e frustrações amorosas e familiares, não deixando de lado, é claro, uma boa dose da comicidade – própria ao cotidiano ordinário – e também de melancolia, adequada a um senhor que viveu para ver o Brasil frustrar suas expectativas no que diz respeito à elaboração dos traumas históricos nacionais. (E que, pelo contrário, aparenta dar continuidade a esses traumas.)

O nome Anos de Chumbo sugere imediatamente uma relação com a realidade repressiva de boa parte do governo imposto pela Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985). Entretanto, na realidade pintada pelo escritor, a repressão que outrora fora exercida pelo governo militar aparece diluída e penetra todas as esferas da vida privada, na qual as decisões passam a ser tomadas muitas vezes a partir de pontos de vista egoístas e simplistas, nos quais o outro sempre aparece ou como aliado ou como inimigo definitivo do “Estado” – e aqui as palavras de Luiz XIV reverberam nas atitudes: L’état c’est moi ou, em bom português, “O estado sou eu”.

Essa escolha por “Anos de Chumbo” – título do conto-vitrine da coletânea – ostenta mais uma intenção editorial e mercadológica do que inteligência literária, uma vez que apenas o conto título traz como cenário os tempos sombrios da década de 1970, dialogando diretamente com o problema histórico nacional, ainda latente. Com toda certeza, entre os títulos que compõem o livro, é “Anos de Chumbo” o mais chamativo deles, além de possibilitar um deslocamento muito significativo, no qual a porta para o mundo contemporâneo é aberta com uma chave que também leva aos anos exílio, censura e perseguição por parte de um Estado opressor e assumidamente militarista.

A pobreza na escrita, a relevância da história

Ainda que Chico faça em Anos de chumbo e e Outros Contos uma releitura de temas caros à “alta” literatura brasileira – como a disputa de classes, o ciúme e a paixão cega, por exemplo –, esse novo trabalho me causou a mesma impressão que tenho de outras obras do autor: são boas histórias, mas não trazem consigo muito brilho próprio. Para começar, mesmo se valendo de um vocabulário invejável, achei o uso da linguagem pouco inventivo, caindo muitas vezes em descrições excessivas e desnecessárias, que parecem querer reforçar a atualidade do cotidiano dos contos, mas acabam sendo uma tentativa de perfumar a flor: máscaras de Covid, carros chiques, mesas de plástico, aeroportos etc. não espantam tanto a essa altura do século XXI quanto o autor parece supor e enfatizar. Outro ponto que me incomodou foi a construção dos personagens, que, de modo geral, não têm complexidade, cumprindo papeis que mais se parecem com tipos (na maioria esmagadora, violões, no caso dos homens, e cúmplices tolas, no caso das mulheres) do que de fato com sujeitos em si. Esse traço talvez não se aplique apenas aos narradores, que, contudo, por mais que os contos se diversifiquem, são parecidíssimos, independendo de sua idade e realidade social.

Dois dos oito contos: “O sítio” e “Cida”, para mim, são verdadeiras joias, por justamente escaparem ou pelo menos margearem os problemas que coloquei no parágrafo anterior. De todo modo, entre problemas e soluções, no fim, não acredito que a falta de capricho quanto a algumas das propriedades literárias diminua a importância do livro enquanto conjunto, ainda mais levando em conta que a obra dá continuidade a um movimento de Chico Buarque de trabalhar com temáticas mais contemporâneas (e principalmente a crise política). A obra, como coletânea, procura nos apresentar algumas das consequências da falta de elaboração do trauma histórico, e nisso ela é muito feliz, dá conta do recado, e faz a leitura não só valer a pena, como também ser necessária.

Antes de partir, queria fazer um convite a você, que tem interesse tanto pela obra de Chico Buarque, quanto pela vereda da literatura de testemunho, e principalmente aquela que trabalha com o obscuro período da Ditadura Civil-Militar brasileira. Aqui no Duras Letras, nós disponibilizamos um texto do pesquisador Alexandre Fonseca, no qual ele faz justamente uma exposição de como a literatura nacional contemporânea tem trabalhado com a(s) memória(s) da ditadura militar, publicação que traz, ainda, uma lista de indicações de leitura sobre/para o tema.

Ficou interessado? Então acesse a publicação!

Resenha – “Noites no Circo”, de Angela Carter

A contradição como fio-condutor

Apesar de ser uma escritora já consagrada no cenário literário de língua inglesa, Angela Carter não é tão conhecida no Brasil. Eu mesmo só tomei conhecimento de sua obra, porque minha companheira desenvolve atualmente uma pesquisa sobre o livro mais aclamado de Carter: A câmara sangrenta (Bloody Chamber, 1979), que saiu nos últimos anos em uma das edições da TAG – Experiências Literárias. Por esse motivo, é bem provável que você nunca tenha ouvido falar de Carter e muito menos de Noites no circo (Nights at the Circus), escrito por ela em 1984, um livro feminista de segunda onda e de estilo bastante fragmentado. Assim, com essa resenha, eu espero contribuir para diminuir essa falta que a autora faz nas prateleiras nacionais.

Ah, o circo! E que circo!!

Capa da primeira edição do livro.

Fazer uma síntese da narrativa é bem difícil, já que ela tem incontáveis deslocamentos, temporais, narrativos e espaciais. Mesmo assim, vou arriscar um resumo, pelo menos para dar um dimensão do que se trata.

Noites no circo conta a história de vida, as peregrinações e as inúmeras transformações de uma mulher-pássaro e trapezista chamada Sophie, de nome artístico Fevvers, que – acompanhada de ora irmã, ora mãe adotiva e ora cúmplice de crime, Lizzie, e de outros muitos personagens extravagantes – compõe o Circo do Coronel Kearney. Sendo a atração principal desse show exótico, Fevvers, a gigante com asas, conquista todos os jornais do último ano do século XIX, época em que a história se passa. E é justamente por conta dessa enorme midiatização e mitificação da imagem de Fevvers que o circo de Kearney desperta o interesse de um jovem jornalista estadunidense, de nome Jack Walser, disposto a atravessar o oceano, até a Inglaterra, só para fazer uma longa entrevista com a ídolo do circo, com o objetivo de responder a pergunta: você é de verdade ou você é uma farsa?

Essa tensão entre o real e o imaginário, jamais respondida, é o fio condutor da narrativa. É ela que leva Walser ao camarim de Fevvers para a entrevista e a se apaixonar pela atriz entrevistada. Leva Walser também a entrar no circo atrás de Fevvers, e a entreter uma plateia de São Petersburgo como palhaço. Leva ele, por fim, a se perder no deserto glacial da Sibéria, onde é capturado por um grupo de nativos e transformado em uma espécie de xamã. Mas a tensão também serve como síntese para as contradições de Sophie/Fevvers, que, vivendo uma vida paralela à de Walser, mas também totalmente de cabeça para baixo, é prostituta e é virgem, é mulher e é pássaro, é interesseira e é apaixonada, é violenta e é meiga, é gigante e é pequena, é loira e é morena, que voa e que não voa.

Bem, poderia dizer que constituíamos um microcosmo da humanidade, que éramos um conjunto simbólico, cada um significando uma proposição diferente no grande silogismo da vida. Os acasos da viagem nos reduziram a um pequeno grupo de peregrinos abandonados na imensidão deserta sobre os quais a imensidão deserta atuou como uma lente de aumento moral, exagerando os defeitos de uns e ressaltando as melhores características daqueles que pensávamos serem desprovidos delas. Aqueles dentre nós que aprenderam as lições da experiência já terminaram a sua viagem. Os que nunca aprenderão estão voltando aos trambolhões para a civilização o mais depressa que podem e tão bem-aventuradamente ignorantes quanto eram. Mas, quanto a você, Sophie, parece ter adotado o lema: viajar com esperança é melhor do que chegar.

Viajar com esperança de chegar

É… é a esperança o que nos leva adiante na leitura. Porque, sinceramente, é preciso ser persistente, ter fôlego, pois a sensação da obra vai de divertida, a vertiginosa, a confusa. O estilo pós-moderno da autora não segue uma estrutura tradicional e linear. Não que seja difícil, mas o caráter fragmentário faz do livro uma grande roda gigante: nos vemos diante de eventos incríveis, com narradores singulares, que nos fazem não querer largar o livro nem por um minuto – mas esses episódios se intercalam com longas divagações filosóficas, com metáforas e simbolismos malucos e de difícil entendimento, e com partes arrastadas, que parecem nunca mais acabar.

Capa da edição brasileira

De todo modo, o livro tem uma pretensão muito adequada à época em que foi escrito e à ideologia social e política da autora. No interior de uma narrativa impressionante e de uma linguagem cheia de altos e baixos, Angela Carter dilui várias ideias das correntes feministas da época, problematizando questões como o male gaze (olhar masculino objetificante), o estereótipo de gênero e a desigualdade entre mulheres e homens quanto a direitos trabalhistas. É claro que, em leituras mais contemporâneas, muitos dos pontos levantados por Carter vão parecer um pouco fora do lugar, mas ainda assim Noites no circo continua sendo uma boa literatura feminista.

Agora, o fato de ser um livro feminista não deve ser entendido como um impeditivo para você, caro leitor, não se sentir convidado à leitura. Muito pelo contrário, estar tão intensamente atravessado pelo discurso feminista de segunda onda só faz com que seja ainda mais interessante a história de Fevvers, por mais que Carter a desloque no tempo, situando os acontecimentos no século dezenove.

Mas tenho uma péssima notícia para as leitoras e leitores que se interessaram: infelizmente, a edição brasileira de Noites no circo, publicada em 1991, pela editora Rocco, está fora de catálogo há um tempo e nunca ganhou reimpressão ou reedição. O jeito é procurar a obra em alguma biblioteca ou correr na Estante Virtual, para ver se salva algum exemplar perdido em algum sebo.

Antes de encerrar a resenha, queria fazer um convite. Se você ficou com curiosidade sobre a escrita de Angela Carter, nós temos uma publicação aqui no blog que pode te ajudar. Trata-se de um pequeno conto da autora, inspirado pela história da Branca de Neve, que está entre as narrativas de A câmara sangrenta. Ainda que seja bem diferente de Noites no circo, esse conto consegue dar uma dimensão da qualidade literária da escritora inglesa.

“Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena

Três de Maio de 1808 em Madrid – Francisco Goya (1746-1828). Museu do Prado.
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya - de Jorge de Sena

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juizo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Foi apenas no ano de 2020 que comecei a “ler de verdade” o gênero poesia, quando, por acaso do mestrado, participei de duas disciplinas que se propunham a estudar (teoricamente) poemas da língua portuguesa. Não que antes disso eu lesse “de mentira”, mas a questão é que, por hábito, formação ou simples desinteresse, eu só lia da poesia o que já conhecia ou, pior, só aquilo que pulasse no meu colo e implorasse por minha atenção. Enfim, o poema acima – Carta aos meus filhos sobre o fuzilamento de Goya – estava entre os apresentados em uma das disciplinas e, tendo lido tantas e tantas vezes, e encarado a tela de Goya que inspirou a escrita de Jorge de Sena, aceitei de que se trata de um dos meus poemas favoritos.

Conto – “O Flautista de Hamelin”, dos irmãos Grimm

Era uma vez, às margens de um grande rio no norte da Alemanha, uma cidade chamada Hamelin. Os cidadãos de Hamelin eram pessoas honestas e viviam felizes em suas casas de pedras cinzentas. Ao longo dos anos, a cidade se tornou bem rica.

Então, um dia, uma coisa extraordinária aconteceu para perturbar a paz.

Hamelin sempre teve ratos, vários deles. Mas, até então, nunca foram um perigo, pois os gatos sempre resolviam o problema da maneira usual: matando-os. Porém, de repente, os ratos começaram a se multiplicar.

No fim, um mar negro desses roedores infestou toda a cidade. Primeiro, eles invadiram os celeiros e armazéns, então, por falta de algo melhor, mordiam a madeira, os tecidos e qualquer outra coisa. A única coisa que não comiam era metal. Os cidadãos, aterrorizados, se uniram para pedir aos conselheiros de Hamelin que os livrassem da praga. No entanto, por um longo tempo, o conselho ficou sentado na sala do prefeito, tentando pensar em um plano.

— O que nós precisamos é de um exército de gatos!

Mas todos os gatos estavam mortos.

— Nós colocaremos veneno na comida, então…

Contudo, a maior parte da comida já havia acabado, e nem mesmo o veneno parou os ratos.

— Isso não poderá ser feito sem ajuda! – disse o prefeito, com tristeza.

Foi então que, naquele momento, houve uma batida alta na porta. Quem poderia ser?, os patriarcas da cidade pensaram com ansiedade, cientes das multidões raivosas. Eles cuidadosamente abriram a porta e, para a sua surpresa, lá estava um rapaz alto e magro, vestido em cores fortes, com uma longa pena em seu chapéu e apontando uma flauta dourada na direção deles.

— Eu libertei as outras cidades de besouros e morcegos – o estranho anunciou — e, por mil florins, irei libertá-los de seus ratos!

— Mil florins!? – exclamou o prefeito. — Nós te daremos cinquenta mil se você tiver sucesso! E prontamente o estranho se afastou, dizendo:

— Está tarde agora, mas, ao amanhecer, não haverá um rato sobrando em Hamelin!

O sol ainda estava baixo no horizonte quando o som de uma flauta ressoou pelas ruas de Hamelin. O flautista vagarosamente fez o seu caminho por entre as casas, enquanto os ratos o seguiam. Eles saíam por portas, janelas e calhas, ratos de vários tamanhos, todos atrás do flautista. E, enquanto tocava, o estranho marchava em direção ao rio, para o meio da corrente. Atrás dele, a onda de roedores que o seguiu se afogou, e os bichos mortos foram levados pela corrente do rio.

Quando o sol já estava alto no céu, não havia um rato sequer na cidade. Houve uma alegria maior ainda na prefeitura, até que o flautista veio pedir o seu pagamento.

— Cinquenta mil florins? – exclamaram os conselheiros.

— Nunca! — Mil florins, ao menos! – bradou o flautista, com raiva.

Mas o prefeito não cedeu.

— Os ratos agora estão todos mortos e não podem voltar nunca mais. Então fique grato por cinquenta florins, ou você não receberá nem isso.

Os olhos do flautista brilharam de raiva e ele levantou o dedo, ameaçando o prefeito: — Você se arrependerá amargamente de ter quebrado a sua promessa – disse, e então desapareceu.

Um arrepio percorreu os conselheiros, mas o Prefeito deu de ombros e falou animadamente: — Nós economizamos cinquenta mil florins!

À noite, livres do pesadelo dos ratos, os cidadãos de Hamelin dormiram com mais tranquilidade do que nunca. Porém, quando um estranho som de flauta tocou pelas ruas ao amanhecer, apenas as crianças o ouviram. Atraídas como que por mágica, elas se apressaram para fora de suas casas. Novamente, o flautista caminhou pela cidade, mas dessa vez eram crianças de todos os tamanhos que seguiam o som da sua flauta excêntrica.

A longa procissão logo deixou Hamelin e fez seu caminho por entre a floresta, até alcançar o pé de uma grande montanha. Quando o flautista chegou na pedra escura, tocou a sua flauta ainda mais alto e uma grande porta se abriu. Lá dentro, havia uma caverna. As crianças marcharam para dentro dela, atrás do flautista e, quando a última criança entrou na escuridão, as portas se fecharam.

Um grande desabamento veio e bloqueou a entrada da caverna para sempre. Apenas um pequeno e mirrado menino escapou deste destino, e foi ele quem contou o que havia acontecido aos cidadãos assustados, que procuravam por seus filhos. E, não importava o que eles fizessem, a montanha nunca desistiu de suas vítimas.

Muitos anos se passaram até que vozes alegres de outras crianças voltassem a correr pelas ruas de Hamelin. A memória da dura lição permanecia no coração de todos e era passada de pai para filho através dos séculos.


A história que publicamos hoje integra as narrativas coletadas e escritas pelos famosos Irmãos Grimm, que, no século XIX, montaram uma coletânea recheada de incontáveis contos de fadas famosos, muitos dos quais já até viraram filme. A versão que você leu foi retirada do livro Contos de fadas em suas versões originais (2019), organizado por Marina Avila, publicado pela Editora Wish. A tradução dos contos ficou sobre responsabilidade de Cláudia Mello Belhassof, Felipe Lemos, Kamila França, Ariane Muniz e Carolina Caires Coelho.

Resenha – “Laços”, de Domenico Starnone

Vidas derramadas, laços que as retém

Laços é um romance de Domenico Starnone, escrito em 2014, vencedor do Bridge Prize de 2015. É uma obra curta e simples – mas, ao mesmo tempo, de uma complexidade extraordinária –, que retrata os dramas de uma família comum em meio a encontros, desencontros, contenções e pulsões, segredos e revelações.

Casados há mais de meio século, Aldo e Vanda vivem juntos carregando o peso do passado, que é refletido em sua relação a todo momento. Aldo pisa em ovos, Vanda é muito rígida, os filhos já não estão presentes em casa e o passado precisa descarregar no presente suas tensões. Ao chegarem de uma viagem de férias, o casal encontra sua casa revirada: tudo destruído, nada roubado, um gato desaparecido, as paranoias se formando e, em meio à bagunça, o “pecado” escancarado. Agora, Aldo está frente a frente com os danos que sua paixão por outra mulher causou em si e em sua família, com as dores escondidas nas profundezas da relação latentes outra vez – ou pela primeira vez.

Você me matou há tempos, e não no meu papel de esposa, mas como ser humano que estava em seu momento mais pleno e sincero.

A história é dividida em três partes: na primeira, temos acesso às cartas que Vanda escreve para Aldo quando ela e os filhos são abandonados; já na segunda, a história é contada por Aldo, em viagens entre o presente e o passado; por fim, a terceira parte traz a liberação de todas as mágoas que Anna e Sandro, filhos do casal, guardam dentro de si. E assim, com uma narrativa não linear e contada com perspectivas muito distintas, conhecemos sobre os dramas internos e externos que consomem cada um dos personagens.

Você disse para si mesmo desde o início: preciso recuperar minha vida, ainda que isso os destrua.

Minhas impressões

Meu primeiro contato com a obra foi muito feliz: gostei da forma como conhecemos tão profundamente Aldo e Vanda, de como os julgamentos se dissolvem e solidificam a todo momento, de sentir as imperfeições inevitáveis na esfera familiar. É uma obra que conta muito em poucas páginas, que esconde segredos por todos os cantos, e nós leitores nos tornamos a caixa onde tudo é despejado e, depois, trancado. Também me agradou a forma como somos apresentados aos filhos de Aldo e Vanda: Anna e Sandro, agora crescidos e munidos dos traumas causados pela relação conflituosa de seus pais.

Nossos pais nos destruíram. Os dois se instalaram em nossas cabeças, não importa o que a gente diga ou faça, continuamos obedecendo a eles.

Outro ponto que achei surpreendente foi o final. Não o final previsível de uma família disfuncional que permanece unida por laços que sufocam, mas o fim do mistério que envolve a destruição da casa que desencadeia todos os conflitos novamente.

Laços é uma obra que esconde muitas informações, prontas para serem interpretadas pelo leitor atento e curioso. Remete às matrioscas (bonecas russas que se “escondem” umas dentro das outras), com um segredo revelando um sentimento, que revela um fato, que revela suposições e, quando o ciclo se esgota, tudo é guardado novamente, uma coisa dentro da outra, contidas e prontas para serem reveladas em outro momento.

Em toda casa há uma ordem aparente e uma desordem real.

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