Conto – “Primeiro de Maio”, de Mário de Andrade

Apresentação

Todo ano, neste dia de 01/05, feriado para uns, dia comum para outros, eu volto ao conto de Mário de Andrade, publicado entre seus Contos Novos. É um texto que me faz rir bastante, não só por sua linguagem e pelas aspirações fantasiosas e esperançosas do operário 35 (personagem central da narrativa), mas principalmente pela atualidade da questão trabalhista no Brasil e de nosso cotidiano teatro das conquistas.

Há algum tempo atrás, cheguei a escrever um pequeno ensaio sobre “Primeiro de Maio”, que está disponível aqui no Duras Letras – deixo, abaixo, o link para acesso. Por isso, não vou tomar muito tempo com esta introdução: o conto fala por si só, assim como o nome de seu autor.

https://durasletras.com/2018/09/04/breve-analise-do-conto-primeiro-de-maio-de-mario-de-andrade/

No mais, feliz Dia dos Trabalhadores!

Primeiro de Maio

Texto de Mário de Andrade

No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar.

Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.

Dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.

Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas ruças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.

O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer… Comunismo? … Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas ruças dum polícia… A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.

Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar… E o 35 comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.

Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.

E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E continuou no passo em férias.

Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!…” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons… Depois vinham as notícias. Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as ruças de algum… polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.

Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino…), é melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos menos… O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais degradantemente desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem siquer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de
bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado
de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quasi trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas
brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua ter-
ra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.

O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de “motim”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.

Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.

Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandando assim na gente… O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.

Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:

— Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no parque ninguém não pára não!

Cabeças-chatas… E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.

O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.

Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro…

Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus “proletários” também.

E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.

Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: “Assim não serve não! As malas não vão não!” Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas “não largavam não”, só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.

O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.

— Deixe que te ajudo, chegou o 35.

E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.

Poema em prosa – “Quimera”, de Otávio Moraes

Foto de capa: Reflection with Two Children (Self-portrait) (1965) – Lucian Freud. Disponível em: dasartes.

Manhã, domingo, céu bembranco, o tempo preguiçando. Homem velho, contra o espelho, assemelhando avô velho. Homem velho é o desde sempre. Posição desigual cabe ao moço, mocidade é o mundo no novo, Deus, antes da canseira, brincandopracimadaságuas. Moço, ainda verde, é pai e mãe do próprio umbigo. Assim ruminava; assim nebulava; assim deduzia; o homem velho concreto e irreversível, tudo isso estanciado na cama. Homem velho, felino malpropício despelando preguiçoso, coçava as costas, ainda cabia n’um corpo. Filhos? Dois’homem pais d’outros home num sem-fim de picas ao leu. Casado? Uma vez, depois amasiado, depois desacompanhado de tudo. Sobraram zolhos molhados d’um vermelho raivechoro. O homem velho absurdava, nos redemonomes: Zumira, Raian, Bonifácio, Almeida, Soraia, Luzia, Carlão, Lucinda, Jeremias, Itamar, Clarice, Emília, Josué, Euclides, Nair, Leopoldo, Nara, Tadeu, Zumira, Pedro Henrique, Margareth, Lu… O homem velho trepava sonambulento o corpo das putas, ancas cor de canela, pernabraços, língua enorme avançando, seu sexo, um colar, cabeças de homem, febrava, ardia, água, mel e leite.  Nublava no catre, arquipélago de nomes, calava. Domingo é o breu, as águas bem frias. Domingo, folgava. Homem velho é mundo, mundo desalumiando gato manso,

Homemvelh…

Nem isso.

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“O homem velho” – em Velô (1985), de Caetano Veloso

Conto – “Briga das pastoras”, de Mário de Andrade

Chegáramos à sobremesa daquele meu primeiro almoço no engenho e embora eu não tivesse a menor intimidade com ninguém dali, já estava perfeitamente a gosto entre aquela gente nordestinamente boa, impulsivamente generosa, limpa de segundos pensamentos. E eu me pus falando entusiasmado nos estudos que vinha fazendo sobre o folclore daquelas zonas, o que já ouvira e colhera, a beleza daquelas melodias populares, os bailados, e a esperança que punha naquela região que ainda não conhecia. Todos me escutavam muito leais, talvez um pouco longínquos, sem compreender muito bem que uma pessoa desse tanto valor às cantorias do povo. Mas concordando com efusão, se sentindo satisfeitamente envaidecidos daquela riqueza nova de sua terra, a que nunca tinham atentado bem.

Foi quando, estávamos nas vésperas do Natal, da “Festa” como dizem por lá, sem poder supor a possibilidade de uma rata, lhes contei que ainda não vira nenhum pastoril, perguntando se não sabiam da realização de nenhum por ali.

— Tem o da Maria Cuncau, estourou sem malícia o Astrogildo, o filho mais moço, nos seus treze anos simpáticos e
atarracados, de ótimo exemplar “cabeça chata”.

Percebi logo que houvera um desarranjo no ambiente. À sra. dona Ismália, mãe do Astrogildo, e por sinal que linda senhora de corpo antigo, olhara inquieta o filho, e logo disfarçara, me respondendo com firmeza exagerada:

— Esses brinquedos já estão muito sem interesse por aqui… (As duas moças trocavam olhares maliciosos lá no fundo da mesa, e Carlos, a esperança da família, com a liberdade de seus vinte e dois anos, olhava a mãe com um riso sem ruído, espalhado no rosto). Ela porém continuava firme: pastoril fica muito dispendioso, só as famílias é que faziam… antigamente. Hoje não fazem mais.

Percebi tudo. A tal de Maria Cuncau certamente não era “família” e não podia entrar na conversa. Eu mesmo, com a maior naturalidade, fui desviando a prosa, falando em bumba meu boi, cocos, € outros assuntos que me vinham agora apenas um pouco encurtados pela preocupação de disfarçar. Mas o senhor do engenho, com o seu admirável, tão nobre quanto antidiluviano cavanhaque, até ali impassível à indiscrição do menino, se atravessou na minha fala, confirmando que eu deveria estar perfeitamente à vontade no engenho, que os meus estudos haviam naturalmente de me prender noites fora de casa, escutando os “coqueiros”, que eu agisse com toda a liberdade, o Carlos havia de me acompanhar. Tudo sussurrado com lentidão e uma solicitude suavíssima que me comoveu: Mas agora, com exceção do velho, o mal-estar se tornara geral. A alusão era sensível e eu mesmo estava quase estarrecido, se posso me exprimir assim. Por certo que a Maria Cuncau era pessoa de importância naquela família, não podia imaginar o que, mas garantidamente não seria apenas alguma mulher perdida, que causasse desarranjo tamanho naquele ambiente.

Mas foi deslizantemente lógico todos se levantarem pois que o almoço acabara, e eu senti dever uma carícia à sra. dona Ismália, que não podia mais evitar um certo abatimento naquele seu mutismo de olhos baixos. Creio que fui bastante convincente, no tom filial que pus na voz pra lhe elogiar os maravilhosos pitus, porque ela me sorriu, e nasceu entre nós um desejo de acarinhar, bem que senti. Não havia dúvida: Maria Cuncau devia ser uma tara daquela família, e eu me amaldiçoava de ter falado em pastoris. Mas era impossível um carinho entre mim e a dona da casa, apenas conhecidos de três horas; e enquanto o Carlos ia ver se os cavalos estavam prontos para o nosso passeio aos partidos de cana, fiquei dizendo coisas meio ingênuas, meio filiais à sra. dona Ismália, jurando no íntimo que não iria ao Pastoril da Maria Cuncau. E como num momento as duas moças, ajudando a criadinha a tirar a mesa, se acharam ausentes, não resisti mais, beijei a mão da sra. dona Ismália. E fugi para o terraço, lhe facilitando
esconder as duas lágrimas de uma infelicidade que eu não tinha mais direito de imaginar qual.

O senhor do engenho examinava os arreios do meu cavalo. Lhe fiz um aceno de alegria e lá partimos, no arranco dos animais fortes, eu, o Carlos, e mais o Astrogildo num petiço atarracado e alegre que nem ele. A mocidade vence fácil os mal-estares. O Astrogildo estava felicíssimo, no orgulho vitorioso de ensinar o homem do sul, mostrando o que era boi, o que era carnaúba; e das próprias palavras do mano, Carlos tirava assunto pra mais verdadeiros esclarecimentos, Maria Cuncau ficara pra trás, totalmente esquecida.

Foram três dias admiráveis, passeios, noites atravessadas até quasi o “nascer da bela aurora”, como dizia a toada, na conversa e na escuta dos cantadores da zona, até que chegou o dia da Festa. E logo a imagem da Maria Cuncau, cuidadosamente escondida aqueles dias, se impôs violentamente ao meu desejo. Eu tinha que ir ver o Pastoril de Maria Cuncau. O diabo era o Carlos que não me largava, e embora já estivéssemos amigos íntimos e eu sabedor de todas as suas aventuras na zona e farras no Recife, não tinha coragem de tocar no assunto nem meios pra me desvencilhar do rapaz. Nas minhas conversas com os empregados € cantadores bem que me viera uma vontadinha de perguntar quem era essa Maria Cuncau, mas si eu me prometera não ir ao Pastoril da Maria Cuncau! por que perguntar!… Tinha certeza que ela não me interessava mais, até que com a chegada da Festa, ela se impusera como uma necessidade fatal. Bem que me sentia ridículo, mas não podia comigo.

Foi o próprio Carlos quem tocou no assunto. Delineando o nosso programa da noite, com a maior naturalidade deste mundo, me falou que depois do Bumba que viria dançar de-tardinha na frente da casa-grande, daríamos um giro pelas rodas de coco, fazendo hora pra irmos ver o Pastoril da Maria Cuncau. Olhei-o e ele estava simples, como se não houvesse nada. Mas havia. Então falei com minha autoridade de mais velho:

— Olhe, Carlos, eu não desejava ir a esse pastoril. Me sinto muito grato à sua gente que está me tratando como não se trata um filho, e faço questão de não desagradar a… a ninguém.

Ele fez um gesto rápido de impaciência:

— Não há nada! isso é bobagem de mamãe!… Maria Cuncau parece que… Depois ninguém precisa saber de nada, nós voltamos todos os dias tarde da noite, não voltamos?… Vamos só ver, quem sabe si lhe interessa… Maria Cuncau é uma velha já, mora atrás da “rua”, num mocambo, coitada…

E veio a noitinha com todas as suas maravilhas do Nordeste. Era uma noite imensa, muito seca e morna, lenta, com aquele vaguíssimo ar de tristeza das noites nordestinas. O bumba meu boi, propositalmente encurtado pra não prender muito a gente da casa-grande, terminara lá pela meia-noite. A sra. dona Ismália se recolhera mais as filhas e a raiva do Astrogildo que teimava em nos acompanhar. O dono da casa desde muito que dormia, indiferente àquelas troças em que, como lhe escapara numa conversa, se divertira bem na mocidade, Retirado o grande lampião do
terraço, estávamos sós, Carlos e eu. E a imensa noite. O pessoal do engenho se espalhara. Os ruídos musicais se alastravam no ar imóvel. Já desaparecera nalguma volta longe do caminho, o rancho do Boi que demandava a rua, onde ia dançar de novo o seu bailado até o raiar do dia. Um “chama” roncava longíssimo, talvez nalgum engenho vizinho, nalguma roda de coco. As luzes se acendiam espalhadas como estrelas, eram os moradores chegando em suas casas pobres. E de repente, lá para os lados do açude onde o massapê jazia enterrado mais de dois metros no areião, desde a última cheia, depois de uns ritmos debulhados de ganzá, uma voz quente e aberta, subira noite em fora, iniciando um coco bom de sapatear.

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

Era sublime de grandeza. A melancolia da toada, viva e ardente, mas guardando um significado íntimo, misterioso, quasi trágico de desolação, casava bem com a meiga tristeza da noite.

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

E as risadas feriam o ar, os gritos, o coco pegara logo animadíssimo, aquela gente dançava, sapateava na dança, alegríssima, 0 coro ganhava amplidão no entusiasmo, as estrelas rutilavam quasi sonoras, o ar morno era quasi sensual, tecido de cheiros profundos. E era estranhíssimo. Tudo cantava, Cristo nascia em Belém, se namorava, se ria, se dançava, a noite boa, o tempo farto, o ano bom de inverno, vibrava uma alegria enorme, uma alegria sonora, mas em que havia um quê de intensamente triste. E um solista espevitado, com uma voz lancinante, própria de aboiador, fuzilava sozinho, dilacerando o coro, vencendo os ares, dominando a noite:

Vô m'imbora, vô m'imbora
Pá Paraíba do Norte!...

E o coro, em sua humanidade mais serena:

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

Nós caminhávamos em silêncio, buscando o Pastoril e Maria Cuncau. Minha decisão já se tornara muito firme pra que eu sentisse qualquer espécie de remorso, havia de ver a Maria Cuncau. E assim liberto, eu me entregava apenas, com delícias inesquecíveis, ao mistério, à grandeza, às contradições insolúveis daquela noite imensa, ao mesmo tempo alegre e triste, era sublime, E o próprio Carlos, mais acostumado e bem mais insensível, estava calado. Marchávamos rápido, entregues ao fascínio daquela noite da Festa.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais degradantemente desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem siquer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de
bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado
de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quasi trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas
brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua terra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Maria Cuncau, assim que nos vira, empalidecera muito sob o vermelho das faces, obtido com tinta de papel de seda. Mas logo se recobrara, erguera o rosto, sacudindo pra trás a violenta cabeleira agrisalhada, ainda voluptuosa, e nos olhava com desafio. Rebolava agora com mais cuidado, fazendo um esforço infinito pra desencantar do fundo da memória, as graças antigas que a tinham celebrizado em moça. E era sórdido. Não se podia siquer supor a sua beleza falada, não ficara nada. A não ser aquele vestido de lantejoulas rutilantes, que pendiam, num ruidinho escarninho, enquanto Maria Cuncau malhava os ossos curtos, frágil, baixinha, olhos rubescentes de alcoolizada, naquele reboleio de pastora.

Quando dei tento de mim, é que a coisa acabara, com uns fracos aplausos em torno e as risadas altas dos homens. As pastoras se dispersavam na sala, algumas vinham se esconder no sereno, passando por nós de olhos baixos, encabuladíssimas. Carlos, bastante inconsciente, examinava sempre os manejos da Diana moça, na sua feroz animalidade de rapaz. Mas eu lhe tocava já no braço, queria partir, me livrar daquele ambiente sem nenhum interesse folelórico, e que me repugnava pela sordidez. Maria Cuncau, que fingindo conversar com as mulheres da sala,
enxugava muito a cara, nos olhando de soslaio, adivinhou minha intenção. Se dirigiu francamente pra nós e convidou, meio apressada mas sem nenhuma timidez, com decisão:

— Os senhores não querem adorar a lapinha!…

Decerto era nisso que todas aquelas mulheres pensavam porque num segundo vi todas as pastoras me olhando na sala e as que estavam de fora se chegando à janelinha pra me examinar, Percebi logo a finalidade do convite, quando cheguei junto da lapinha, enquanto o Carlos se atrasava um pouco, tirando um naco desajeitado de conversa com a Diana. Os outros assistentes também desfilavam junto ao presépio, parece que rezavam alguma coisa, e alguns deixavam escorregar qualquer níquel num pires colocado bem na frente do Menino-Deus. Fingi contemplar
com muito respeito a lapinha, mas na verdade estava discutindo dentro comigo quanto daria. Já não fora pouco o que o rancho do Boi me levara, e aliás as pessoas da casa-grande estavam sempre me censurando pelo muito que eu dava aos meus cantadores. Puxei a carteira, decidido a deixar uns vinte milréis no pires. Seria uma fortuna entre aqueles níqueis magriços em que dominava uma única rodela mais volumosa de cruzado. Porém, se ansiava por sair dali, estava também muito comovido com toda aquela miséria, miséria de tudo. A Maria Cuncau então me dava
uma piedade tão pesada, que já me seria difícil especificar bem si era comiseração si era horror.

Sinto é maltratar os meus leitores. Este conto que no princípio parecia preparar algum drama forte, e já está se tornando apenas uma esperança de dramazinho miserável, vai acabar em plena mesquinharia. Quando puxei a carteira, decidido a dar vinte mil-réis, a piedade roncou forte, tirei com decisão a única nota de cinquenta que me restava da noite e pus no pires. Todos viram muito bem que era uma nota, e eu já me voltava pra partir, encontrando o olho de censura que o Carlos me enviava. O mal foi um mulatinho esperto, não sei si sabia ler ou conhecia dinheiro, que estava junto de mim, me devorando os gestos, extasiado. Não pôde se conter, casquinou uma risada estrídula de comoção assombrada, e apenas conseguiu ainda agarrar com a mão fechada a enorme palavra-feia que esteve pra soltar, gritou:

— Pó… cincoentão!

Foi um silêncio de morte. Eu estava desapontadíssimo, ninguém me via, ninguém se movia, as pastoras todas estateladas, com os olhos fixos no pires. Carlos continuava parado, esquecido. da Diana que também não o via mais, olhava o pires. E ele sacudia de leve o rosto para os lados, me censurando.

— Vamos, Carlos.

E nos dirigimos para a porta da saída. Mas nisto, aquela pastora do cordão encarnado que estava mais próxima da lapinha, num pincho agílimo (devia estar inteiramente desvairada pois lhe seria impossível fugir), abrindo caminho no círculo apertado, alcançou o pires, agarrou a nota, enquanto as outras moedinhas rolavam no chão de terra socada. Mas Maria Cuncau fora tão rápida como a outra, encontrara de peito com a fugitiva, foi um baque surdo, e a luta muda, odienta, cheia de guinchos entre as duas pastoras enfurecidas. Nós nos voltáramos aturdidos com o caso e a multidão devorava a briga das pastoras, também pasma, incapaz de socorrer ninguém. E aqueles braços se batiam,
se agarravam, se entrelaçavam numa briga chué, entre bufidos selvagens, até que Maria Cuncau, mordendo de fazer sangue o punho da outra, lhe agarrou a nota, enfiou-a fundo no seio, por baixo da faixa azul apertada. A outra agora chorava, entre borbotões de insultos horríveis.

— É da lapinha! que Maria Cuncau grunhia, se encostando na mesa, esfalfada, É da lapinha!

Os homens já se riam outra vez com caçoadas ofensivas, e as pastoras se ajuntando, faziam dois grupos em torno das briguentas, consolando, buscando consertar as coisas.

Partimos apressados, sem nenhuma vontade ainda de rir nem conversar, descendo por entre as árvores, com dificuldade, desacostumados à escureza da noite. Já estávamos quasi no fim da descida, quando um ruído arrastado de animal em disparada, cresceu por trás de nós. Nem bem eu me voltara que duas mãos frias me agarraram pela mão, pelo braço, me puxavam, era Maria Cuncau. Baixinha, magríssima, naquele esbulho grotesco de luz das lantejoulas, cabeça que era um ninho de cabelos desgrenhados…

— Moço! ôh moço!… me deixa alguma nota pra mim também, aquela é da lapinha!… eu preciso mais! aquela é da lapinha, moço!

.Aí, Carlos perdeu a paciência, Agarrou Maria Cuncau com aspereza, maltratando com vontade, procurando me libertar dela:

— Deixe de ser sem-vergonha, Maria Cuncau! Vocês repartem o dinheiro, que história é essa de dinheiro pra lapinha! largue o homem, Maria Cuncau!

— Moço! me dá uma nota pra… me largue, seu Carlos!

E agora se estabelecia uma verdadeira luta entre ela e o Carlos fortíssimo, que facilmente me desvencilhara dela.

— Carlos, não maltrate essa coitada…

— Coitada não! me largue, seu Carlos, eu mordo!…

— Vá embora, Maria Cuncau!

— Olha, esta é pra…

— Não! não dê mais não! faço questão que…

Porém Maria Cuncau já arrancara o dinheiro da minha mão e num salto pra trás se distanciara de nós, olhando a nota. Teve um risinho de desprezo:

— Vôte! só mais vinte!…

E então se aprumou com orgulho, enquanto alisava de novo no corpo o vestido desalinhado. Olhou bem fria o meu companheiro:

— Dê lembrança a seu pai.

Desatou a correr para o mocambo.

Psicanálise e Suicídio

1.

Suicídio. Poucos assuntos exigem tanta delicadeza para se escrever quanto este. Talvez, em parte, porque o assunto permanece com certo estatuto de tabu, mas em parte, também, porque nos coloca em contato com o sofrimento humano num limite tão extremo que pode ser mais fácil não ver, não falar e não se permitir nem mesmo pensar sobre, com o receio de que, falando abertamente sobre o assunto, possamos “plantar ideias”, ou, para o nosso desconcerto, não saber o que dizer ou fazer.

De um ponto de vista psicanalítico, falar sobre o tema com alguém que tem tido ideações suicidas é mais recomendado que silenciar o assunto, e, é claro, há modos e modos de se fazer isso. Nesse sentido, é importante validar a experiência do sujeito, evitando os juízos morais, os preconceitos (como o de que o suicida “só quer chamar atenção”), ou os bem intencionados (porém surdos) apelos para que melhore logo “pois tudo ficará bem”. Ao invés disso, o que se pode oferecer é uma escuta solidária, que permita ao outro compreender seus sentimentos e a sentir-se menos isolado. Pode parecer pouco, mas mesmo para isso é preciso coragem!

Na clínica psicanalítica lacaniana, trabalha-se com três tempos: tempo de ver, de compreender e de concluir. É na dilatação do tempo de compreender que, frequentemente, um sujeito pode elaborar melhor o seu sofrimento e escolher um destino melhor para si mesmo que o auto-extermínio. Quanto a isso, é curioso que um dos fatores mais criticados da psicanálise, o fato de uma análise ser muito longa, é justamente o que oferece mais chances para o analisante, evitando que ele passe muito depressa do momento de ver (por que está sofrendo) para o de concluir (que o melhor seria morrer).

Na prática, a ambição não precisa ser tão grande: trata-se apenas de adiar a morte, até que se possa encontrar e inventar as razões pelas quais ainda valha a pena viver. O que não tem nada de óbvio.

2.

A adolescência é um período marcado por fortes mudanças, desde o afrouxamento do vínculo com os pais e o luto da infância ao desafio de produzir uma identidade mais compatível com os anseios do jovem em transformação, que podem torná-lo mais suscetível ao comportamento suicida. Além dessas mudanças esperadas e, num certo sentido, desejáveis – mas difíceis –, há outros determinantes no aumento do comportamento de risco, como abusos, disfuncionalidade na dinâmica familiar, bullying, luto, histórico familiar de suicídio e dificuldades de relacionamento.

Além disso, hoje também não se pode desprezar o peso dos ambientes virtuais: é expressivo que o índice de suicídios de garotas adolescentes tenha crescido 65% entre 2010 e 2015, relacionado ao aumento do tempo gasto nos dispositivos digitais, os quais, embora possam ser de muito proveito, estão relacionados a uma amplificação da comparação com os outros, do “fomo” (fear of missing out), da sensação de solidão e da lógica do curto prazo, acentuando a angústia. Esta, por sua vez, se torna ainda mais intratável quando há certa fragilidade por parte do jovem em produzir narrativas a respeito de si mesmo, de modo que o ato prevalece no lugar da fala, tornando-o mais vulnerável, com ou sem intenção deliberada.

Ainda assim, é importante considerar que “a conduta de risco do adolescente é mais uma tentativa de existir do que de morrer”, nos termos de Nassau.* Por isso é tão fundamental olhar com cuidado o caso a caso, e, quando possível, trabalhar no sentido de reforçar os fatores de proteção, que são, entre outros, segurança física e emocional, estabilidade familiar, boa rede de amigos, boas competências de relacionamento e experiências amorosas positivas. Pode não existir a fórmula para a felicidade nem a garantia de que seguindo uma receita dê para estar fora de risco – afinal, como diz Riobaldo, “viver é muito perigoso” –, mas dá pra tentar fazer da existência um fardo menos pesado de se carregar.

Reflexões inspiradas pelas aulas da professora Carolina Nassau, no curso “O suicídio para a psicanálise e suas implicações no manejo clínico com adolescentes” – PSILACS, fevereiro de 2022.

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A família de Édipo: um resumo da tragédia grega

Apresentação

O nome de Édipo é, sem dúvida alguma, um dos mais consagrados da literatura, e sua fama ficou ainda maior quando Sigmund Freud, pai da psicanálise, se valeu do personagem grego para dar sentido a uma questão muito comum entre seus pacientes: o “Complexo de Édipo”. Mas, apesar de a personagem ser uma estrela importante na constelação literária, não é tão comum ouvirmos falar sobre sua origem e, principalmente, sobre sua genealogia: mesmo na clássica trilogia do tragediógrafo Sófocles – que inclui Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona –, nós não vemos presentes os antepassados de Édipo, e suas histórias são apenas levemente mencionadas.

Quem me iluminou quanto a essa ausência foi minha companheira, que lendo o livro A psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bettelheim, comentou sobre um resumo preciso feito pelo psicanalista acerca das histórias que precedem a tragédia familiar de Édipo. E, pensando que o texto não é muito longo, nós decidimos compartilhá-lo aqui no Duras Letras.

Como o interesse principal desta publicação é o drama envolvendo o personagem clássico, tomei a liberdade de retirar do texto de Bettelheim os trechos nos quais ele faz paralelos entre a história edípica e os contos de fada (que são o objeto principal de seu livro). Por isso mesmo, aos que se interessarem por ver o texto integral de Bettelheim, recomendo acessar diretamente o livro do psicanalista.

A genealogia de Édipo – de Tântalo a Ismênia

Texto de Bruno Bettelheim (modificado)

Os contos de fadas não dizem a razão de um pai ser incapaz de apreciar que o filho cresça e o supere, e fique também com ciúmes da criança. Não sabemos porque a rainha em “Branca de Neve” não consegue envelhecer com graça e se satisfazer de modo substitutivo com a transformação e florescimento da menina numa moça adorável, mas algo deve ter acontecido no passado dela que a torna vulnerável e faz com que odeie uma criança que ela deveria amar. O ciclo de mitos de que a estória de Édipo é parte central ilustra como a sequência de gerações pode contribuir para o temor que os pais sentem dos filhos.

Tântalo

Este ciclo mítico, que termina com Os Sete Contra Tebas, começa com Tântalo, que, sendo amigo dos deuses, tentou testar a capacidade deles de saberem de tudo assassinando seu filho Pélope e servindo-o como jantar para os deuses. […] O mito conta que foi a vaidade de Tântalo que motivou sua ação malvada. […] Tântalo, que tentou enganar os deuses apresentando o corpo de seu filho como alimento, sofre eternamente no Inferno, sendo tentado a satisfazer sua fome e sede intermináveis com água e frutos que parecem estar a seu alcance, mas que se retraem quando ele tenta pegá-los. Assim, o crime é castigado no mito […].

Nas estória, a morte não significa necessariamente o fim da vida, pois Pélope é ressuscitado pelos deuses […]. A morte é mais um símbolo de que desejam sumir com esta pessoa – assim como a criança edípica não deseja realmente que o pai-competidor morra, mas simplesmente quer removê-lo de seu caminho para obter a atenção completa do outro pai. […] Tântalo foi um pai disposto a arriscar o bem-estar do filho para alimentar sua vaidade, e isto destruiu a ele e ao filho. Pélope, tendo sido usado desta forma pelo pai, não hesita mais adiante em matar um pai para conseguir seus objetivos.

Pélope

O Rei Enomaus de Elis desejava de modo egoísta guardar sua linda filha, Hipodamia, só para ele, e planejou um esquema no qual disfarçava este desejo e ao mesmo tempo se assegurava de que a filha nunca o deixaria. Qualquer pretendente de Hipodamia tinha que competir com o Rei Enomaus numa corrida de carruagens; se o pretendente ganhasse, podia casar-se com Hipodamia; se perdesse, o rei tinha direito de matá-lo, e ele sempre o fazia. Pélope sub-repticiamente substituiu as barras de cobre da carruagem do rei por outras de cera, e com isso ganhou a corrida, em que o rei morreu.

O mito indica que as consequências também são trágicas se um pai se utiliza erroneamente do filho para suas próprias finalidades, ou se o pai, devido a uma ligação edípica com a filha, tenta privá-la de uma vida própria, ou tirar a vida dos pretendentes.

Atreus e Tiestes

Em seguida, o mito fala das terríveis consequências da rivalidade “edípica” fraterna. Pélope tinha dois irmãos legítimos, Atreus e Tiestes. Por ciúmes, Tiestes, o mais novo dos dois, roubou o carneiro de Atreus, que tinha os pelos de ouro. Em retribuição, Atreus assassinou os dois filhos de Tiestes, e serviu-os como alimento para Tieste em um grande banquete.

Crisipo e Laio

Este não foi o único exemplo de rivalidade fraterna na casa de Pélope. Este tinha também um filho ilegítimo, Crisipo. Laio, o famigerado pai de Édipo, quando jovem encontrara proteção e abrigo na corte de Pélope. Apesar da gentileza de Pélope, Laio não agiu corretamente com ele, pois abduziu – ou seduziu – Crisipo. Podemos considerar que Laio agiu assim por ciúmes de Crisipo, que era preferido por Pélope. Como castigo por este ato de rivalidade, o oráculo de Delfo disse a Laio que ele seria morto pelo próprio filho. Assim como Tântalo destruíra, ou tentara destruir o filho de Pélope, e como Pélope forjara a morte do sogro, Enomaus, também Édipo viria a matar seu pai, Laio. No curso normal dos eventos, um filho substitui o pai – por isso a leitura destas estórias nos fala dos desejos de um filho fazer isto e da tentativa do pai impedi-lo. Mas este mito relata que os atos edípicos por parte dos pais precedem às atuações edípicas por parte dos filhos.

Édipo e Laio

Para impedir que seu filho o matasse, quando Édipo nasceu Laio mandou perfurar os calcanhares do filho e atar seus pés. Ordenou que um pastor levasse Édipo e o abandonasse no deserto para morrer. Mas o pastor […] teve pena da criança; fingiu ter abandonado Édipo, mas entregou o menino aos cuidados de outro pastor. Este levou Édipo a um rei, que o criou como filho.

Quando rapaz, Édipo consultou o oráculo de Delfo e foi-lhe dito que assassinaria o pai e desposaria a mãe. Pensando que o casal de reis que o criara fossem seus pais, Édipo não voltou para casa e ficou vagando, para impedir tal horror. Numa encruzilhada matou Laio, sem saber que era seu pai. Nas suas andanças, chegou até Tebas, resolveu o enigma da Esfinge, e assim libertou a cidade. Como recompensa, casou-se com a rainha – sua mãe viúva, Jocasta. Assim, o filho substituiu o pai como rei e marido; apaixonou-se pela mãe, e esta teve relações sexuais com o filho. Quando a verdade finalmente foi descoberta, Jocasta suicidou-se e Édipo perfurou os próprios olhos; destruiu-os como castigo por não ter visto o que estava fazendo.

Étocles, Polinice e Antígona

Mas a estória trágica não termina aí. Os filhos gêmeos de Édipo, Étocles e Polinice, não o apoiaram nesta miséria, e só sua filha Antígona permaneceu ao seu lado. O tempo passou, e na guerra dos Sete Contra Tebas, Eteocles e Polinice mataram-se um ao outro no combate. Antígona enterrou Polinice contra as ordens do Rei Creonte, e por isso foi morta. Uma rivalidade fraterna intensa é devastadora, como o demonstra o destino dos dois irmãos, mas uma ligação fraterna muito intensa é igualmente fatal, como nos ensina a sorte de Antígona.

Resumindo a variedade de relações que ocasionam morte nestes mitos temos: em vez de aceitar amorosamente o filho, Tântalo sacrifica-o para seus próprios fins; o mesmo faz Laio com Édipo, e os dois pais terminam destruídos. Enomaus morre porque tenta guardar a filha só para si, como também Jocasta, que se liga intimamente ao filho: o amor sexual pelo filho do outro sexo é tão destrutivo quanto um temor concretizado de que a criança do mesmo sexo substitua e supere os pais. Matar o pai do mesmo sexo foi a ruína de Édipo, como também de seus dois filhos que o abandonaram na desgraça. A rivalidade fraterna mata os filhos de Édipo. Antígona, que não renegou o pai, Édipo, mas ao contrário compartilhou sua miséria, morre por uma devoção intensa ao irmão.

Creonte e Ismênia

Mas a estória ainda não se conclui. Creonte, que, sendo rei, condenou Antígona à morte, faz isto contra as súplicas de seu filho, Hemon, que amava Antígona. Destruindo Antígona, Creonte destrói também o filho; mais uma vez, encontramos um pai que não abandona o controle sobre a vida do filho. Hemon, desesperado com a morte de Antígona, tenta matar o pai, e, não o conseguindo, suicida-se; o mesmo sucede com sua mãe, esposa de Creonte, como consequência da morte do filho. A única a sobreviver na família de Édipo é Ismênia, irmã de Antígona, que não estava tão profundamente ligada a nenhum dos pais, nem aos irmãos, e não estava envolvida profundamente com nenhum membro próximo da família. De acordo com o mito, não parece haver saída: quem, por acaso ou por desejo próprio, se envolver profundamente numa relação edípica será destruído.

Referência

• BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Arlene Caetano (Tradução). ed. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 234-237.

Resenha – “Cartas a um jovem terapeuta”, de Contardo Calligaris

Lituraterras n. 1

Nas suas Cartas a um jovem terapeuta (2008), Contardo Calligaris escreve sobre a psicanálise com um tom descontraído e pouco acadêmico, que serve tão bem aos não iniciados quanto aos que já pegaram o bonde (sempre andando) da psicanálise.

Em dezesseis cartas e alguns bilhetes, somos convidados a refletir sobre questões práticas e filosóficas da análise e das psicoterapias, num texto fluido e bem articulado que traz referências históricas, anedotas e “causos” sobre as vivências do autor.

Ao longo delas, Contardo tece comentários sobre as modas entre analistas, tanto as do passado como algumas mais recentes, a história da psicanálise francesa, da qual fez parte, nos anos 1960 e 1970, sua decisão de enveredar por esse caminho e suas ideias sobre o que (se) pode ou não esperar (de) quem deseja seguir a mesma via.

Não deixam de estar presentes, também, reflexões sobre o que é o “normal” para a psicanálise, o que se pode esperar enquanto “cura”, a relação do psicanalista com a ética da sua clínica, tópicos mais ou menos polêmicos – como a importância da infância e da sexualidade para a psicanálise, ou a inutilidade dos conflitos entre psicanálise e neurociências, ou psicanálise e religião –, e sobre as características que o autor considera desejáveis em quem considera a ideia de se tornar analista, as quais reproduzo parcialmente aqui:

  1. Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por mais diferentes que sejam de você.
  2. Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito.
  3. (…) uma certa quilometragem rodada; e
  4. (…) uma boa dose de sofrimento psíquico.

Pessoalmente, adorei as provocações. Se não for pra concordar, se prestam, no mínimo, a deixar as ideias fermentando… Um prazer que não me recuso, mesmo que não seja, de todo, inofensivo.

Resenha – “A Filha Perdida”, de Elena Ferrante

Filhas e mães, perdidas em si mesmas

A Filha Perdida é uma obra da genial Elena Ferrante, lançada em 2006, e ganhou visibilidade após o lançamento da adaptação feita pela Netflix. Acompanhamos a história, presente e passada, de Leda, mãe de duas filhas e professora universitária. A vida tranquila e estável que Leda vivia após as filhas se mudarem para o Canadá com o pai é arrancada de si mesma quando, de férias na Itália, conhece Nina, a jovem mãe de Elena, que trata como filha sua inseparável boneca.

Há variações bruscas que nenhum gráfico é capaz de reproduzir, um momento é luminoso, outro é obscuro.

De longe, Leda idealiza Nina, sua maternidade suave, leve, cheia de carinhos. E, na medida em que se aproximam, Leda começa a se recordar de seu passado, de segredos escondidos no próprio intimo, de arrependimentos e escolhas que ainda pesam imensamente em sua existência. Da relação com a própria mãe à relação com suas filhas, Leda passa a enxergar em Nina os conflitos comuns a várias mães, a maternidade bruta e real, as culpas e conflitos de ser definida não mais como Leda, professora e acadêmica bem sucedida, mas Leda, mãe de Martha e Bianca.

Naquela época, eu tinha uma dor de estômago constante por causa da tensão. Era o sentimento de culpa: eu achava que todo sofrimento que atingia as minhas filhas era fruto do já comprovado fracasso do meu amor.

Na medida em que o passado se revela, em que o presente se apresenta como é, Leda agarra a oportunidade de novamente ser mãe, encontrando em Nina, Elena, e em um certo objeto, uma forma de traçar paralelos com sua própria história. O que antes estava superado, agora retorna, enfim, a superfície. A carga de ser mãe novamente a arrebata e a confunde, e traz para nós, leitores, questionamentos importantes sobre o papel materno diante da sociedade.

Quantas coisas estragadas, perdidas havia em meu passado, mas, naquele instante, ainda estavam presentes em um turbilhão de imagens

MINHAS IMPRESSÕES

Esse foi meu primeiro contato com a escrita de Elena Ferrante, e me surpreendi muito com a semelhança entre essa obra e Laços, de Starnone. Não nas histórias em si mesmas, mas na forma como ambos os autores relatam os conflitos internos, de forma um pouco bruta, um pouco sensível, que permite ao leitor colocar ali a própria subjetividade.

Além disso, a forma como a autora apresenta a maternidade é excepcional. No meu trabalho como psicóloga, percebo que uma questão comum às mães é a carga excessiva de se sentirem obrigadas a se definir assim, como mães. Não mais pessoas com uma subjetividade única, mas apenas mães. E Leda mostra como ser reduzida a isso pode ser problemático, o quão importante é para uma mulher ser algo além desse papel social, que parece tirar de nós as possibilidades de sermos mais.

Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu estivesse caindo para trás na direção de minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava.

Elena Ferrante, com todo o seu brilhantismo, mostra aos leitores as diversas nuances da maternidade, arrancando de nós a ideia romantizada de uma mãe saudável, amorosa, completa e feliz apenas por ter filhos. Ela mostra que, apesar de esses sentimentos poderem sim existir, eles não anulam o lado humano comum a todos nós, a possibilidade de se frustrar, de se arrepender, de querer voltar para uma vida que é só sua. É um abraço em todas as mães que se sentem desamparadas e culpadas por não quererem mais ser reduzidas apenas a isso, por não sentirem a magia da maternidade como por tanto tempo nos foi pregada. E, no fim das contas, a filha perdida pode ser Nina, Leda, Martha, Bianca, Elena, eu, você.

Eu estava como alguém que conquista a própria existência e sente um monte de coisas ao mesmo tempo, entre elas uma ausência insuportável.

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