Cantando os clássicos da literatura brasileira

Que tal experimentar o resultado sonoro do cruzamento entre literatura e música? No post de hoje, preparamos uma pequena lista com oito canções, compostas a partir de alguns clássicos da literatura brasileira, que reafirmam a beleza das produções que tiveram seu solo fecundado pelo grão literário.

Nós já contamos aqui no Duras sobre a relação histórica, e até crítica, que a literatura brasileira tem com a música popular nacional, especificamente com a MPB. No post O que a MPB tem a ver com Literatura? passamos por algumas perspectivas teóricas que elucidam tanto a formação de uma área de pesquisa no campo da canção, quanto pelas encruzilhadas criadas nessa zona de estudo. Se você ainda não conferiu este post, ele está disponível aqui:

Mas, se você já conferiu, vamos ao que interessa!

Literatura na canção ou canção na literatura? Dividindo as músicas selecionadas entre da poesia e da prosa, tivemos por objetivo mostrar como tanto um gênero quanto o outro são utilizados para a produção de obras maravilhosas de nosso repertório musical nacional.

Da poesia

Comecemos pela poesia, pois sua passagem para a canção parece um pouco mais simples do que quando tratamos do texto literário em prosa. A seguir, você confere quatro musicalizações de poemas escritos por grandes nomes da literatura brasileira e que, a partir de melodias primorosas, têm seu sentido expandido.

Anoitecer, de Drummond e José Miguel Wisnik

Entre as musicalizações feitas sobre poemas brasileiros, a de “Anoitecer”, do livro Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, está entre as minhas favoritas. Wisnik e seu piano abrem a canção mimetizando a delicadeza das badaladas de um sino interiorano, que anuncia a chegada do fim do expediente, do tempo de descanso, o qual, nem na música, nem no poema, está desprovido de melancolia e nostalgia, de uma relação conturbada com o futuro e com o passado.

Funeral de um lavrador, de João Cabral e Chico Buarque

Composta para uma peça que se inspirou em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, “Funeral de um lavrador” é uma musicalização que trás um trecho integral do texto que o inspira. A composição de Chico é de 1966 e está entre seus primeiros trabalhos como artista da canção. Essa juventude do autor, contudo, não corrobora para que sua melodia deixe a desejar em relação à letra; na verdade, a força que o músico empresta para o texto de João Cabral abre novas camadas de sentido, colocando em cena um violão arrastado e um coro que acompanha a voz do cantador como a sombra da miséria, repetindo suas lamúrias.

Motivo, de Cecília Meirelles e Raimundo Fagner

Agora, se as duas canções anteriores nos colocam diante de uma tristeza aguda, com condições sociais muito bem marcadas (o mundo do pós-guerra, no caso de Drummond, e o sertão agressivo, de João Cabral), essa que Fagner interpreta a partir do poema “Motivo”, do livro Viagem, de Cecília Meireles, ombreia melancolia e alegria. A visão deixa as nuvens baixas do trágico mundo moderno para alcançar também uma dimensão sublime, de aceitação e acordo com o fim iminente, recebido sem alegria ou tristeza, mas com poesia e canto.

Dor elegante, de Paulo Leminski e Itamar Assumpção

Algo parecido acontece com o poema de Paulo Leminski, musicado por Itamar Assumpção, “Dor elegante”. A tristeza, ou, mais especificamente, a dor, é colocada como ponto alto da elegância, como troféu/riqueza e como único bem que o sujeito tem de fato. Essa dimensão da dor, tocada por instrumentos pesados e inscrita em Pretobrás, ganha um novo significado, na medida em que passa também a ser uma dor social e estética, o que acontece tanto com a posição de mulher em um país machista – abarcada pela voz de Zélia Duncan – quanto pela de negro e marginalizado, pela qual passou Itamar em relação à sociedade e à tradição musical brasileira.

Da prosa

Já quando tratamos da passagem da prosa para a canção, essa costuma contar com muito mais liberdade interpretativa do que quando a fonte é a poesia, uma vez que a extensão do romance precisa, muitas vezes, ser reduzida a algumas poucas linhas. O compositor procura encontrar os pontos chave do texto, os instrumentos capazes de comunicar sensações causadas pela obra e um acordo entre essas duas instâncias, textual e sonora.

Modinha para Gabriela, de Jorge Amado e Dorival Caymmi

Inspirada pelo brilhante romance de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela, a “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi, capta pelo menos duas das facetas dessa personagem apaixonante: um lado confessional e recluso, carregado de qualquer tom de timidez, próprio ao silêncio do retirante, daquele que precisa dar explicações; e outro despojado, da Gabriela das festas, autêntica e brincalhona, que deixa transparecer toda sua sensualidade e alegria.

A hora da estrela, de Clarice Lispector e Pato Fu

Talvez, alguém que não leu A hora da estrela, de Clarice Lispector, se engane ao escutar essa canção. Na passagem do texto para a letra, os signos trágicos que recheiam a prosa da célebre escritora e antecipam o fim de Macabeia se destilaram em um tom melancólica e sutil, que traz consigo toda a esperança que a própria personagem parece ter para sua jornada. Nesse sentido, é uma composição brilhante, uma vez que assume a perspectiva da protagonista, que se mantém de fato alienada em relação a seu destino e que está pronta para mudar sua vida para sempre, sofrendo um acidente, no mínimo, ridículo.

Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, Milton Nascimento e Caetano Veloso

Essa com toda certeza é uma das mais belas produções já feitas na seara da música brasileira. A forma como Caetano Veloso conseguiu captar as palavras chave de Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, e colocá-las em sua canção homônima, feita em parceria com Milton Nascimento, chega a assustar, de tão impressionante. A língua se mistura com os instrumentos de percussão e corda e com o balanço pelo qual essa canção nos carrega, misturando versos fortes e precisos, nas margens entre a palavra e seu som, entre prosa da palavra e Rosa da palavra.

Capitu, de Machado de Assis e Luiz Tatit

Escrita por Luiz Tatit, musicólogo e teórico da canção brasileira, a letra de “Capitu” lança um novo olhar sobre a divina personagem machadiana, que veleja, desde seu velho mundo do século dezenove, até o litoral contemporâneo da internet. O recurso dos ecos e o tom direcionado e pequeno da voz que canta muito nos lembram das sombras de Bento Santiago, narrador do Dom Casmurro, de Machado, que insiste na infidelidade da esposa: mulher hábil, poderosa, ambígua, atraente, virtualmente – pois Bentinho chega ao delírio – amada e amante.

É claro que poderíamos acrescentar muitas outras canções a esta lista, que apenas tateia o vasto universo da literatura dentro da música popular brasileira. Por esse motivo, criamos uma pequena playlist, que traz algumas outra faixas, para embalar suas memórias literárias das horas vagas.

Para fechar o post, gostaríamos de fazer um breve comentário sobre a relação tão produtiva entre as duas artes, música e literatura. Começamos por lembrar que não existe musicalização que estrague um poema ou uma narrativa (um absurdo que frequentemente aparece no discurso, principalmente quando alguém, por acaso, não gosta de uma versão cantada do texto literário). Assim como na tradução, toda passagem de uma coisa para outra depende da interpretação do artista, interpretação da qual podemos discordar, sem que isso alcance o texto fonte propriamente dito.

Pensando nisso, para você, o que os textos que serviram de inspiração ganharam com suas versões cantadas, citadas acima? Se você considera que houve uma perda, qual foi ela? Conta para gente nos comentários!

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