“The pasture” de Robert Frost

THE PASTURE
(O pasto)

I’m going out to clean the pasture spring;
I’ll only stop to rake the leaves away
(And wait to watch the water clear, I may):
I sha’n’t be gone long.—You come too.

I’m going out to fetch the little calf
That’s standing by the mother. It’s so young,
It totters when she licks it with her tongue.
I sha’n’t be gone long.—You come too.

Eu vou sair: limpar o novo pasto;
é só varrer, nenhuma folha fica
(e posso ver a água clara e rica):
não vou demorar. — Vem também.

Eu vou sair: pegar o bezerrinho
que fica junto à mãe. Recém-nascido,
tropeça quando seu corpo é lambido.
Não vou demorar. — Vem também.

Tradução: Gabriel Reis Martins


Análise

Publicado pela primeira vez por Robert Frost (1874-1963) no livro North of Boston (1914), “The pasture” é um poema composto por apenas oito versos, que apresentam imagens precisas, sintetizando e demonstrando de maneira clara alguns aspectos temáticos e estilístico utilizados com frequência pelo poeta americano ao longo de sua vasta obra.

Com métrica e estrutura muito bem determinadas e diegeticamente pastoril e sazonal, “The pasture” não propõe uma mistura tão intensa entre as formas literárias lírica, épica e dramática – diferente do que acontece, por exemplo, em “The death of the hired man” e na maior parte dos outros poemas de North of Boston. Além disso, ele é o menor dentre os textos que compõem essa coletânea, atravessada por poemas longos, que chegam a passar as cinco páginas de extensão.

Em síntese, trata-se de um texto pequeno, direto e preciso; de fato, uma entrada muito bem armada para o conjunto poético ao qual pertence. E, já que não acredito na possibilidade de estar à altura do original (abaixo e à esquerda), espero que essa humilde tradução que elaborei seja também uma boa vitrine, para que você corra atrás de outras cabeças que correm soltas pelo pasto de Robert Frost.

Sobre o som

Dividido em duas quadras, o poema foi feito a partir de uma estrutura fixa que se repete, o que sugere um espelhamento dos dois únicos blocos do poema. Essa estrutura é composta por um verso branco, por dois versos rimados e por um refrão (o verso final de cada quadra), que coincide em forma e em sentido em cada uma delas. Enquanto esse se trata de um octossílabo, os outros três primeiros versos de cada quadra foram compostos como decassílabos, montando um esquema simples 10-10-10-8, que acontece duas vezes.

Se por um lado essa estrutura rígida auxilia a tradução, delimitando um espaço adequado à recriação do texto em português; por outro, cria algumas dificuldades, uma vez que o inglês, diferente de nossa língua, apresenta uma maior maleabilidade das sílabas poéticas, com palavras que se aglutinam e preservam uma gama lexical variada, perdida na transição de uma língua à outra.

Outro ponto de difícil tradução são as paronomásias (principalmente, rimas e aliterações) escolhidas por Frost. Observamos, a título de exemplo, uma repetição constante de fonemas e de vogais, como nas plosivas do primeiro verso (t e p); as alveolares do segundo (l e r); do som da vogal w, no terceiro; e da nasal (on), presente em sha’n’t, gone, long e come, do verso refrão. Quanto às rimas, ambas relacionam palavras de classe gramatical diferente e de difícil aproximação em português: a primeira, away (para longe, advérbio) e may (posso, verbo); e a segunda, young (jovem, predicativo) e tongue (língua, adjunto adverbial).

Um detalhe que se soma a esses, e que torna ainda mais interessante a forma desse poema, é o movimento de “versar”, de ir e voltar, presente em quebras de sentido (como na passagem do quinto para o sexto verso), mas também na antecipação dos fonemas principais, feita pela palavra final de cada frase, em relação ao verso seguinte.

Sobre o sentido

Para fazer uma análise mais atenta de cada verso, vou propor uma tradução literal de seu sentido, tentando com isso esclarecer ao mesmo tempo o poema em inglês e a proposta de tradução mostrada antes. Primeiro, vou analisar todos os versos decassílabos do poema, para só então trabalhar com o refrão. “O pasto” (a essa altura já podemos tratá-lo com nome traduzido), como vimos, começa com a seguinte sentença:

I’m going out to clean the pasture spring

Eu estou saindo para limpar o pasto primaveril

Nessa abertura, temos a exposição de uma tarefa a ser cumprida, tendo chegado uma nova estação, a primavera: limpar o pasto. Porém, sob o significado restrito desse trabalho, parece se esconder a ideia do renascimento, da atmosfera cíclica da natureza, expressa sobretudo na palavra spring (primavera/primaveril), uma das chaves de leitura para todo o conjunto de textos de North of Boston. Essa estação, subsequente ao inverno – que é tempo de reclusão, melancolia e descanso – pode ser lida como signo de nova vida, da chegada de outro tempo e de novos trabalhos.

Mas, se você voltar à tradução que propus (a não literal), vai perceber que suprimi essa palavra quase essencial de minha versão do poema. Justifico essa ausência lembrando que, em um país como o Brasil, cujas estações não possuem diferenças tão claras, a palavra primavera ou primaveril, além de tomar um número antipático de sílabas, não causaria o mesmo impacto que possui no texto original, demandando uma nota de rodapé ou algo similar a isso que a justificasse. Tomei a liberdade de usar o adjetivo novo, que não traz a mesma precisão da palavra primavera, mas que deixa o texto mais compatível com um cenário brasileiro.

I’ll only stop to rake the leaves away

Só vou parar para varrer as folhas

Aqui percebo uma guinada mais objetiva, passando para uma explicação precisa do que será feito pelo eu do poema, seu trabalho, agora nomeado. Limpar o pasto significa, principalmente, varrer suas folhas, gesto que é contraposto no verso seguinte, no qual se complementa e expande o sentido do ofício na fazenda a uma dimensão também de descanso e contemplação:

(And wait to watch the water clear, I may):

(E posso esperar para ver a água clara)

Trabalha-se, mas pode-se também desfrutar da beleza da natureza, e o próprio uso dos parênteses reforça esse outro lado dos ofícios campestres, esse bônus para o ônus de varrer as folhas. O mesmo se dá nos três primeiros versos que abrem a segunda quadra:

I’m going out to fetch the little calf
That’s standing by the mother. It’s so young,
It totters when she licks it with her tongue.

Eu estou saindo para pegar o pequeno bezerro
Que está parado perto da mãe. É tão jovem,
Cambaleia quando ela o lambe com a língua

O trabalho de sair para ater o garrote é cortado pela admiração da cena matrimonial animal, interrupção que hoje pode até mesmo ser encarada a partir de uma lógica crítica aos trabalhos do campo e ao carnismo. Anacronismos à parte, essa mudança da instância do trabalho para a do lazer/prazer também acontece de alguma maneira em nível formal, sendo o padrão de rimas um de seus índices, levando de pasture spring e little calf até away/may e young/tongue.

Agora, o último verso, repetido no fim de cada uma das quadras, nos traz/faz um apelo, para que acompanhemos o eu do poema em seu jogo entre trabalho e prazer, entre produzir e desfrutar no pasto. A repetição funciona como sugestão do espelhamento dos dois blocos que compõem o texto e, apesar de parecer um convite despretensioso, é também uma confirmação da companhia, uma vez que a frase não é feita em forma de pergunta, mas de afirmação:

I sha’n’t be gone long.—You come too.

Não ficarei fora por muito tempo. – Você vem também.

A possível agressividade do pedido de companhia se dissolve ao longo dos versos anteriores a ela. Parece não haver dúvidas de que se trata não apenas de um bom companheiro (esse que convida), mas também de que será uma visita agradável ao universo do eu do poema e, metapoeticamente, do autor. A isso, somo o tom coloquial que Frost empresta a seus versos, criando joias a partir das pedras e dos cactos, dos cacos da língua, truncado nossas tentativas de captar ao mesmo tempo o som e o sentido.

Seria possível traduzir com precisão todos os elementos e também a narrativa? Ou estaria Frost certo, ao colocar que a poesia é o que se perde na tradução? Bom, alguma coisa realmente se perdeu em minha tradução (seja a literal, seja a literária), uma vez que a estrutura construída pelo poeta corrobora o contexto apresentado no poema, em uma relação simbiótica difícil de contornar e reproduzir. Porém, onde velhas relações desaparecem, as novas tomam seu lugar, e onde se lia spring, se tem novo, o que, se não servir como correspondente ideal, pelo menos traz um gostinho do molho da baiana, para o prato do Tio Sam.


Como já mencionamos em outro post, Robert Frost (1874-1963) não é um autor com grande circulação editorial no Brasil, tendo sido publicado em apenas uma edição, de 1969: Poemas escolhidos de Robert Frost; além de ter o livro A Boy’s Will (1913), disponibilizado integralmente na internet, sob o título de Ímpeto de menino (2012), traduzido por Ana Cristina Gambarotto, em sua dissertação.

Qual ler primeiro: Ilíada ou Odisseia?

Essa provavelmente é uma das perguntas que todo leitor dos clássicos já se fez ou fez para algum colega ou conhecido que já encarou a Ilíada e a Odisseia, ambas obras primas assinadas pelo grande poeta grego, Homero. O objetivo desse post é responder à questão de forma rápida e precisa, além de explicar, muito brevemente, do que se trata cada uma dessas narrativas épicas.

Por onde começar?

Bom, começo essa conversa dizendo que não existe uma “ordem necessária” para você iniciar a sua leitura: pode pegar tanto a Ilíada, quanto a Odisseia para ler; são clássicos que, mesmo comunicantes entre si, não se prendem um ao outro. Isso se dá de maneira que as narrativas funcionam de forma independente e, ainda que apresentem eventos diretamente relacionados, em vários momentos do texto são trazidas as informações necessárias à compreensão do leitor.

Pelo fator cronológico

I

Contudo, se você procura ler respeitando a cronologia da mitologia à qual pertencem essas duas histórias clássicas, comece pela Ilíada, história que aconteceu antes dos eventos cantados na Odisseia.

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Nessa narrativa, você vai acompanhar, ao longo de vinte e quatro cantos (ou capítulos, se preferir), os dramas vividos pelos gregos – aqueus, ageus ou argivos – e pelos teucros, ou troianos, que se enfrentam durante mais ou menos uma semana, no décimo ano da guerra que a Grécia levou até Troia.

No texto, tudo começa quando Aquiles, o herói mais notável de todo o exército grego, decide deixar a batalha contra os troianos, por conta de um grave desentendimento com Agamenão, anaxandrom, rei sobre os homens, senhor dos senhores. Essa intriga dos dois heróis é um gatilho que desencadeia tanto uma reviravolta no campo de batalha, com as derrotas sucessivas dos gregos, quanto uma viravolta entre os deuses do Olimpo, que participam ativamente da guerra, tomando o partido de uns ou de outros.

Você conhecerá guerreiros apaixonantes, como Heitor e Pátroclo, Diomédes e Odisseu, os dois Ajazes, enfim… mas não se enganem: na Ilíada, você não vai encontrar nenhum cavalo de madeira, nem a queda de Troia e muito menos vai saber como essa história acaba. Para isso, você vai precisar ler a Odisseia, ou as outras narrativas que contam sobre fragmentos diversos desse longo episódio do mundo grego (um desses textos, a título de curiosidade, é a Posthomerica, que ainda não tem tradução para o português e que conta os episódios subsequentes à Ilíada).

Mas vamos ao caso específico da Odisseia!

II

A Odisseia dá seguimento à narrativa da Ilíada, mas sua história nos leva para outros lugares, bem distantes de Troia: vamos dos cenários paradisíacos, conhecidos e enfrentados durante os dez anos de viagem pelos quais passou Odisseu; até a ilha de Ítaca, terra natal do herói que tem papel fundamental na guerra contra os troianos, sendo muito inteligente e engenhoso, inclusive abençoado pela deusa da estratégia, Atena. Na ilha de cenário árido e pedregoso, conheceremos Telêmaco, filho e herdeiro do guerreiro grego, que, junto de Penélope, sua mãe, espera ansioso pelo retorno do pai, Odisseu, que estava na guerra contra os troianos, mas demora mais do que devia em voltar.

A essa altura, inúmeros casos que não aparecem nem na Ilíada e nem na Odisseia já se desenrolaram: Aquiles já foi atingido por Páris no calcanhar; Troia já foi destruída; Eneas já partiu para novas terras; Agamenão já foi morto pelo amante de sua esposa, Clitemnestra, que foi morta por seu filho, Orestes, etc. etc. etc. Com isso, temos o drama da Odisseia centrado nos problemas enfrentados pela família de Odisseu e por ele próprio, nas muitas aventuras que o herói relata para Alcinoo – rei dos feáceos – sobre os deuses e as deusas, o Ciclope, os monstros marítimos e seus tantos fracassos na tentativa de voltar para casa.

É interessante observar como a Ilíada ocorre no tempo de apenas alguns dias, enquanto a Odisseia se estende por anos, o que marca também o estilo adotado nas duas obras, sendo a primeira uma narrativa linear e a segunda de estrutura cíclica. Além disso, se lida depois da Ilíada, as referências da Odisseia se tornam mais claras e prazerosas, pois, finalmente, descobrimos que fim levaram muitos dos heróis gregos que marcharam contra Troia, se encontraram ou não um fim trágico, na guerra ou fora dela.

A questão da leitura

Epero que, com isso, suas dúvidas estejam respondidas e que você já queira velejar por entre Cila, sereias e Calipso; ou guerrear ao lado de Odisseu, Diomédes, Aquiles e Heitor! Nós não prometemos que a viagem será tranquila, porém, com uma boa nau e conhecendo os ventos, qualquer trajeto pode ser cumprido, mesmo que, como o do nosso nobre herói Odisseu, isso demore mais de dez anos.

Sendo bem sincero e fugindo um pouco da pergunta principal, Ilíada e Odisseia são textos complexos, com uma tessitura narrativa densa, cheia de detalhes e pequenas conexões internas, escritas em verso, com vários traços sutis de uma cultura que chegou para nós às migalhas. Isso, muitas vezes, pode assustar os navegantes de primeira viagem. Mas, se você está decidido a encarar a tarefa árdua da leitura, aqui no Duras Letras nós temos um pequeno manual, que pode ajudar com os preparativos da sua embarcação.

Ele trata de uma edição específica dos cantos gregos de Homero, feita por Carlos Alberto Nunes, em uma tradução brilhante, que procura preservar o verso tradicional da língua de Homero. Essa edição dos dois livros foi publicada em box e lançada pela Nova Fronteira. Acrescento que, se for para começar de algum lugar, que seja por uma boa edição e uma boa tradução, pois essas histórias não merecem menos do que isso.

6 romances essenciais da Literatura Brasileira

Aposto que, quando abriu este post, você já foi logo se adiantando:

– Devem ter colocado Dom Casmurro, Grande Sertão: veredas, Vidas Secas, Fogo morto, Um copo de cólera, Dois irmãos ou, sei lá, Iracema.

É claro que essas obras, graças ao fantástico domínio da linguagem, pela extrema importância e diálogo com nossa história e também por conta das narrativas apaixonantes que nos apresentam, frequentemente recebem lugar de destaque em qualquer lista de clássicos da literatura nacional e, de vez em quando, até internacional.

Contudo, se você veio apenas para confirmar suas suspeitas, procurando essa boa e velha lista de livros canônicos, não vai encontrá-la por aqui!

Na verdade, os livros que compõem a listagem que montamos a seguir também estão entre as GRANDES obras da literatura brasileira, tão brilhantes quanto as que foram supracitadas. Só que, diferente daquelas, essas outras guardam dois traços que as diferenciam: o primeiro é que não aparecerem com frequência em catálogos de indicação literária; em segundo lugar, são todas obras escritas por ESCRITORAS, características que tornam essa lista duas vezes mais instigante.

Vamos conferir?!

1) Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Começamos por Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, obra que conta a história de uma jovem que dá nome ao livro e que deseja viver livremente uma aventura de amor com Tancredo. Mas, ligados à uma sociedade marcada pelo atraso da escravidão e do patriarco, eles são impedidos de realizar essa união.

Pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.

Colocada à margem da literatura nacional de seu tempo por ser mulher e por ser negra, Maria Firmina dos Reis demonstra um grande interesse pelas questões ligadas à sociedade colonial brasileira, utilizando-se da forma literária para desconstruir os paradigmas de sua época, sustentada por uma estrutura falida, de uma realidade em constante, mas lenta, transformação.

É impressionante saber também como os problemas confrontados pela autora não se restringem apenas ao ambiente em que se passam suas história: alguns estudos demonstram que, por não estar alinhada com a temática nacionalista dos romantistas contemporâneos à ela, Maria Firmina foi constantemente silenciada, ficando a cargo de estudos mais recentes recolocá-la em sua merecida cadeira dentro do cânone nacional.

2) Parque Industrial, de Patrícia Galvão (Pagu)

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O segundo romance foi publicado por intermédio de Oswald de Andrade e sob o pseudônimo de Maria Lobo: Parque Industrial, de Pagu, tido como um dos primeiros romances proletários do Brasil. Nele, a autora reflete a condição dos operários da nova sociedade industrial paulista, das décadas de 1920 e 1930, colocando no centro do debate temas ligados ao amor, ao sexo e ao capital, e como os desejos das personagens são afetados pela realidade industrial precária.

Diferente da tradição corrente de sua época, que debatia principalmente os regionalismos brasileiros (com a aparição das principais obras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e outros), Pagu preservou bastante da veia modernista paulista e manteve a capital financeira do Brasil no centro da discussão literária e social nacional.

É uma leitura bem fluida que reafirma a importância do debate sobre classes sociais no Brasil, isso sem deixar de lado o estilo autêntico e forte da escritora paulista.

3) Água funda, de Ruth Guimarães

A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada.

Agora, vamos para o primeiro romance de Ruth Guimarães, publicado no mesmo ano de Sagarana, de Guimarães Rosa, 1949. Diferente da obra do autor mineiro, Água funda não traz um léxico inventado a partir da plasticidade do falar interiorano; na verdade, Ruth faz uma reconstrução etnográfica minuciosa da língua portuguesa falada na região em que se passa a história: no sul de Minas Gerais, na fazenda Olhos D’água.

Em uma narrativa que embaralha o tempo e as personagens, indo do período escravocrata até os anos 1930, o leitor percorre a história de Mãe de Ouro, Sinhá, Joca e outros personagens, todos eles marcados por discursos marginalizados pela História, como narrativas tradicionais, ditados e superstições populares.

4) Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles

Esta obra de Lygia Fagundes Telles é um pouco mais conhecida que suas antecessoras. Teve duas adaptações para a televisão, feitas pela Rede Globo, a primeira de 1981 e a segunda de 2018. É um dos livros mais emblemáticos e conhecidos de Lygia Fagundes Telles, no qual a autora explora temas sensíveis, em uma sociedade patriarcal e preconceituosa em vários sentidos.

No livro, o leitor acompanha duas facetas de Virgínia: a primeira, a de uma criança de infância difícil, de pais separados, e que não consegue se encaixar no grupo dos seus amigos Letícia, Afonso, Conrado, Otávia e Bruna, que, como os anões no jardim da casa de Natércio, não deixam espaço para que ela entre na roda, na ciranda. A segunda face é de uma Virgínia adulta e amadurecida, que, após passar por um colégio de freiras, retorna para a casa de Natércio e começa a descobrir que todo aquele mundo completo que não deixava espaço para ela tem lá seus graves problemas e contradições.

5) Quarto de Despejo, de Maria Carolina de Jesus

Quarto de Despejo é o típico livro que dispensa apresentações, pois possui uma circulação e influência no universo literário brasileiro que o coloca ao lado de clássicos como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. O livro de Maria Carolina de Jesus é um reprodução de seus diários, em que são narrados eventos de uma odisseia cotidiana das comunidades pobres de São Paulo, de maneira crua e precisa.

O relato, habitado pela relação entre o ficcional e o concreto, nos apresenta as angústias de uma vida marcada pela dor, pela fome e pelas transformações agressivas feitas nas favelas naquele momento. Além disso, o estilo diarístico e confessional de Carolina de Jesus fez o livro flutuar entre as mais diversas categorias literárias: indo da literatura de testemunho até a literatura das vozes subalternizadas.

6) Rakushisha, de Adriana Lisboa

Para terminar, elenco aqui um romance contemporâneo, escrito por Adriana Lisboa – autora que vem ganhando cada vez mais destaque na cena literária nacional e que se nos apresenta como uma leitora atenta das tradições literárias nacionais e internacionais – uma forte candidata ao cânone brasileiro.

Em Rakushisha, observamos o desenrolar da história de Haruki, desenhista carioca e descendente de japoneses, que, ao ser convidado por sua ex-parceira para ilustrar um livro de poemas do haicaista Matsuo Bashô, se vê obrigado a visitar o país pelo qual nunca se interessou, mas a que sempre esteve ligado: o Japão. Mas, talvez receoso em seguir sozinho nessa viagem, ele convidou subitamente a estranha Celina para acompanhá-lo, depois de se encontrarem pela primeira vez em um metrô qualquer, de um dia como qualquer outro.

A autora a partir disso nos conduz através da jornada dos dois personagens em terra estrangeira, recheando a narrativa com uma linguagem de lirismo agudo e preciso, na qual as vozes se embaralham e variam entre os protagonistas, que contracenam inclusive com o próprio poeta japonês Bashô.

Nesta noite
ninguém pode
deitar-se: lua cheia.

A presença desse livro nessa lista é também uma provocação, sendo ele um livro do novo milênio, ainda não entendido pela crítica como clássico da literatura brasileira. De toda forma, sua narrativa e linguagem tocam questões que sempre estiveram presentes em nosso universo literário, como a identidade nacional e o que a constitui; além disso, ele nos ajuda a entender questões de nosso próprio tempo – a solidão, a perda, a depressão –, sem deixar de lado uma qualidade própria aos clássicos da literatura.

Miso no oto

Com isso, terminamos nossa pequena lista, sabendo, é claro, que muitas autoras maravilhosas, também canônicas, ficaram de fora. Poderíamos acrescentar, por exemplo, Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Hilda Hilst, Maria Valéria Rezende, Ana Maria Gonçalves… nomes que não apareceram, mas que facilmente poderiam ser colocadas. Quem você acha que faltou?

Perdoadas as faltas, esperamos que a intenção principal deste post tenha se cumprido: conseguimos cutucar um pouco essa tradição tão difundida, de colocar apenas os escritores, e frequentemente os mesmos, nas listas de grandes romances da literatura brasileira?

5 contos clássicos de ficção científica para se apaixonar pelo gênero

Olá! E bem-vindos ao primeiro post do Duras Letras em 2021! Para abrir o ano com chave de ouro, especialmente de um 2020 tão surreal como todos sabemos que foi, proponho aos queridos leitores uma breve lista de 5 contos de ficção científica escolhidos a pente fino – só a nata da nata!

E se você ainda tem dúvidas se o gênero ficção científica é para você, saiba que essas são algumas das melhores histórias para tirar a prova, selecionadas a dedo para impressionar até os leitores mais exigentes! Vamos lá?

1. “Razão” (1941), de Isaac Asimov

O primeiro conto da lista é Razão (do livro “Eu, robô”), do consagrado Isaac Asimov, em que acompanhamos a tentativa de um androide de compreender sua própria origem e propósito. Recém-construído por dois humanos numa estação espacial, o robô não acredita que seres cuja inteligência fosse tão menor que a dele próprio pudessem tê-lo criado, a despeito das inúmeras evidências que seus criadores apresentam para convencê-lo do contrário.

O conto é instigante por levantar reflexões sobre a relação entre criador e criatura, aí inserido o debate sobre o criacionismo e a fundação das religiões. Asimov também nos faz encarar, não sem dificuldades, a complexa situação dos postulados lógicos, que – no limite – se aproximariam muito das questões de fé. A pergunta final que o conto suscita é: como saber o que é real?

Para os amantes do ceticismo e questionadores de carteirinha, é uma ótima pedida! Se é o seu caso, clique aqui ou no botão abaixo para ler o conto completo.

“Razão”, de Isaac Asimov

2. “Vocês, zumbis…” (1959), de Robert Heinlein

O segundo conto da nossa lista é Vocês, zumbis… (“All you zombies“), que talvez conheçam por meio da adaptação cinematográfica Predestinado (Predestination). Nele, seguimos de perto o relato de Jane, um homem que, tendo nascido com os dois sexos, passou a maior parte da juventude como mulher e, após ter tido uma filha, foi transformado cirurgicamente para manter apenas os caracteres sexuais masculinos.

Ainda na maternidade, contudo, sua filha é sequestrada, e Jane, que nunca desistiu de encontrá-la, segue sua vida sem muito entusiasmo. Enquanto conta sua história para o barman com quem conversa, este revela, misteriosamente, já conhecer muitos detalhes da sua vida, e apresenta a solução para finalmente encontrar a filha, depois de muitos anos – a solução que, no fim das contas, está na origem do próprio problema, com direito a descobertas bombásticas.

Gostou? Clique aqui ou no botão abaixo para ler o conto traduzido.

“Vocês, zumbis”, de Robert Heinlein

3. “A gaiola de areia” (1962), de J. G. Ballard

O terceiro conto, “A gaiola de areia” (The cage of sand), de J. G. Ballard, presente no livro As vozes do tempo, apresenta uma perspectiva existencialista sobre os sonhos da conquista espacial.

Acompanhamos de perto a vida de Bridgeman numa Cabo Canaveral aterrada de areia marciana, onde, além dele, vivem apenas dois outros personagens: Travis, um ex-astronauta com problemas de consciência, e Louise, uma viúva cujo marido morreu no espaço. Ao longo do conto, descobrimos que os três personagens têm relação próxima com a atividade espacial, e vivem como fugitivos numa terra desertificada e contaminada. À noite, eles assistem juntos à “conjunção”, isto é, o momento em que as cápsulas de astronautas que morreram em serviço atravessam o céu como estrelas cadentes – mas também como caixões em perpétuo movimento.

Mais que pelo desenrolar do enredo, o conto nos toca por falar de questões próprias a toda a humanidade, como a solidão, a relação com a morte e o desafio de seguir em frente. Além disso, Ballard é um mestre da escrita, e suas descrições são tão vívidas e impactantes que só por elas a leitura já valeria a pena.

4. “Podemos recordar por você, por um preço razoável” (1966), de Philip K. Dick

 

 

(“We can remember it for you wholesale”, 1966)

O conto Podemos recordar por você, por um preço razoável (“We can remember it for you wholesale”), de Philip K. Dick – autor do clássico Blade Runner e outras obras de sucesso –, conta a história de Douglas Quail, um homem cujo sonho sempre foi conhecer Marte. Sendo um incompreendido e frustrado, ele recorre a uma empresa de implantação de falsas memórias para realizar esse desejo, porém, durante o procedimento, descobre-se que essa memória já estava em sua mente. A partir daí, a história se torna cada vez mais próxima de um suspense/thriller, em que seguimos junto a Quail na tentativa de saber o que de fato aconteceu e como ele está envolvido nessa história. Para quem curte narrativas com muita ação, surpresas e reviravoltas, a história de Dick é imperdível.

O conto faz parte da coletânea “Minority Report – A Nova Lei”, e foi adaptado para o cinema no filme “O vingador do futuro” (“Total Recall”), que ganhou uma nova versão cinematográfica em 2012. Outro filme que trabalha a questão da implantação (ou, no caso, remoção) de memórias e que vale a pena conferir é “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, do impecável Charlie Kaufman.

 

5. “Superbrinquedos duram o verão todo” (1969), de Brian Aldiss

 

 

(“Supertoys last all summer long“, 1969)

Chegamos ao último conto da nossa lista: Superbrinquedos duram o verão todo (“Supertoys last all summer long“), de Brian Aldiss, publicado no livro de mesmo título.

O conto apresenta a perspectiva de David, um menino robô cujas capacidades para amar, interagir e compreender o mundo são como as de um menino humano. Contudo, David não é amado, e embora se esforce para expressar seu afeto à mãe, Monica Swinton, ela não retribui seus sentimentos e não consegue se conectar com ele, de modo que os dois sentem a presença pesada da solidão e da incompreensão, e o único que de fato se aproxima de David é Teddy, um robô ursinho que lhe faz companhia – e que também é rejeitado pela “mãe”. Ao final do conto, o senhor e a senhora Swinton celebram o fato de finalmente terem recebido a autorização do governo para ter um filho, e paira a dúvida sobre o que será feito de David e Teddy.

O conto é singular por sua capacidade de nos levar a pensar sobre a natureza do amor, as condições de um ser para se conectar a outro e as formas nocivas com que muitas vezes tentamos preenchemos o vazio e a infelicidade de nossas vidas, sem nos atentar para como isso pode causar sofrimento a outros seres. Afinal, quem é mesmo capaz de amar?
Também este conto foi levado às telas do cinema na adaptação “A.I. – Inteligência Artificial”, do diretor Steven Spielberg, uma versão que certamente vale a pena conferir.

 

Para finalizar…

 

Essa seleção foi pensada com carinho especialmente para as pessoas que têm curiosidade com ficção científica, mas pouca disposição para quebrar a cabeça tentando achar sozinhas aquilo que vale à pena. Não quer dizer que sejam as únicas: na verdade, existem muitas outras histórias legais por aí, esperando apenas ser encontradas. Espero que esse post tenha ajudado a entender que ficção científica não é só sobre robôs, astronautas, marcianos e raios-laser, mas sobre a nossa realidade, identidade e questões fundamentais, ficcionalizadas em outros universos possíveis. E aí, qual você vai ler primeiro?

 

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