“Há muito tempo, havia um príncipe igual ao seu”, começou ele.
O príncipe era filho primogênito e favorito do rei. O rei amava muito o filho, fazia-lhe todas as vontades e promovia banquetes e festas em sua homenagem. Um dia, durante uma dessas festas, o príncipe viu um homem de barba preta e semblante sombrio ao lado de seu pai e percebeu que se tratava de Azrael, o anjo da morte. Os olhares do príncipe e de Azrael se cruzaram, e eles se fitaram surpresos. Depois da festa, o príncipe, aflito, disse ao pai que Azrael estava entre os convidados e que com certeza estava atrás dele: o príncipe percebera isso no semblante do anjo.
O rei ficou com medo: “Vá direto para a Pérsia, não conte nada a ninguém, mas esconda-se no palácio de Tabriz”, ele disse ao filho. “O xá de Tabriz é nosso amigo; ele não vai deixar ninguém pegar você.”
Então o príncipe foi enviado à Pérsia imediatamente. Depois disso, o rei deu outra festa e convidou o sombrio Azrael, como se nada tivesse acontecido.
“Meu rei, vejo que seu filho não está aqui esta noite”, disse Azrael, mostrando-se preocupado.
“Meu filho está na flor da juventude”, disse o rei. “Ele vai ter uma vida longa, se Deus quiser. Por que você pergunta por ele?”
“Três dias atrás, Deus me mandou ao palácio do xá de Tabriz, na Pérsia, para pegar seu filho, o príncipe!”, disse Azrael. “Foi por isso que fiquei muito surpreso e feliz ao vê-lo ontem aqui em Istambul. Seu filho viu o modo como olhei para ele, e acho que entendeu o que significava.”
Azrael deixou o palácio imediatamente.
Esta é uma famosa narrativa da cultura árabe, que aparece recontada nos livros religiosos islâmicos, e que ganhou algumas variações literárias. A versão aqui apresentada, por exemplo, foi redigida pelo autor turco Ohran Pamuk, sendo uma das muitas pequenas histórias que aparecem ao longo da obra A mulher ruiva, publicada pela editora Companhia das Letras, em parceria com a TAG – Experiências literárias, em 2021.
Deixamos, abaixo, uma suposta versão religiosa desta narrativa, um dos fragmentos do Corão. Infelizmente, não conseguimos determinar precisamente a fonte, portanto o texto é apresentado aqui apenas a título de curiosidade e não como material de pesquisa aprofundada.
Quando Asrael, o anjo da morte, passou certa vez por Salomão, dirigiu o olhar a um dos seus convivas. Este perguntou:
– “Quem é ele?”
– “O anjo da morte.” – respondeu Salomão.
– “Parece que ele pôs o olho em mim.” – continuou aquele. – “Por que não ordenas que o vento me leve daqui e me largue na Índia?”
Foi o que Salomão fez. Aí o anjo disse:
– “Se o fitei por tanto tempo, é porque ele me causou estranheza, uma vez que eu tinha ordens de buscar sua alma na Índia, ao passo que se encontrava contigo em Canaã.”
Esta história foi contada por Beidhawi, intérprete do Alcorão.
Caio Valério Catulo (c. 87-c. 54 a.C.) foi um poeta latino muito inventivo, apaixonado e de quem sabemos pouco. Dizem que nasceu em Verona e que viveu boa parte de sua vida em Roma, transitando entre personalidades importantes da política e da arte da época, em um período conturbado da história. Simultaneamente adolescente e maduro, Catulo amou a Clódia (sua Lésbia), uma mulher de família tradicional, com quem viveu encontros amorosos e a quem dedicou uma série de poemas de amor, mas também de escárnio, zombaria e de baixaria.
Como restaram apenas fragmentos da maior parte de seus antecessores e contemporâneos também poetas, alguns pesquisadores consideram que estes poemas escritos por Catulo para Lésbia e outros amores fazem parte da primeira obra consistente de poesia lírica latina – compõem o Liber Catulli (O livro de Catulo) –, que é uma possível antologia antiga, reunindo os poemas supostamente escritos pelo poeta de Verona.
Agora, fora toda essa lenga lenga histórica e contextual, para mim, Catulo é meu motivo latino, meu convite a conhecer sua língua (a da boca?) e uma de minhas paixões anacrônicas: é um poeta de meu cânone pessoal. Foi por esse motivo que decidi trazer um pequeno compilado com sete de seus poemas, especificamente aqueles em que o amor, às vezes debochado e violento, está em primeiro plano. As traduções são de João Angelo Oliva Neto, de sua versão integral da obra de Catulo: O livro de Catulo, publicado pela Edusp.
Espero que vocês aproveitem a leitura! ♥
5.
Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores dos velhos mais severos,
a todos, voz nem vez daremos. Sóis
podem morrer ou renascer, mas nós quando breve morrer a nossa luz,
perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
muitos mil, depois outros sem fim, dá
mais mil ainda e enfim mais cem – então
quando beijos beijarmos (aos milhares!)
vamos perder a conta, confundir,
p’ra que infeliz nenhum possa invejar,
se de tantos souber, tão longos beijos.
7.
Perguntas, Lésbia, quantos beijos teus
bastam p'ra mim, e quantos são demais.
Quantos sejam os grãos de areia Líbica
a jazer em Círene, em láser fértil,
entre o templo de Júpiter ardente
e de Bato vetusto o sacro túmulo;
quantas estrelas dos homens testemunham
(furtivos), tantos beijos tu beijares
basta a Catulo, insano, e é demais.
Assim os curiosos não consigam
computar nem más línguas pôr quebranto.
87.
Mulher alguma pode se dizer bastante
amada quanto amada é por mim Lésbia.
Em pacto algum jamais houve tanta confiança
quanto a que em mim se viu em teu amor.
109.
Minha Vida!, me dizes que este nosso amor
será feliz aos dois, será eterno.
Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
que sincera e de coração o diga
e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.
14b.
Se acaso vós leitores sois
das minhas inépcias e as mãos
não vos repugnar ao tocar-nos,
AFASTAI A SEVERIDADE
POIS VERSOS VIRÃO MAIS PICANTES
⚠️ Os poemas abaixo possuem linguagem sexual e obscena ⚠️
15.
A ti eu me confio e meus amores,
Aurélio, e de pudor eu peço vênia
pois se já desejaste algo em teu ânimo
que mantivesses casto e inteirinho,
preserves em pudor este menino,
não digo das pessoas – delas nada
temo a passar na praça aqui e ali
com suas próprias coisas ocupadas.
Minha paúra és tu, e é o teu pau,
fatal aos bons, fatal aos maus meninos;
por onde queiras, como queiras, leva-o,
quando saíres, pronto para tudo.
Só ele excluo, sim, pudicamente,
pois se uma ideia má ou louca fúria
te impelir, pérfido, a tamanho crime
de contra ele investir, outro eu,
então, ah!, infeliz e malfadado,
pelos pés arrastado, por teu rabo
aberto vão passar mugens e rábãos.
32.
Peço minha, boa, doce Hipsitila,
minhas delícias, meus encantos, pede
que eu vá dormir a sesta junto a ti.
E se pedires cuida disto: que outro
não introduza entraves na portinha
nem queiras tu sair por aí fora.
Mas fica em casa e vai te preparando
para umas nove contínuas trepadas.
E se é que vais chamar-me, chama logo,
que almoçado, deitado, e satisfeito,
tanto a túnica eu furo quanto o manto.
Na nossa cultura, o conhecimento (segundo uma antinomia que Aby Warburg acabou diagnosticando como a “esquizofrenia” do homem ocidental) está cindido entre um pólo estático-inspirado e um pólo racional-consciente, sem que nenhum dos dois consiga reduzir integralmente o outro.
– Giorgio Agamben, em Estâncias
No poema “Num monumento à aspirina” é possível tomar como mote o movimento metafórico entre o remédio e o sol. A predicação do primeiro caminhando em direção ao segundo, mas a partir de uma polifonia que alça o astro-rei para o papel de consciência formal, superego de uma tradição poética que através da lírica indisciplinou o consciente. Leio, portanto, este poema concentrado nas possibilidades metapoéticas da antilírica cabralina.
Antes, contudo, transcrevo-o abaixo, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo:
Num monumento à aspirina – João Cabral de Melo Neto
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
“O sol de um comprimido de aspirina”, exuberante sol, desvelador das formas, patrono de uma clareza cristalina, capaz de cegar o intuitivo, o dito natural. O sol é o pressuposto de uma operação que assume o criar enquanto oficina, é perigoso manipular máquinas em meio ao breu, lesões, acidentes e imprecisões deformam a forma.
O latejar do crânio, preambulo da aspirina, é anterior ao poema, o remédio demanda a doença e a doença faz par com o remédio. Exatamente pelo aflorar orgânico da imprecisão das formas, suas abstrações pretéritas ao nome, faz-se preciso um fármaco solar: consciência, método.
O poema articula-se enquanto o elogio do remédio “Principalmente porque, sol artificial”. Elogio, pois, afirma-se contra o crescer vertiginoso da linguagem. O fármaco, como produto do espírito, formaliza a distância radical entre a espontaneidade e o labor. Ode, portanto, ao artifício.
A antilírica prossegue na defesa do botânico contra o jardineiro, o método em recusa da inspiração, afinal, somente o sol em pílula é “(..) imune às leis da meteorologia”. A técnica poética, o cálculo, é apresentado como gesto ou prática capaz de se não abolir ao menos driblar a contingência romântica imposta pela inspiração.
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
“Convergem: a aparência e os efeitos”, a luz, como lâmina, propõe, escolhe, recorta, qual sombra deve dilatar-se pelas páginas abertas da mente-oficina. Exatamente por ser conflito entre o doer e o anestesiar o momento ímpar, aquele de mais perene equilíbrio, é quando o fármaco se encontra como ao meio dia. Luz total, meridiana e penetrante, mas já antevendo o ascender das sombras, o porvir da lua. Nesse sentido, a aspirina surge enquanto emergência, objeto de uso crónico, espécie de reparo ou dique que impede que aquelas ondas fortes do oceano lírico roubem ainda mais areia à praia.
O poeta antilírico sofre como se fosse lírico pois contínua recebendo as ofensivas incoordenadas da linguagem, o sentir que precede a forma. É como em um haikai de Matsuo Basho, que traduzo com honesta imprecisão a partir do inglês,
Nuvens
Uma chance
Desver a lua
Clouds -
a chance to dodge
moonviewing. (Poema disponível aqui)
A perturbação aumenta a nitidez do objeto, nada melhor do que ocultar para acabar revelando. O interessante, no sentido romântico do termo, capacidade de ser gerador de interrogações, é o poema abordar uma ferida crónica, uma dor que passa somente para voltar mais forte e que por isso mesmo mantem o poeta atento, firme, na espera da derrota final contra a linguagem.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
O remédio solar funciona tal qual lente, “Ela reenfoca, para o corpo inteiro”, cindindo interioridade e exterioridade em um todo formal, como se almejasse que a palavra fosse capaz de dar unidade ao todo. “Lente interna”, pois no exercício de desembaraçar “o barroso de ao redor” reforça a capacidade ordenadora da linguagem poética.
A construção desse poema, suas imagens, me fazem pensar que existe algo de utópico, algo além do humanismo romântico que deu forma ao lirismo moderno. Só que no caso de Cabral eu apostaria que mais do que alcançar outro lugar, o utópico assume uma espécie de não geografia, a poesia mais interessada em ser dis-topíca do que lugar: somente nessa estância dissociada de endereço que a criação poderia assumir o rigor demiúrgico almejado pelo poeta.
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Terminei esse livro de fato encantador. A edição, feita pela Geração Editorial, é muito linda: páginas e letras coloridas, decoradas e com inúmeras ilustrações, muitas vezes desenhos do próprio personagem, deixando a leitura mais divertida ainda. A trama também é bem interessante e curiosa, mas sinto que não consegui aproveitar todo o seu potencial.
Resumo da obra
Uma criança, inspirada por um livro ilustrado que leu, desenha uma jiboia digerindo um elefante. Orgulhosa com seu primeiro desenho, ela resolve mostrar para os adultos sua obra prima. Porém, os adultos conseguem enxergar apenas um chapéu (o desenho de fato se parece também com um chapéu) e isso decepciona o jovem garoto. Por isso, ele resolve fazer um segundo desenho mostrando o elefante dentro da jiboia, revelando a parte de dentro do desenho anterior. Os adultos descartam sua nova obra e aconselham a criança a fazer algo mais útil, como estudar geografia ou história.
Deixando seu lado artista de lado, esse menino cresce e se torna um piloto de avião. Curioso, ele mostrava seu primeiro desenho às pessoas que conhecia para saber o que elas achavam dele, mas sempre respondiam que era apenas um chapéu. Um dia, em certo voo, um acidente acontece e o avião cai no meio de um deserto na África. Felizmente (ou não), só havia ele no avião.
No meio do nada com um avião danificado e mantimentos limitados, o jovem piloto ouve a doce voz de um garotinho, solicitando um desenho de um carneirinho. O garotinho era pequeno e muito encantador. Estranhando, e curioso com todo o acontecimento, o rapaz resolve mostrar para o garotinho seu primeiro desenho, que sempre carregara consigo. O garotinho reclama que ele não quer uma jiboia digerindo um elefante, mas sim um carneirinho. O rapaz então fica surpreso com a resposta, pois foi a primeira pessoa a acertar o assunto de seu desenho.
Daí em diante, o rapaz e o garotinho, um pequeno príncipe de um planeta distante, conversam e refletem sobre a vida.
Pontos Positivos
A leitura foi suave e sem dificuldades, além de ser um colírio para os olhos de tantos detalhes e enfeites bonitos na edição. A viagem do pequeno príncipe e suas inúmeras conversas levantam pontos sobre a vida, tocando em assuntos que nos levam a refletir e ponderar (de forma positiva) sobre o mundo que nos circula. É interessante como tudo é falado de forma sutil e divertida, muita vezes como parábolas e enigmas.
Pontos Negativos
Os pontos negativos costumam ser uma dificuldade minha, mas acredito que, no caso desse livro, os muitos detalhes abstratos tenham me incomodado. Enquanto alguns traços são mais fáceis de assimilar, outros dependem muito da perspectiva e entendimento do leitor, o que fez com que eu sentisse que muita coisa passou batido, e essa falta de entendimento/sentido do enredo me deixa realmente incomodado.
Comentário Final
Apesar da leve dificuldade, essa leitura ainda se provou prazerosa e frutífera. Como não faço nenhuma crítica técnica e avalio apenas com base no que conheço e, principalmente, no que sinto durante e após a leitura, digo que gostei muito desse livro, mas não tanto quanto gostaria. Recomendo a leitura, reafirmando que, além de pequeno, é belo “O pequeno príncipe”.
É muito comum ouvir por aí que os diários trazem inúmeros benefícios à vida cotidiana: ajudam contra a ansiedade, preservam a memória, esclarecem sentimentos conturbados, dão destino ao que parece inútil etc. Coisa parecida costuma ser dita sobre a poesia, que, além de fonte de enorme prazer, fornece repertório simbólico, ajuda na interpretação do que parece imapeável, intangível, e que até nos aproxima do Divino.
A lírica de Daniele Gomez encontra um caminho entre ambos, diário e poesia, traço que salta aos olhos quando nos detemos sobre os poemas de “Azul”, livro ainda em fase germinal, que não deixa de pegar também outros percursos – tocando a prosa, a confissão, a canção, o relato – para construir uma narrativa entre fagulhas líricas.
Hoje, no Duras Letras, apresentamos com muita alegria estes seis poemas inéditos de “Azul”, de Daniele Gomez.
Espelho
Zonza, um estardalhaço entreabriu meus olhos. A essa hora, já entrava Sol pra cacete pela janela e me deu um mal-estar terrível na cabeça. Entendi, depois de uns poucos segundos, que fora o meu espelho comprido se estilhaçando no chão do quarto. Três horas da tarde (seria uma merda limpar a bagunça). “Um gosto de asfalto na boca.”
Poemas sem título
Faz dois dias que o espelho se quebrou no chão do quarto. Não sei que movimento, ou que vento fez com que se atirasse. Faz dois dias que amontoei seus cacos perto do baú. Mas não catei, sem ânimo. Faz dois dias que estou zonza; desde o estardalhaço, não parei de estar. Começo a culpar aquela ressaca de quarta-feira de cinzas, ou tudo antes dela.
Esta tarde catei, finalmente, os cacos. Já está me dando nos nervos isso dos enjoos e de me doerem as pernas. Pensei que limpar a sujeira me tiraria o mal-estar; que era sem motivo, parecia coisa da minha cabeça. Estou com um pressentimento. Talvez eu atire fora o que restou do espelho.
Este caderno cheio de memória. E aquela parede azul do quarto anterior. E eu estava olhando a parede desbotada do quarto novo e o espelho jogado num canto e estes pássaros de papel preto colados nas paredes. Pingou um pouco mais daquele azul na calcinha. Corri para a toalete, abaixei as calças depois de desabotoá-las. Desceu devagar, denso, da vagina. E o chão, azul.
coloque os fones para ouvir rebel rebel, david bowie
Eu não sei porque, mas gostaria de me sentar no chão do banheiro e escrever infinitamente. Para ler depois. Para lerem qualquer loucura que eu exalo. Colocada aqui, no piso branco, azulejo sujo de azul. Tinha fumado um baseado e acho… pirei na mancha de menstruação, nas gotas. São bastante viscosas e espessas. Tem um certo gosto. Ouvi uma voz amigável me dizer: “Não me lembro de ter comido nada azul na vida.”
Parece ter descoberto o perigo de andar por aí aberta. De poder ser com ele e de me ajudar a carregar meus cacos de uma casa à outra. Ele sacou meus impulsos. Perdeu a paciência com minhas impaciências. “Não me dê atenção, mas obrigado por pensar em mim.” Estávamos rindo há três minutos atrás, contudo, brigamos explosivamente e o silêncio veio e se derramou. Só aí eu pude enxergar o quanto eu estava fodida por termos virado a noite acordados, cheirando o pó bom do hotel. Cerrei as pálpebras; desabei-corpo e dei voz-fala ao pino. Pingou! Uma gota de catarro-lágrima na blusa. Funguei um pouco. Ele me olhou pelo reflexo do espelho. Partido. Ela não veio quando eu quis. Achei o meu desejo estúpido pra caralho. Xinguei um palavrão, pra piorar. Eu fodi com a nossa noite de insônia.
SINOPSE de “AZUL”, de Daniele Gomez
D. é uma jovem artista de 22 anos que vive desesperadamente. Considerada cult, suburbana, devassa e sísmica, em sextas-feiras veste-se de roxo como aquela mulher do abismo. Leva um caderno azul e várias canetas, entra e sai como um sopro. Aluga uma kitnet onde tem formigas, facas cegas, um gato sobre o colchão, dois cinzeiros, 45 metros quadrados, privada colada no chuveiro, etc. etc. Azul é o seu dia a dia.
Azul ainda não tem data de publicação, mas participa atualmente da seleção de originais da Editora Urutau. As ilustrações e a preparação do livro foram feitos por Bruna Emanuele, da Edições Mariposa.
Sobre a autora
Daniele Gomez nasceu no verão de 1993, em Belo Horizonte, cidade onde vive e atua como redatora e mestre de sarau na iniciativa de jornalismo cultural feminista, Entre a Liberdade e o Paraíso. É formada em Letras, pela Universidade Federal de Minas Gerais, como Bacharel em Estudos Literários. É escritora, multiartista, arte-educadora; integra o coletivo Geração Perdida de Minas Gerais. “Passeios” é seu primeiro livro publicado.
Há alguns dias ou semanas, lembro-me de ter visto em algum portal digital uma reportagem sobre um determinado ponto do Oceano Pacífico cuja localidade exata guardaria a maior distância com relação a qualquer porção de terra continental na face do planeta. Se me recordo com alguma precisão, havia menção a uma tendência de maior migração de animais marinhos e aves, dirigindo-se a esse ermo absoluto por diversas razões relacionadas à ação antrópica, como a pesca predatória e uma maior concentração de poluentes nas águas e no ar.
Imaginei-me sentado de pernas cruzadas neste exato ponto, como que flutuando por sobre a mais vasta imensidão do oceano, sentindo o fluxo das correntes marítimas sob minhas pernas, sem me afundar na água ou ser violentamente dilacerado pela vida animal que pouco tomaria nota da minha presença inútil ali. Imagino-me assim, pois, em um completo estado de distanciamento, de olhos bem abertos, experienciando a mais terrivelmente sublime das imensidões solitárias e das solidões imensas do ser.
Assim naufrago no isolamento ensimesmado dentro de meu próprio desengano, mas com a sutil diferença de sentir a traição dos sentidos, pois que eles não me permitem ausentar-me a essa maneira da grande máquina que gira à revelia de qualquer intervenção – humana, animal, cósmica ou divina. A atração gravitacional que assola os impulsos do meu corpo em direção a essa roda incessante faz do retorno ambiguidade: em qual dos dois estados se estaria mais próximo da realidade?
Levantar o olhar novamente através das grades da janela para a maré de prédios sob a cacofônica rapsódia de construções civis, veículos automotores e vozes alheias fez cruzar em meus pensamentos versos daquele a quem gosto de apelidar “O Poeta Desterrado”:
Eu me engano: a região esta não era; Mas que venho a estranhar, se estão presentes Meus males, com que tudo degenera.
É de muito difícil compreensão e racionalização a experiência do isolamento. Criou-se uma dependência vital de controle, planejamento, que por ora escapa completamente às nossas ações e segue rumo peremptório desconhecido – talvez muito mais próximo do retorno ao vazio imenso do qual somos provenientes do que se possa prever ou sequer imaginar. A completa modificação do espaço se confunde com a total virgindade da paisagem oceânica: daqui, de dentro, o que altera a experiência, o que degenera o espaço com o qual convivemos é o olhar atordoado de quem se viu perdido em um universo de rumos randômicos.
Não há, nem aqui, nem lá, possibilidade de construção de sentido – por mais que se empenhe toda a energia humana na construção deste trilho, a distância (aparente ou não) é infinita, e a terra firme não passa de uma ilusão. Sinto como se o fluxo das correntes marítimas naquele ponto, o mais distante do oceano, fosse subitamente interrompido, e meu corpo, atônito, finalmente afundasse.
13 de abril de 2021.
Devaneios de um viajante solitário
Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.
Oiê! Na lista de hoje, elencamos oito romances (e uma surpresa!) para quem quer começar a se aventurar pelos mares da ficção científica. A lista inclui desde textos muito antigos e canonizados a outros menos conhecidos, mas que têm conquistado seu lugar entre os destaques do gênero! Além desses, muitos outros seriam dignos de entrar numa lista dos melhores ou mais importantes – e é também por isso que não vamos colocar os romances indicados nesse tipo de competição: afinal, tem espaço pra todo mundo, não é mesmo?
Ainda assim, os romances escolhidos foram selecionados a dedo por uma aca-fan que tem buscado conhecer mais desse imenso universo literário! Vamos embarcar nessa com a gente? 😃
1. Frankenstein, de Mary Shelley (1818)
O clássico de Mary Shelley foi considerado por Brian Aldiss o primeiro romance de ficção científica já escrito. 😮 E nós também achamos que ele merece a honraria! Afinal de contas, o célebre romance de Shelley mistura elementos da literatura gótica e de horror com extrapolações dos avanços científicos no campo da biologia e da medicina. Brincando de deus, Frankenstein criou um monstro – um que vive no mundo, e um que habita dentro de si. Mas qual dos dois será mesmo o pior? 🧠🦴🧟
2. Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne (1864)
Outro autor que merece destaque no campo da ficção científica é Júlio Verne, que escreveu, dentre tantas histórias, Vinte mil léguas submarinas, A volta ao mundo em 80 dias, A ilha misteriosa e Viagem ao centro da Terra, que escolhemos para entrar nessa lista. Apesar de ser considerado um dos pais do gênero ficção científica, os livros de Júlio Verne costumam aparecer mais ligados às histórias de aventura – como se um um livro de sci-fi não pudesse ser ao mesmo tempo uma aventura! Em Viagem ao centro da Terra, um cientista e seu sobrinho, acompanhados de um guia islandês, conseguem descer pelo interior da crosta terrestre, e lá encontram todo um mundo desconhecido, que contém desde dinossauros e homens das cavernas aos mais estranhos animais imaginários! Com certeza, é um dos livros que não poderia passar batido! 💛
3. A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells (1898)
Outro clássico indispensável na lista dos romances de ficção científica é A guerra dos mundos, de H. G. Wells – outro nome incontornável do gênero! Inventor de diversos temas que se tornaram convenções na escrita do sci-fi, em A guerra dos mundos, Wells nos apresenta uma invasão marciana narrada em primeira pessoa por uma de suas testemunhas. Nesse contexto, o poder bélico dos alienígenas é tão superior ao dos seres humanos que pouco resta à nossa pobre espécie senão se resignar ao massacre. Mas nem tudo está perdido! E a narrativa de Wells mostra como acontece de os seres mais subestimados se tornarem os heróis da vez.
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4. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932)
No mais conhecido livro de Huxley, entramos em contato com a primeira distopia da lista! – Sim, distopias também são ficção científica! Nesse mundo, os bebês são criados em laboratório e condicionados – química e psicologicamente – a agir de acordo com suas castas: alfas e betas ganham os melhores cargos e luxos, enquanto deltas e gamas vivem mecanicamente suas vidas de exploração, e todos são viciados em soma, uma droga para aliviar o vazio dessa vida medonha! Mas tudo começa a dar errado quando Bernard, o protagonista, começa a questionar a superficialidade da sua existência, almejando mais, ainda que permaneça guiado por princípios fúteis. Ao fazer uma viagem a uma “reserva”, onde vivem os povos que não foram atingidos por essa civilização, Bernard e a moça que está tentando impressionar conhecem John, o selvagem, que volta com eles para o mundo moderno. A partir desse ponto, é só confusão atrás de confusão – e garanto que, pelo desenrolar da história, Huxley não parecia nada otimista quanto ao futuro que imaginou! 🚁
5. Blade Runner: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick (1968)
Nessa narrativa, acompanhamos um caçador de androides, que trabalha “aposentando” (um eufemismo para matando) um grupo específico de andys, que teria fugido da colônia em Marte para viver livremente na Terra. Alternadamente, assistimos à vida mais monótona, e mais sensível, de Isidore, um “cabeça de galinha”, afetado pela poeira radioativa que atingiu todo o planeta. O livro aborda diversos temas da maior importância, como a religião e a nossa relação com os animais, mas sem dúvidas o tema que mais chama a atenção é a dificuldade da distinção entre os que são e os que não são humanos, pois nesse mundo os androides fugitivos são praticamente idênticos a nós. Para distingui-los, o caçador Deckard aplica um teste de empatia e no contexto do livro, é o resultado desse teste o que justifica o assassinato a sangue frio e a absurda desumanização dos androides. Por essas e outras, as questões que Blade Runner levanta continuam mais que atuais – e a leitura, por si mesma, é muito envolvente.
6. A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin (1969)
No romance de Le Guin, o embaixador Genly Ai visita o planeta Gethen para convencer seus líderes a se unir à Liga de Todos os Mundos (algo como a ONU, ou parecido). Mas Genly se depara com entraves de um tipo inesperado: o fato de os gethenianos não possuírem as nossas formas de gênero – não sendo nem homens, nem mulheres. Além de discutir os papeis de gênero, A mão esquerda da escuridão também proporciona reflexões muito válidas sobre a amizade, a lealdade e as dinâmicas da vida política, e isso tudo sem falar na incrível aventura no gelo que se passa por volta da segunda metade do livro!
Vale lembrar que esse romance é considerado um dos pioneiros no subgênero de ficção científica feminista, que também conta com grandes nomes como os de Joanna Russ (The female man) e Angela Carter (A paixão da nova Eva). 💋💪
7. Matadouro Cinco, de Kurt Vonnegut (1969)
O romance de Vonnegut é instigante por várias razões: além de ser fragmentado e pós-moderno, ele apresenta uma narrativa muito próxima à vida pessoal do escritor, um dos sobreviventes ao bombardeio na cidade alemã de Dresden, durante a Segunda Guerra Mundial. No livro, o personagem central viaja no tempo – e no espaço – entre seu futuro como um optometrista casado e com filhos, que leva uma vida relativamente tranquila, e os momentos do passado, em que era ainda um jovem soldado tentando sobreviver à dura realidade como prisioneiro de guerra. Além disso, o personagem também conta de suas viagens ao planeta Tralfamadore, para onde teria sido sequestrado para servir de reality show aos tralfamadorianos.
O livro deixa livre a interpretação quanto à questão das viagens no tempo – se seriam, de fato, viagens reais ou viagens na memória. Independentemente disso, é uma obra que vale a leitura, sendo um dos bons exemplos de como a ficção científica também pode servir a repensar os traumas da nossa história.
8. Kindred:Laços de Sangue, de Octavia E. Butler (1979)
No romance Kindred – Laços de família você vai acompanhar a história de Dana, uma jovem escritora afro-americana, que de repente viaja para o tempo de seu tataravô, Rufus: um menino branco e filho único de uma família latifundiária do sul dos Estados Unidos. Só que o salto temporal de Dana é um mistério que o livro de Butler não soluciona: não há qualquer sugestão de tecnologias, sofisticadas ou não, que sejam capazes de romper a barreira do tempo – uma das razões porque, vez por outra, aparece a dúvida quanto ao enquadramento do romance na categoria de ficção científica, o que pesa ainda mais por ser uma narrativa muito próxima à história e às questões pós-coloniais.
Agora, um detalhe interessante e que corrobora a ideia de se tratar de uma ficção científica é a posição de Dana em relação à maior parte das personagens da trama. Pelo fato de o período histórico para o qual ela foi transportada ser antes da guerra civil americana, Dana se vê como uma espécie de alienígena: incapaz de se comunicar e agir da forma que conhece e sendo sempre vista com desconfiança, como uma “pessoa fora do lugar”. 👽 E aí, o que você acha?
Bônus:A Verdadeira História da Ficção Científica, de Adam Roberts (2018)
Se você se interessou pelo gênero e gostaria de ler mais sobre suas questões históricas e teóricas, uma ótima recomendação é o livro A verdadeira história da ficção científica, de Adam Roberts!
Nele, o autor apresenta algumas das muitas definições de sci-fi e o desenvolvimento histórico do gênero, passando pelas suas origens entre os séculos XVI e XIX, as revistas pulp e os sucessos nas telas de cinema.
O livro é dividido em 16 capítulos, sendo que o último é sobre a ficção científica do século XXI. A primeira publicação do livro, em inglês, foi feita em 2005, mas foi em 2018 que chegou para o público brasileiro pela editora Seoman.
O que achou da nossa lista? E o que mais você acha que deveria aparecer por aqui? Conta pra gente! Vamos adorar te ouvir ♥