Sula Peace, uma megera? Questões de amizade e sexo em “Sula”, de Toni Morrison

Toni Morrison, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993 e autora de Sula

Se você ainda não conhece, Sula (1973) é um romance de Toni Morrison, recentemente trazido para o público brasileiro pela TAG Curadoria – por indicação da grande Conceição Evaristo!
O romance acompanha a fundação do Fundão, uma comunidade negra situada em Medallion (cidade ficcional em Ohio, nos Estados Unidos), marcada pela camaradagem tanto quanto pela violência, a luta pela sobrevivência e a solidão daquelas pessoas.
Ali começa a história da família Peace, que acompanha as vidas de quatro mulheres cujos caminhos são entrelaçados uns aos outros: as três gerações da família Peace – Eva, Hannah e Sula – e a melhor amiga de Sula, Nel Wright.

Capa da primeira edição de Sula

Criada numa casa movimentada e abarrotada de gente, Sula cresce num profundo isolamento, cuja única exceção é a presença reconfortante da amiga, Nel. Unha e carne, as duas chegam à vida adulta compartilhando as mais duras experiências, enfrentando a violência dentro da própria comunidade, as desavenças familiares e as mortes que estão sempre acontecendo ao seu redor.

Porém, depois de adultas, seus caminhos divergem: enquanto Nel se casa, tem filhos e se torna uma mulher de família, Sula sai de Medallion para fazer faculdade e conhecer o mundo, e assim como a mãe, Hannah, não se apega a nada nem a ninguém.

Dez anos depois de sua partida, Sula retorna à cidade natal, onde sua presença se torna um estorvo cada vez maior, dadas a sua arrogância e seu desprezo pelos laços matrimoniais. Exercendo intensamente o potencial de sua liberdade, Sula destrói os laços mais caros de sua existência, cujo destino é uma solidão cada vez mais acentuada.

A cidade, então, transforma Sula em uma Geni (vocês sabem, a Geni do Chico: “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni”), fazendo com que a protagonista seja alvo de uma série de superstições e fofocas maliciosas: nem sempre falsas, quase nunca verdadeiras. Rejeitada pela comunidade, sua única companhia são os parceiros com quem se deita, frequentemente casados ou comprometidos – o que, logicamente, não contribuía muito para a sua popularidade entre as mulheres locais.

“Ela ia para a cama com homens na maior frequência possível. Era o único lugar onde achava o que procurava: sofrimento e a capacidade de sentir profunda tristeza.”

Sula, então, assume o papel da megera perversa: achincalhada pelas mulheres e temida pelas crianças; amada apenas pelos homens, mas somente enquanto dura a paixão de seus corpos. Nem família, nem amigos, nem amores – ninguém capaz de compreender sua forma perigosa de existir e de pensar. Por isso mesmo, Sula é uma eterna estranha, que por escolha própria se exila do pacto social e da vida em comunidade.

“Você monta no pônei e a gente raspa a bosta”?

Morrison, em seu brilhantismo de escrita, não nos autoriza a crer que sua protagonista seja apenas uma vilã implacável, uma destruidora de lares perversa e maquiavélica. Atentando para seus momentos íntimo de sensibilidade e introspecção, somos convidados a perceber o que os moradores de Medallion não poderiam jamais vislumbrar: que Sula, a despeito de seu comportamento antissocial e desagradável, não age por má-fé ou para causar intriga – Sula enxerga o mundo de uma forma diferente da que os outros o veem, de menos posse e mais liberdade.

Afinal, o desejo de Sula não é de “roubar” maridos e competir com as outras mulheres; ele passa pela defesa de uma moral que não seja pautada na exclusividade do acordo sexual, mas numa política de amizade que seja capaz de superar até mesmo a possessividade e o ciúme dos laços monogâmicos. De certo modo, o que Sula põe à prova é o limite das relações de companheirismo, evidenciando as contradições que estão no fundo das regras e acordos da vida em sociedade no que tange ao domínio do sexual.

“Depois que todas as velhas tiverem se deitado com os adolescentes; quando todas as meninas jovens tiverem dormido com os tios bêbados; depois que todos os homens negros treparem com todos os brancos; quando todas as mulheres brancas beijarem todas as negras; quando os guardas tiverem estuprado todos os presos e depois que todas as putas fizerem amor com as avós; depois que todas as bichas tiverem comido a mãe; quando Lindbherg dormir com a Bessie Smith e a Norma Shearer fizer aquilo com o Stepin Fetchit; depois que todos os cachorros tiverem fodido com todos os gatos e todo cata-vento em todo celeiro voar pelos ares para montar nos porcos… então vai sobrar algum amor por mim. E sei muito bem qual vai ser a sensação.”

A escritora Conceição Evaristo foi a curadora que indicou Sula para a TAG, em fevereiro de 2021

Sula pode não ser nenhum anjo, mas certamente também não é a bruxa má que tentam pintar a seu respeito. Se sua filosofia de vida nos é tão estranha quanto era para a população do Fundão – criando todo esse alvoroço –, é que também nós vivemos sob a égide das relações monogâmicas, românticas e idealizadas, associando o amor à exclusividade sexual de maneira muito imediata, numa construção que mal se questiona, e que se pretende passar por natural. Quem sabe não possamos caminhar para novos acordos e possibilidades de arranjos, em que para cada par (ou conjunto, que seja) a lealdade tenha seu próprio significado? Afinal, se para alguns a fidelidade é um ponto fundamental para investir em um relacionamento, para outros há valores mais importantes, como a liberdade e a honestidade, por exemplo. Que cada um saiba do seu desejo e faça o melhor que puder com ele, sem que isso precise se aplicar a todo mundo por igual. Até porque nós não somos todos iguais, e nem precisamos ser.

4 poemas inéditos de “Lua Vespertina”, de Marina Naves

Lua Vespertina, da poeta mineira Marina Naves, é, antes de tudo, a história da vida de uma pessoa qualquer contada por meio da poesia. Seu protagonista se chama Azevedo, e seus caminhos são contados pelas páginas do livro desde a tenra infância – até o momento de sua morte. Eventos detalhados não são abordados, mas sim as impressões e sensações que se tem sobre elementos comuns à vida de qualquer ser humano: a curiosidade, o crescimento, o advento da maturidade, o amor, a melancolia, a tristeza e o medo. As fases da vida do protagonista acompanham as fases da Lua (começando, portanto, no nascimento – a Lua Nova – , e culminando na morte – a Lua Minguante).*

* Texto fornecido pela autora.

Agora, com vocês, quatro poemas de Lua Vespertina. 🌗🌘🌑🌒🌓

SÍSIFO

Hoje escrevi na lama um verso
todo bucólico de pastorinhas.
Falei do orvalho e da neblina,
e das ovelhas brancas de algodão.

Logo apareceu um desses gatos
e nas letras pisou, todo incutido.
Fiquei bravo, fui jogar bola,
e o poeminha ficou todo sujo.

É fácil não ser arrogante,
e mais fácil ainda é se esquecer.
Hoje lembrei enquanto dormia:
sonhar é bom, em sonhos nada perco.

Mas eu me acordo e tudo já se esvai,
tal como versinhos no barro.
Bom seria não fazer nada disso,
igual a mamãe, o papai e o pastor.

HECATOMBE
(de cem suspiros)

“daí, suor me poreja de alto a baixo, então
tremuras me tomam toda, orvalhada fico, mais
que a relva, com pouco lassa, morta” (Safo)

Quisera Zéfiro, com seu carinho,
beijar a relva macia com o
mesmo encanto com que tu me beijas;

quisera Penélope tecer linho
com maior saudade e maior dor
do que as minhas, quando o imo me aleijas

Quiçá tampouco Apolo luminoso
tanto amor não louvou, quando em jardim
transformou o corpo&sangue derramado
de Jacinto; não, nem sequer o Febo
tamanho zelo conseguiu louvar

Pois é maior do que qualquer colosso
o que em minh’alma de campos sem fim
eu carrego; e nem vinho libado,
nem corpo ungido d’um herói mancebo,
são tão benditos por mim em meu altar

quanto tu.

OFÉLIA
(a uma donzela morta)

“Et qu’il a vu sur l’eau, couchée en ses longs voiles,
la blanche Ophélia flotter, comme un grand lys”
(A. Rimbaud)

Sua face, mais que o brilho da Aurora
resplandece — e a tez pálida e gelada
dorme em mimosos gypsos adornada,
enquanto lhe nina a própria Flora!

Fronte graciosa, ainda quente, ali ora
e ostenta a Beleza que lhe foi dada!
Voz meiga de anjo, pura, imaculada,
estrela alguma me ofusca a senhora!

O seu semblante morno dorme e cora,
espero-a volver-me o olhar agitada!
Espero-a; o tempo passa e ali demora…

Não acorda! Esta víbora, vil espada
corta-me a alma como cortou-lhe outrora;
como a amarei morta, desanimada?

OBSESSÃO

“Mais les ténèbres sont elles-mêmes des toiles
où vivent, jaillissant de mon oeil par milliers,
des êtres disparus aux regards familiers”
(Charles Baudelaire)

Tudo que vivo era, que respirava
no ar o seu perfume dissimulado,
sentia na alma a traiçoeira clava
de em si próprio amar mortal pecado.

Um inferno inteiro transmutado em
lábios róseos, luxúria e asco;
eram seus negros olhos, seu desdém,
o machado profano do carrasco.

“Cruel esfinge dos austeros vitrais,
teu corpo ‒- serva me, servabo te,
suplica-lhe misericórdia entre ais…”

“Isto é tudo que aqui se vê ou sente…”
— replicara ao seu rosto nos cristais —
“…sê tu vassalo da tua mente.”

O livro de Marina Naves está à pela editora Margem.
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Aproveite para ler também

Três poemas de “Claro Enigma”, de Carlos Drummond de Andrade

Nesta segunda semana de março, especificamente no dia 10/03/2021, o livro Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade, completa 70 anos desde sua publicação. Publicado em 1951, pela editora José Olympio, esse livro é entendido por alguns críticos como a obra prima de Drummond – alcançando inclusive a alcunha de melhor reunião de poemas já publicada no Brasil, dentre tantas da poesia nacional –, sendo também um dos fatídicos “livros de virada” do autor itabirano.

No post de hoje, você vai conferir três dos poemas que figuram em Claro Enigma, poemas estes que foram escolhidos de forma a escapar levemente dos dois que talvez sejam os mais conhecidos do livro: “A máquina do mundo” e “Os bens e o sangue”.

Mas, antes de lermos os poemas, vamos a algumas detalhes sobre essa obra prima da poesia brasileira.

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Após passar por duas fazes célebres aos olhos da crítica literária – uma modernista, sob a qual vieram os poemas de Alguma Poesia (1930) e de Brejo das Almas (1934); e uma segunda engajada e social, na qual estão livros como A rosa do povo (1945) –, a chegada de Claro Enigma é, na trajetória de Drummond, o assumir definitivo de uma nova máscara.

Recuperando elementos caros à tradição lírica ocidental, como o verso metrificado e o soneto, o autor confronta sua faceta imediatamente anterior, agindo/escrevendo a partir de uma postura antihistórica e antipolítica (em sentido restrito, é claro). O livro está dividido em seis partes que juntas compõem uma suíte interessantíssima, que se digladia com a disposição relativamente simples das obras anteriores e constrói um sentido caleidoscópico, do vocabulário às temáticas. O distanciamento do presente, enquanto lugar concreto e social, é bem representado desde a epígrafe que Drummond escolheu para o livro: Les événements m’ennuient (em tradução rápida: “os acontecimentos me aborrecem”), uma frase emprestada de Paul Valéry, que coloca o autor brasileiro alinhado com um legado interessado em mergulhar na linguagem e na técnica, tendo por primeiro plano o mar da língua (la mer), e não sua espuma (l’écume) – para fechar aqui com outra menção a Valéry.

Sabendo disso, desfrutemos, abaixo, dos três poemas exemplares do que observamos acima, essas características tão maturadas pelo Carlos Drummond de Andrade que nasceu (ou cresceu) na década de 1950, com a publicação de Claro Enigma.

O livro – e seu autor –, em mais um novo ano, presenteiam e marcam a nossa trágicômica história nacional.

Sonetilho do falso Fernando Pessoa

Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui, 
mas não sou eu, nem isto.

O chamado

Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.

Oficina irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

“Eu não sei. Acho que viajo muito.” – Entrevista e poemas de Marina Naves

Conversamos hoje com a poeta Marina Naves, que está em vias de lançar seu primeiro livro de poemas, Voyager (editora Escaleras). Marina (21), é poeta, tradutora e pesquisadora. Seu caminho na poesia começou ainda na infância, quando passou a se interessar pelos poemas do seu avô, João Naves de Melo. Cecília Meireles também foi de grande importância para o seu despertar literário. Na adolescência, com a leitura de poetas ultrarromânticos, Marina começou a criar gosto pela rima e pela métrica. Já na Universidade Federal de Minas Gerais, onde se formou bacharela em Estudos Literários, a autora conheceu suas duas grandes inspirações: o irlandês W. B. Yeats e a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Atualmente, Marina estuda e desenvolve pesquisa nas áreas de Literatura Portuguesa, Intertextualidade e Recepção dos Clássicos.

Isadora – Marina, obrigada por conversar com a gente hoje! Vamos começar com a criação: como é seu processo criativo? E como nasceu o Voyager?

Marina – O prazer em ter essa conversa é todo meu, Isadora! Sobre o meu processo criativo, gosto de dizer que tenho apreço em construir versos e estrofes a partir de imagens que me aparecem (às vezes claras, às vezes mais obscuras). A intertextualidade com outros autores também me ajuda bastante a me destravar de qualquer bloqueio criativo em que eu possa me encontrar em algum momento! Assim, posso partir para a segunda pergunta: Voyager nasceu do propósito de fazer uma espécie de “diário de viagens” que narrasse as jornadas que já fiz para diversos lugares. Mas, claro, tal conceito foi mudando e tornando-se mais abstrato, dando espaço para viagens mais estáticas e conceituais – que não nos tiram do lugar físico em que nos encontramos, mas que nos levam a pensar e conhecer novos horizontes.

Isadora – Muitos dos seus poemas trazem referências da cultura clássica, por meio de menções a personagens e mitos, por exemplo. Como você enxerga a sua relação com essa tradição e de que maneira seus poemas dialogam com ela?

Marina – Minha relação com os mitos clássicos é bem forte por diversos motivos. O primeiro deles, talvez, seja puro gosto. Tenho imensa curiosidade e afeição pela cultura greco-romana, o que até me levou a pesquisá-la com mais afinco enquanto estudante de Letras. Um segundo motivo para construir diálogos com a tradição em meus poemas, seria o fato de que eu acredito fortemente que os clássicos são inesgotáveis em tema e em forma. Podemos aproveitá-los para tratar de quase qualquer assunto. Os mitos gregos, por exemplo, até hoje podem ser abordados com temáticas reavivadas. Assim, eu diria que o arcabouço criativo que a tradição nos dispõe é algo tão valioso que não pode ser ignorado.

Isadora – Outro ponto que me chamou muita atenção na leitura de Voyager foi a presença marcante de alguns lugares que inspiram vários dos poemas do livro, como Montes Claros, Curitiba e Dublin, por exemplo. Como foi a escolha desses locais? O que são esses lugares para você?

Marina – Esses lugares foram escolhidos e receberam tanto destaque por causa de uma grande memória afetiva que tenho por eles: por exemplo, morei anos em Montes Claros, sonhei desde a infância em visitar a Irlanda… as imagens, ou lembranças, que eu tinha deles eram fortes e vívidas, então pensei em começar a escrita bruta do livro por esses lugares.

Isadora – E quanto à ordem dos poemas? Como foi essa curadoria?

Marina – A ordem dos poemas foi pensada para seguir uma trilha. A intenção é dar ao leitor a sensação de que está fazendo uma viagem dentro do próprio livro, seguindo pelo mundo greco-romano, depois por um ambiente de verão, depois pelo rio São Francisco e por aí vai. Tive também a ideia de fazer com que o livro terminasse num tom cíclico, como se a viagem pela vida não acabasse senão na morte.

Isadora – Obrigada, Marina! Gostaria de acrescentar alguma mensagem para os leitores de Voyager?

Marina – Eu que agradeço, Isadora! Acho que gostaria de falar mais algumas coisinhas sobre Voyager. Este pequeno livro de poemas trata de várias questões ligadas ao mundo das viagens (sejam estas introspectivas – ocorrendo no âmago de quem narra –, metalinguísticas – passando pela própria linguagem – ou concretas – ou seja, que ocorreram de fato). Os poemas selecionados para compor esta obra são reflexo de lembranças de viagens passadas, desejos de viagens vindouras e elucubrações que são, antes de tudo, viagens dentro da própria alma e da própria mente. Os poemas mais empíricos não deixam de trazer temas mais amplos, mesmo que tratando de eventos vividos por mim: tudo é construído tendo como base sensações e impressões.


Com vocês, três poemas de Voyager, por Marina Naves.

Dublin, 2014

“Dublin made me and no little town
with the country closing in on its streets”
(Donagh MacDonagh)

Por muitos anos sonhei conhecer-te,
ver em tuas vias fadas voarem…
sentir teu ar encantado e ancestral
invadir-me os poros, narinas virgens.

Mas tudo foi diferente. Contigo
aprendi algo do futuro também.
Nas tuas estradas de alvos casebres
caminhavam juntos cabras e carros.

Leprechauns escondidos em Dame Street
ouvem Brigid em igrejas cristãs;
eu também ouço, e ouço mais: Oisin

tocando sua harpa em Saint Stephen’s Green.
Há tradições nestas ruas — ocultas —
que não perecem com o andar dos anos.

Lua

Alvo corpo de Ártemis destemida,
minhas mãos buscam tua branca pedra.
Que minhas cinzas sejam em ti, vida —
expostas como as mentiras de Fedra.

Com um vestido pesado e robusto
(que me seja leve como o universo
— tão macio como o materno busto)
Quero visitar-te em sonhos imerso.

Em uma feliz cadeira de praia
quero descansar sobre tua carne,
observando a doce dança de Gaia.

Que teu irmão, Febo Apolo, não me encare;
que sua flecha-luz em mim não caia,
pois só no escuro brilha tua face.

Via-Láctea

“Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”
(Olavo Bilac)

O som das letrinhas dessa palavra
me lembra o amor: é leite na tigela
com cereal — e o cereal tem a cor
dos cabelinhos amarelos dela.

Ou pelo menos era isso que eu achava
quando tinha uns sete anos. Hoje apenas
me intrigam as estrelas; tão pesadas
mas tão macias — leves como penas.

Pensando bem, igualmente intrigantes
são as flores. Tão cedo nascem e
logo morrem. O que é melhor então

prometer a galáxia fria e eterna
ou as rubras rosas quentes e perenes?
Eu não sei. Acho que viajo muito.
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Leia ainda: posts de Marina Naves no Duras Letras!

Os poemas do “Rubaiyat”, de Omar Caiam

No post de hoje, trazemos para vocês três facetas temáticas que aparecem com frequência nas quadras do livro Rubaiyat, de Omar Caiam – ou Khayyam –, um matemático e astrônomo persa interessado em colecionar e criar pequenos poemas conhecidos como rubai. Os temas são: o xadrez, o vinho e o amor. Além disso, vamos falar um pouco sobre esse tal rubai, poesia antiga feita na Pérsia, diretamente ligado ao nome de Caiam, que foi responsável por por compilar mais de duzentas dessas pequenas pílulas poéticas que compõem os inúmeros Rubaiyat.

Para começo de conversa, rubai pode ser traduzido como “quadra”, tendo seu plural em rubaiyat – quadras –, palavra que dá nome ao livro de Omar Caiam em sua versão traduzida para o inglês, no século XIX, por Edward FitzGerald, que tornou célebre a obra do poeta persa no ocidente. Para aqueles quem não estão familiarizados com esse tipo de texto, uma boa forma de entender o rubai é aproximá-lo de alguns jogos infantis ou cantigas populares que temos na língua portuguesa; assim, apesar de não conhecer quaisquer dos rubaiyat, com toda certeza vocês se lembram daquelas velhas quadrinhas, tantas vezes repetidas na infância:

Batatinha quando nasce
esparrama pelo chão.
Mamãezinha quando dorme
põe a mão no coração.
Borboletinha tá na cozinha
Fazendo chocolates para a madrinha.
Poti-poti, perna de pau,
Olho de vidro e nariz de pica-pau.

Contudo, diferente de “Batatinha quando nasce”, em que as rimas aparecem no segundo e no quarto verso e que a métrica tem sete sílabas poéticas, a forma do rubai implica rimas entre o primeiro, o segundo e o quarto verso ou então entre todos eles. Além disso, os versos costumam ter a mesma medida em sílabas poéticas, variando de acordo com a tradução, uma vez que a contagem das sílabas se modifica bastante na passagem do persa para outras línguas. Para exemplificar como seriam dois rubaiyat, em português, temos:

I
Luz: é chama da vela que morreu,  à medida em que a esperança nasceu. Mas, se a chama da vela nascer e  a esperança morrer: luz, não! É breu.
II
Por que lamentas de maneira ingrata
o pecado que da vida fez amada?
Calma! porque na morte só se acha
ou a grande misericórdia ou Nada.

Essas duas adaptações – feitas por Gabriel Reis Martins, a partir das traduções produzidas por Manuel Bandeira e por Eugênio Amado – procuram preservar tanto o esquema das rimas e a métrica dos versos, quanto a ideia geral dos poemas escritos ou guardados por Caiam.

Agora, quando tratamos das traduções de Manuel Bandeira ou das feitas por Eugênio Amado, observamos quase uma completa liberdade de composição em relação aos paradigmas técnicos. Chegamos ao ponto de poder dizer que a semelhança que guardam com os poemas de Caiam está no uso da quadra para a estrofação e nos temas evocados pelos seus versos. Isso talvez esteja ligado ao fato de que ambos os tradutores se inspiraram não no texto original em persa, mas na versão francesa do Rubaiyat, feita por Franz Toussaint, livro que por si só já é bastante singular, pois traz a obra de Omar Caiam escrita em forma de prosa e sem rimas.

Apesar dessa distância, o tratamento é sublime e a poesia tocante, seja na mão de Bandeira, seja na de Amado. Por isso mesmo, sem mais delongas, fiquemos com alguns de seus versos sobre o xadrez, sobre o vinho e sobre o amor.

Xadrez

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Somos marionetes movidas pelo Céu
(E não me vá pensar que se trate de metáforas).
Atuamos no palco da vida e, logo após,
Somos postos na caixa do atroz esquecimento.
Eis a única verdade:
Somos os peões no xadrez
Que Deus joga. Ele desloca-nos
Para diante, para trás,

Detém-nos, de novo, impele-nos,
Lança-nos um contra outro...
Depois um a um nos mete
Todos na caixa do Nada.

Vinho

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Se desperdiço minha juventude
Sorvendo o vinho, essa bebida amarga,
Não me repreendas, porque minha vida
É tão amarga quanto essa bebida.
Bebe vinho! Receberás
Com ele a vida eterna. Vinho!
Único filtro que te pode
Restituir a mocidade.

Mocidade! A estação divina 
Das rosas e dos vinhos e dos
Amigos sinceros! Desfruta
Esse instante fugaz que é a vida.

Amor

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Não é porque eu seja pobre que não bebo vinho;
Não é por temer vexame que não me embriago;
Bebi para iluminar meu coração – outrora;
Hoje que tenho você, não preciso beber.
Um pedaço de pão, um pouco de água,
Fresca, à sombra de uma árvore e os teus olhos!
Nenhum sultão é mais feliz do que eu.
Nem mendigo nenhum mais melancólico 

Uma última curiosidade sobre o Rubaiyat de Caiam é que ele inspirou muitos dos grandes poetas modernos do ocidente, sendo possível encontrar poemas com a estrutura dos rubai na obra de Fernando Pessoa e também na Robert Frost, poeta que já ganhou um post aqui no Duras Letras. Vamos conferi-lo?

Omar Khayyam

Omar Caiam foi um matemático e astrônomo persa que durante sua vida, vivida aproximadamente entre os anos 1030-1123 dC, demonstrou grande interesse pela poesia e mais especificamente por “rubai”, uma quadra de versos, com estrutura fixa, que circulava na região da Pérsia naquele período. Estima-se que o autor tenha reunido mais duzentas dessas pequenas pílulas poéticas, às quais somou outras de sua própria autoria, tornando o trabalho genético de sua produção uma tarefa infindável e de difícil resolução, como o caso de Gregório de Matos, no Brasil.

Resenha – “A mulher ruiva”, de Orhan Pamuk

Um Édipo em Istambul

Em janeiro deste ano, voltei a assinar a TAG livros, depois de mais de três anos desde que havia encerrado minha assinatura, especialmente por não conseguir conciliar o ritmo das leituras que o clube propunha com as leituras da faculdade de Letras e com as que, me chamando mais atenção, vez por outra eu decidia passar na frente. Mas desde o fim de 2020, apesar de o meu tempo livre não ser muito maior do que era antes, consegui retomar uma frequência mais alta de leituras, de em média um livro por semana, e decidi renovar a assinatura no plano Curadoria. Para minha grata surpresa, o primeiro livro que recebi foi, sem rodeios, um dos melhores e mais impressionantes dentre muitos dos que li nos últimos anos – e olha que não foi pouca coisa. Por isso mesmo, decidi trazer para vocês uma breve apresentação desse livro extraordinário que é A mulher ruiva (2016), de Orhan Pamuk.

Indicado por Milton Hatoum, o livro de Pamuk acompanha a história de Cem Çelik, um jovem turco que vive com os pais em Istambul, em meados dos anos 1980. Quando o rapaz está com dezesseis anos, seu pai, envolvido na militância política, deixa a família sem nenhum aviso, e Cem começa a trabalhar para ajudar nas despesas da casa.

Assim, quando surge a oportunidade, Cem se torna aprendiz de cavador de poços junto a mestre Mahmut, na pequena cidade de Öngören, nos arredores de Istambul. Durante os meses em que estão juntos cavando o poço, a relação entre Cem e Mahmut vai se tornando cada vez mais próxima de uma relação entre pai e filho, e Mahmut passa a ocupar uma posição paterna de afeto, orientação e proteção para Cem. Contudo, à medida que o tempo passa e a água parece cada vez mais distante, o relacionamento entre os dois começa a azedar, e, junto com a admiração, vêm o medo e o rancor de Cem por essa figura paterna.
Nesse meio tempo, o rapaz conhece a mulher ruiva, uma atriz de teatro com o dobro da sua idade, por quem ele fatalmente se apaixona. Mas mestre Mahmut o proíbe de visitar o Teatro de Moralidades onde ela atua, de modo que Cem passa a procurar qualquer desculpa para conseguir vê-la, mesmo que a distância.

Édipo fura os olhos, após descobrir que matou o pai e se casou com a própria mãe

Cem passa a sentir cada vez mais medo e raiva de Mahmut, e a rivalidade entre eles, que à primeira vista parece pouco justificável, passa a se concentrar cada vez mais intensamente em fantasias edípicas. Na verdade, o mito de Édipo é de importância fundamental para a história: não apenas ele é referido e narrado mais de uma vez ao longo do livro, como também os laços entre os personagens de A mulher ruiva tornam-se paralelos – mas de maneira nada óbvia – aos dos personagens da peça de Sófocles, na complexa triangulação entre pai, mãe e filho.
Devido a um incidente durante o trabalho no poço, após o qual ele volta para Istambul e para a casa da mãe, Cem fica obcecado com a história de Édipo Rei, que parece estar muito ligada à sua própria história.

Algum tempo depois, Cem vai para a faculdade e conhece Ayse, com quem se casa, e se tornam donos de uma empreiteira. No entanto, o casal tem dificuldades para conceber, e, mesmo procurando ajuda de diversos médicos, o tempo passa e Ayse não engravida, de modo que passam a tratar a empresa que fundaram juntos como o filho que nunca tiveram.

Rostam reconhece Sohrab

Numa viagem de negócios, Cem vê uma pintura que o impressiona muito: a cena em que o guerreiro Rostam reconhece ser seu filho, Sohrab, quem acabou de matar numa batalha. Cem, então, fica novametne obcecado e passa a procurar pelas histórias do Shahnameh, a Épica dos Reis, do escritor persa Ferdusi, do qual faz parte o ciclo de Rostam e Sohrab.
Ele e Ayse decidem batizar sua empresa com o nome do filho morto pelo pai, e no seu tempo livre estão sempre discutindo as histórias de Édipo e de Sohrab, classificando as pessoas entre as de um tipo ou de outro: os filhos de pais autoritários seriam como Sohrab, enquanto os filhos que se rebelam contra seus pais, como Édipo. E de que tipo seria o próprio Cem?

Para não contar demais, vou parar por aqui. O fato é que, lendo A mulher ruiva, os fatos se sobrepõem e se multiplicam em camada após camada, surpreendendo sempre com as reviravoltas da história e seus paralelos com Édipo, Rostam e Sohrab. É bom lembrar que, para ler o livro de Pamuk, não é preciso ter lido as outras histórias, pois elas nos são apresentadas à medida que aparecem na narrativa (apesar de que, é claro, quem conhece já vai estar mais familiarizado com os acontecimentos em questão). Além destas referências principais, Pamuk também evoca, em dados momentos, Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e Hamlet, magnum shakespeariano, que também se concentram nos embates edipianos entre pais e filhos.


Sem dúvidas quanto a isso, A mulher ruiva é um cinco estrelas que vale cada segundo da leitura. Como escrevi antes, foi um dos melhores livros que li nos últimos anos, então indico sem medo de ser feliz. (Mas quem sou eu para recomendar, se o próprio Milton Hatoum já falou que é bom, né? Obrigada, Hatoum!)

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Clique aqui se quiser ler o spoiler! (Por sua conta e risco, hein?) 🙂 Cem tem um caso de uma noite com a mulher ruiva, mas após o acidente no poço, em que acredita ter matado mestre Mahmut sem querer (o que na realidade não foi o que aconteceu), ele foge de Öngören e passa vários anos sem tornar a vê-la. Um dia, ele recebe uma carta de um filho seu, que é o filho que, sem saber, concebeu com a mulher ruiva, aos dezesseis anos. Sem saber como agir, ele volta até a cidade, e lá ele e o filho, num breve momento de reconhecimento e acusações, lutam. Cem estava armado, mas o filho toma a arma deste e – acidentalmente? – acaba o matando. Além disso, descobrimos que a mulher ruiva, antes de ser amante de Cem, fora amante do pai dele, algo em torno dez anos antes de conhecê-lo. Assim, ela ocupa uma posição materna em relação a ele, além de ser muito próxima de seu próprio filho com Cem. O protagonista, portanto, é tanto Édipo (pensando ter matado o “pai”, Mahmut, e dormido com a “mãe”, a mulher ruiva), como Laio, morto por seu próprio filho. Ufa! Haja sangue, não é?!

Cantando os clássicos da literatura brasileira

Que tal experimentar o resultado sonoro do cruzamento entre literatura e música? No post de hoje, preparamos uma pequena lista com oito canções, compostas a partir de alguns clássicos da literatura brasileira, que reafirmam a beleza das produções que tiveram seu solo fecundado pelo grão literário.

Nós já contamos aqui no Duras sobre a relação histórica, e até crítica, que a literatura brasileira tem com a música popular nacional, especificamente com a MPB. No post O que a MPB tem a ver com Literatura? passamos por algumas perspectivas teóricas que elucidam tanto a formação de uma área de pesquisa no campo da canção, quanto pelas encruzilhadas criadas nessa zona de estudo. Se você ainda não conferiu este post, ele está disponível aqui:

Mas, se você já conferiu, vamos ao que interessa!

Literatura na canção ou canção na literatura? Dividindo as músicas selecionadas entre da poesia e da prosa, tivemos por objetivo mostrar como tanto um gênero quanto o outro são utilizados para a produção de obras maravilhosas de nosso repertório musical nacional.

Da poesia

Comecemos pela poesia, pois sua passagem para a canção parece um pouco mais simples do que quando tratamos do texto literário em prosa. A seguir, você confere quatro musicalizações de poemas escritos por grandes nomes da literatura brasileira e que, a partir de melodias primorosas, têm seu sentido expandido.

Anoitecer, de Drummond e José Miguel Wisnik

Entre as musicalizações feitas sobre poemas brasileiros, a de “Anoitecer”, do livro Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, está entre as minhas favoritas. Wisnik e seu piano abrem a canção mimetizando a delicadeza das badaladas de um sino interiorano, que anuncia a chegada do fim do expediente, do tempo de descanso, o qual, nem na música, nem no poema, está desprovido de melancolia e nostalgia, de uma relação conturbada com o futuro e com o passado.

Funeral de um lavrador, de João Cabral e Chico Buarque

Composta para uma peça que se inspirou em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, “Funeral de um lavrador” é uma musicalização que trás um trecho integral do texto que o inspira. A composição de Chico é de 1966 e está entre seus primeiros trabalhos como artista da canção. Essa juventude do autor, contudo, não corrobora para que sua melodia deixe a desejar em relação à letra; na verdade, a força que o músico empresta para o texto de João Cabral abre novas camadas de sentido, colocando em cena um violão arrastado e um coro que acompanha a voz do cantador como a sombra da miséria, repetindo suas lamúrias.

Motivo, de Cecília Meirelles e Raimundo Fagner

Agora, se as duas canções anteriores nos colocam diante de uma tristeza aguda, com condições sociais muito bem marcadas (o mundo do pós-guerra, no caso de Drummond, e o sertão agressivo, de João Cabral), essa que Fagner interpreta a partir do poema “Motivo”, do livro Viagem, de Cecília Meireles, ombreia melancolia e alegria. A visão deixa as nuvens baixas do trágico mundo moderno para alcançar também uma dimensão sublime, de aceitação e acordo com o fim iminente, recebido sem alegria ou tristeza, mas com poesia e canto.

Dor elegante, de Paulo Leminski e Itamar Assumpção

Algo parecido acontece com o poema de Paulo Leminski, musicado por Itamar Assumpção, “Dor elegante”. A tristeza, ou, mais especificamente, a dor, é colocada como ponto alto da elegância, como troféu/riqueza e como único bem que o sujeito tem de fato. Essa dimensão da dor, tocada por instrumentos pesados e inscrita em Pretobrás, ganha um novo significado, na medida em que passa também a ser uma dor social e estética, o que acontece tanto com a posição de mulher em um país machista – abarcada pela voz de Zélia Duncan – quanto pela de negro e marginalizado, pela qual passou Itamar em relação à sociedade e à tradição musical brasileira.

Da prosa

Já quando tratamos da passagem da prosa para a canção, essa costuma contar com muito mais liberdade interpretativa do que quando a fonte é a poesia, uma vez que a extensão do romance precisa, muitas vezes, ser reduzida a algumas poucas linhas. O compositor procura encontrar os pontos chave do texto, os instrumentos capazes de comunicar sensações causadas pela obra e um acordo entre essas duas instâncias, textual e sonora.

Modinha para Gabriela, de Jorge Amado e Dorival Caymmi

Inspirada pelo brilhante romance de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela, a “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi, capta pelo menos duas das facetas dessa personagem apaixonante: um lado confessional e recluso, carregado de qualquer tom de timidez, próprio ao silêncio do retirante, daquele que precisa dar explicações; e outro despojado, da Gabriela das festas, autêntica e brincalhona, que deixa transparecer toda sua sensualidade e alegria.

A hora da estrela, de Clarice Lispector e Pato Fu

Talvez, alguém que não leu A hora da estrela, de Clarice Lispector, se engane ao escutar essa canção. Na passagem do texto para a letra, os signos trágicos que recheiam a prosa da célebre escritora e antecipam o fim de Macabeia se destilaram em um tom melancólica e sutil, que traz consigo toda a esperança que a própria personagem parece ter para sua jornada. Nesse sentido, é uma composição brilhante, uma vez que assume a perspectiva da protagonista, que se mantém de fato alienada em relação a seu destino e que está pronta para mudar sua vida para sempre, sofrendo um acidente, no mínimo, ridículo.

Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, Milton Nascimento e Caetano Veloso

Essa com toda certeza é uma das mais belas produções já feitas na seara da música brasileira. A forma como Caetano Veloso conseguiu captar as palavras chave de Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, e colocá-las em sua canção homônima, feita em parceria com Milton Nascimento, chega a assustar, de tão impressionante. A língua se mistura com os instrumentos de percussão e corda e com o balanço pelo qual essa canção nos carrega, misturando versos fortes e precisos, nas margens entre a palavra e seu som, entre prosa da palavra e Rosa da palavra.

Capitu, de Machado de Assis e Luiz Tatit

Escrita por Luiz Tatit, musicólogo e teórico da canção brasileira, a letra de “Capitu” lança um novo olhar sobre a divina personagem machadiana, que veleja, desde seu velho mundo do século dezenove, até o litoral contemporâneo da internet. O recurso dos ecos e o tom direcionado e pequeno da voz que canta muito nos lembram das sombras de Bento Santiago, narrador do Dom Casmurro, de Machado, que insiste na infidelidade da esposa: mulher hábil, poderosa, ambígua, atraente, virtualmente – pois Bentinho chega ao delírio – amada e amante.

É claro que poderíamos acrescentar muitas outras canções a esta lista, que apenas tateia o vasto universo da literatura dentro da música popular brasileira. Por esse motivo, criamos uma pequena playlist, que traz algumas outra faixas, para embalar suas memórias literárias das horas vagas.

Para fechar o post, gostaríamos de fazer um breve comentário sobre a relação tão produtiva entre as duas artes, música e literatura. Começamos por lembrar que não existe musicalização que estrague um poema ou uma narrativa (um absurdo que frequentemente aparece no discurso, principalmente quando alguém, por acaso, não gosta de uma versão cantada do texto literário). Assim como na tradução, toda passagem de uma coisa para outra depende da interpretação do artista, interpretação da qual podemos discordar, sem que isso alcance o texto fonte propriamente dito.

Pensando nisso, para você, o que os textos que serviram de inspiração ganharam com suas versões cantadas, citadas acima? Se você considera que houve uma perda, qual foi ela? Conta para gente nos comentários!

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