Conto – “A filha da neve”, de Angela Carter

⚠️ O conto abaixo possui linguagem sexual e obscena ⚠️

Pleno inverno – invencível, imaculado. O conde e sua esposa saem para cavalgar, ele numa égua cinzenta e ela numa preta, ela envolta em peles brilhantes de raposas pretas; e ela usava botas altas, pretas e brilhantes, com saltos escarlates, e esporas. Neve fresca caía sobre a neve já acumulada; quando cessou, o mundo inteiro estava branco.

— Gostaria de ter uma menina branca como a neve — diz o conde.

Seguem cavalgando. Chegam a um buraco na neve; o buraco está cheio de sangue. Ele diz:

— Gostaria de ter uma menina vermelha como sangue.

E seguem cavalgando; ali está um corvo, empoleirado num galho nu.

— Gostaria de ter uma menina negra como a pena daquele pássaro.

Assim que ele terminou sua descrição, lá estava ela, ao lado da estrada, pele branca, boca vermelha, cabelo preto e completamente nua; ela era a filha do seu desejo e a condessa a odiou. O conde ergueu-a e a sentou na frente dele na sela, mas a condessa tinha um único pensamento: como poderei me livrar dela?

A condessa deixou a luva cair na neve e disse à menina que fosse procurar; pretendia galopar para longe e deixá-la ali, mas o conde disse:

— Eu compro luvas novas.

Com isso, as peles saltaram dos ombros da condessa e se retorceram em volta da menina nua. A condessa então jogou seu broche de diamante através do gelo de um lago congelado.

— Mergulhe e vá buscá-lo para mim — disse ela, pensando que a menina fosse se afogar.

Mas o conde disse:

— Ela por acaso é um peixe para nadar num tempo tão frio?

Então as botas saltaram dos pés da condessa e foram para as pernas da menina. Agora, a condessa estava nua em pelo, e a menina coberta de peles e usando suas botas; o conde sentiu pena de sua esposa.

Chegaram a uma roseira, coberta de flores.

— Apanhe uma para mim — disse a condessa à menina.

— Não posso lhe negar isso — disse o conde.

Então, a menina apanha uma rosa; espeta o dedo no espinho; sangra; grita; cai.

Chorando, o conde desceu do cavalo, desabotoou as calças e colocou seu membro viril dentro da menina morta. A condessa freou sua égua, que batia com as patas no chão, e observou-o atentamente; ele logo terminou.

Então, a menina começou a derreter. Logo já não restava dela nada mais além da pena que um pássaro talvez tivesse deixado cair, uma mancha de sangue, como o rastro da caça de uma raposa na neve, e a rosa que ela tirara do arbusto. Agora a condessa estava com todas as suas roupas novamente. Com a longa mão, acariciou suas peles. O conde pegou a rosa, curvou-se e a entregou à mulher; quando ela a tocou, deixou-a cair:

— Ela morde! — disse.


“A filha da neve” é um dos contos que compõem o livro The bloody chamber (1979), da escritora inglesa Angela Carter. A obra teve sua primeira versão publicada no Brasil pela editora Rocco, sob o título de O quarto de Barba Azul (1999), com tradução de Carlos Nougué. Em 2017, o livro foi reeditado e publicado pela editora Dublinense, em parceria com a TAG – Experiências literárias, que o lançou com nova tradução, de Adriana Lisboa, e com o título A câmara sangrenta.

“Fractal”, um poema de Paulo Bittencourt

O pensamento como quebra-cabeças de vidro estilhaçado que me corta a cada movimento de peças e cujo encaixe é ilimitado para extrair dos meus dedos o pouco de sangue que lhes resta. Dar ao oceano a medida certa de urina para salgar-lhe o sexo reptício das areias submarinas cristalizar a rocha dos cotovelos animais e dos cancros-utensílios de ferir a alma alheia dos homens. Abandonar completamente a esperança ao penetrar no reino surdo das palavras sem nexo afogadas no mais brilhante desespero soturno da vida que brota no deserto.

A solidão infinita dos peixes que se esquecem de nadar.

A paixão infinita dos seres que se esquecem de amar.

A tração infinita dos bois que se esquecem de marchar.

Pintura de René Magritte (1926)

Eis a imagem fundamental do silêncio-tormento do tiroteio si-por-si entre flores sorridentes só para testar quem resta por último aberta e finalmente poder fechar-se em si vitoriosa do sofrimento. Matar não para conquistar enrijecer dominar submeter cativar embrutecer animalizar escarnecer mas para livrar.

Andar com a faca presa aos mil elos dentais que brotam da gengiva.

O olhar fixado na saliva que se acumula ao canto da boca última gota de mar que escorre violentamente sobre o queixo como feixe de azul que escancara o meio dia das dores e que faz brotar outras mil por debaixo da língua. Ceifar o corvo sem penas que paira fênix do mais virginal edênico paraíso celeste em que deuses e putas ejaculam seus orgasmos pernósticos.

E por fim fazer crescerem os prédios mais altos cujos cumes atingem as verdades sobre a pilha de corpos pútridos que produzem incontáveis litros do mais negro chorume. O paraíso titânico do vidro que escancara as tripas abrindo o esterno com máquinas tracionadas hidraulicamente deixam à vista crua do sol o último batimento cardíaco o último suspiro de morte.

Finalmente.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Conto – “O Palácio de Cristal”, de Paulo Bittencourt

Os portões do Palácio de Cristal estavam intactos, mesmo seus arredores estando completamente arruinados. Apesar de os escombros dificultarem a chegada até os arcos metálicos que circundavam a entrada, o fenômeno era misterioso de uma maneira tal que se me apresentava irresistível em seu convite. Com um pouco de esforço e levado pela curiosidade, cheguei frente à aldraba — um condor esculpido em prata, encardida pela poeira circundante e pelo efeito do tempo, cuja argola pendia do bico como uma presa inevitável.

Adentrei, e a impressão foi atravessar logo a barreira do tempo alguns séculos atrás. A disparidade era visível: o local estava impecavelmente limpo, o que ressaltou ainda mais o contraste com o lado de fora, que agora se apresentava para mim como um local longínquo, mesmo estando ainda há poucos metros da entrada já fechada. Mas para além mesmo da notável diferença nas condições do local, adentrá-lo reservou a meu corpo uma mudança súbita de estado — antes, o escuro tomava conta, e a criança chorava toda sua angústia em desespero, imprimindo sobre o escândalo sua energia; agora, o calor do peito da mãe acalentava, e é como se nada mais existisse nos arredores e a escuridão nunca houvera existido. Dentre as várias portas à minha vista, apenas uma delas estava entreaberta, e de lá emanava um parco feixe de luz capaz de iluminar parcialmente o trajeto até o local.

Mesmo com o coração em ritmo acelerado, estranhamente à medida que me aproximava daquele cômodo, aumentava em mim o sentimento de segurança. Não houve sequer hesitação ao lançar impávido a mão sobre a maçaneta e lentamente abrir a pesada porta de madeira ornada em metal ondulado, simulando colunas jônicas, ao melhor estilo neoclássico. Lá se viam duas poltronas de couro marrom separadas por uma pequena mesa de centro, à altura dos braços, em cuja superfície fixava-se um candelabro com espaço para até cinco velas de tamanho médio, apesar de apenas três estarem lá fixadas e uma acesa, tornando o ambiente mal iluminado, mas suficientemente visível aos olhos.

À cadeira esquerda assentava-se um homem de feição apagada, à sombra de seu chapéu estilo fedora, de abas curtas e levemente curvadas à esquerda, que impedia a luz da vela de fazer claros os contornos de seu rosto. Nenhum centímetro de pele ficava à vista: o fraque e as luvas, as calças e o sapato, cobriam finamente o corpo bem ajustado e de pernas cruzadas do silencioso sujeito. Sentei-me na poltrona à sua esquerda com a perna arqueada e levemente irrequieta. A cena era convidativa à conversa, pois me pus a falar, rompendo primeiro a barreira do silêncio:

“Atlas Turned to Stone” – Edward Burne-Jones (1878)

— O senhor aparentemente está no mais pleno conforto aqui, em seu isolamento, cercado pela estrutura intocável deste palácio… Confesso que ao adentrar seu recinto, um inédito sentimento de segurança se apossou de meu corpo e, sem hesitar ou sequer me preocupar com qualquer formalidade de etiqueta, cá me apresento ao seu lado. Diga-me, como posso chamar-lhe? A quem devo prestar meu mais sincero respeito? — Procurei dirigir as palavras com serenidade e num tom algo grave, demonstrando ao mesmo tempo seriedade e empatia, para não causar nenhum tipo de constrangimento ao ambiente tão pacífico que construíra o homem.

Silêncio absoluto. A sombra tampava perfeitamente a feição deste estático senhor, o que tornava sua presença algo espectral.

— Sei que aqui, sentado ao seu lado, nada mais para mim se parece necessário. Você está absolutamente cercado da mais bela salvaguarda. Absteve-se da vulnerabilidade atormentadora do exterior, que agora encontra-se em ruínas. As espessas paredes de vidro que o separam daquele universo sequer sofreram um arranhão, e a calma rígida deste quarto, do seu corpo em estrutura formosíssima, seduzem-me à semelhança de uma torre de marfim, dentro da qual não há a menor exposição às intempéries daquele caos. O senhor me desperta uma aura de tão cristalina serenidade; mesmo o caráter lúgubre deste cômodo interior, em contraste à arquitetura translúcida do palácio, sequer traduz a impressão de qualquer solidão. Creio que este é um dos motivos que me levaram à desinibição de assentar-me aqui, ao seu lado. — Esta fala respeitosa com o mesmo tom da anterior, ao mesmo tempo suscitava um possível diálogo sobre aquela condição tão perfeita ao passo que pretendi de forma tangente um certo pedido de desculpas por minha entrada abrupta e desavisada.

Novamente nenhuma reação ou som procedeu de minha tentativa de estabelecer a comunicação. Cruzei as pernas de forma bastante similar àquele senhor, e mesmo na situação de silêncio um tanto quanto constrangedora a olhos alheios, meu corpo ainda se sentia plenamente seguro diante daquela figura, sem nenhuma vontade de levantar-me e sair.

— Sabe… O senhor é que está certo. Não há razão para se aventurar naquela selvageria. O mundo nunca se mostra da maneira como esperamos. De forma geral, há sempre um receio oculto das mais imprevisíveis surpresas. Por mais que por vezes avistemos belas flores a desabrocharem, virginais, à sorte das florestas, as rédeas nunca parecem corresponder aos nossos comandos, e o trote ligeiro imprime uma passagem invencível. Se junto àquela flor deixo minha alma, jamais a recobro; sigo com o corpo fechado, em estado de vertigem.

Senti aquelas finas camadas da mais perfeita segurança se sedimentando lentamente e transformando-se, de súbito, num tremor em minha mão direita, que repousava até então no braço de couro da poltrona. O estranhamento se me apossou ao perceber que esse mesmo tremor que agora tomava conta do meu corpo também assolava o fino senhor ao meu lado. Era como se a longa exposição àquele colo de mãe perdesse seu calor pelo costume banal, e fosse necessário agora negá-lo friamente, somente assim tornando-se possível a avaliação da perda. Impetuosamente dirigi àquele sujeito minha mão, que nervosa e flácida se aproximava da sua. O toque frio rapidamente desfez à minha frente sua imagem, e o espelho que nos separava estilhaçou-se. O fraque e o chapéu, as calças e o sapato, vestiam-me perfeitamente, como se feitos sob medida. O último suspiro da vela não me permitiu identificar a forma do meu próprio rosto. Agora a escuridão toma conta deste Palácio de Cristal, intransponível.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Crônica – “O Túmulo de Eros”, de Paulo Bittencourt

Trilhar um caminho que consiga fazer encontrarem-se pensamento e escrita. Essa é a função a que me dedico quando me ponho, vez ou outra, frente a essa atividade. Sair de um emaranhado fragmentado e incompreensível de ideias e sensações amalgamadas para a organização funcional da comunicação. Não, não se pode restringir o estado bruto do sentimento à sua função comunicativa; isso seria diminuí-lo e poderia até retirar-lhe aquilo que guarda de mais elegante – seu caráter poético.

A tarefa da qual hoje me encarrego é talvez autorreflexiva, pois que se debruça justamente sobre essa transição. E sempre me atento a buscar um ponto palpável para que, daí, seja possível dar o primeiro passo rumo àquele espectro último, ainda invisível para a consciência. Todos nós, com maior ou menor regularidade, cedemos ao impulso da racionalização. Digo, é muito comum que tentemos colocar todo o pensamento em ordem, por vezes até criando diálogos imaginários dos quais sempre saímos “vitoriosos”, nessa fantasiosa missão retórica de persuasão. É o famoso argumento debaixo do chuveiro, que na prática nunca é repetido à perfeição.

A perfeição é atributo das coisas em seu estado imaginativo. Prender-se dessa maneira à expectativa idealizada pode representar para o caminho um obstáculo intransponível – a prisão em potencial que o pensamento representa para a ação. Se o desejo é a entrega a esse estado musical, primevo, de desorganização, em que sentimos à flor da pele a espontaneidade do prazer, a embriaguez essencial do corpo; a racionalização, o domínio da potência, minariam essa a força ativa, restringindo-a a seu estado de potência, sempre limitada à consciência. Eros jaz nas mais profundas esferas do pensamento; as correntes mais rígidas o impedem de manifestar sua atração – o próprio desejo. Um grande fantasma – essa dúvida permanente – acaba por se tornar o conforto tranquilizador contra o impulso erótico. Fonte de equilíbrio e sobriedade.

Creio fielmente que há em todos nós um pouco de Orfeu – devoção à embriaguez e à desordem, à música e à poesia. Mas o fim leva-nos a um estado tal de melancolia que o próprio selo dionisíaco se torna refém do Sol, e o destino não pode ser senão trágico, como o fora na mitologia. A maldição da eterna dúvida, a condição essencial de sempre estar à frente daquilo a que se quer dedicar, a quem se quer amar, para, ao final, virar-se e experimentar o desaparecimento do desejo. Seria possível atribuir a ele próprio o erro maldito, ou seria já desde o início plano punitivo dos deuses contra sua irreverência?

Já não consigo distinguir – e já não sei até que ponto vale a pena fazê-lo. A música não se apresenta mais senão sob o silêncio; as musas já não oferecem a sua graça para a poesia. Sinto-me completamente dominado pelo exercício da razão, de colocar todas as peças do quebra-cabeças em seus devidos lugares, mentalmente, e de me contentar com esse estado. De gozar desse estado. Essa parte essencial de nós em que se encontra a dança – eu a mereço, sou-lhe digno? Fato é que esse peso se encontra posto sobre mim, mas tenho apenas duas mãos…


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Conto – “O segredo do chá”, de G. R. Martins

el visible universo es una ilusión o (más precisamente) un sofisma. los espejos y la paternidad son abominables

uno de esos gnósticos (paráfrase)

Conta a lenda que, para lá do oriente, alguns séculos antes da vinda de Cristo, um grande império, com sede construída à beira de um longo rio, desapareceu.

A história começa com o fato de que os habitantes da região eram apaixonados, hábeis com a espada e também com as palavras, por isso inundando as terras com guerras duras e duradouras. Mas o rei Qin, além dessas outras qualidades, era um regente poderoso e inteligente, que desejava muito unificar as províncias todas em um único e próspero império. Frente ao discurso e maestria militar, a maioria esmagadora não demorava a concordar, porém, na margem oposta do rio, existia o pequeno reino de um rei intragável: o rei Jie, o gorgulho da lavoura.

Apesar das tantas investidas políticas e militares contra ele, desde que começou as campanhas, o rei Qin e seus subordinados só receberam resultados negativos. Esse fato, somado a um mau agouro vindo num sonho, contribuiu para a decisão de interromper o envio de tropas e diplomatas, bem no começo do século III a.C.

Jie, apesar da pequenês frente ao império que Qin construía tijolo por tijolo, sempre declarava vitória, humilhando e diminuindo o adversário através de cartas. Além disso, naufragava muitas naus que flumenavam rio abaixo e que estavam ao alcance de suas flechas.

Ainda que mantivesse distantes seus soldados do lado de lá do rio, Qin monitorava Jie com os mais furtivos serviçais, pensando em como podia esmagar aquela pulga, antes que ela o picasse. Mas, afinal, o que era aquilo, se não uma simples coceira?

O tempo passava e o império de Qin inchava como uma abóbora; de norte a sul, falavam todos a mesma língua. Só o reino de Jie permanecia à parte, mesmo sendo incluído nos mapas, feito um siso prestes a sair. Batalhas intensas aconteciam nas fronteiras com o ocidente, o que fez Qin retirar seus valorosos serviçais das terras do rei Jie. Também, parou de ler as cartas ultrajantes que vinham do reino vizinho. Por isso, não ficou sabendo de imediato que o adversário tinha adquirido uma doença desconhecida: o soluço.

Foi só em um momento de alívio nas batalhas ocidentais, anos depois, que Qin descobriu o mal que tomava conta do corpo de Jie. Contudo, as incessantes pugnas que vinha enfrentando reduziram em muito o número de seus soldados e qualquer tentativa de dominação era arriscada: apertar o inseto com dedos machucados.

Com isso em mente, optou por ganhá-lo na palavra: se ofereceu a descobrir uma cura para o mal do rei vaidoso.

Após inúmeros testes, feitos com pessoas soluçantes e saudáveis, Qin descobriu uma pequena muda, que bastava lançar suas folhas em água quente. Bebido, livrava o corpo do mais profundo dos soluços, além de melhorar os sentidos e dar a sensação de vigor e poder para o ingestor.

Comunicou o outro regente sobre sua descoberta, ansioso por uma negociação, mas a resposta de Jie foi uma injúria ríspida e prepotente. Qin chegou até mesmo a experimentar, ele mesmo, o chá milagroso, pensando isso ajudar no julgamento do rei Jie, mas esse apenas começou a mandar que seus subordinados destruíssem violentamente qualquer embarcação que carregasse a bandeira do império.

Isso durou meses, até que, após uma noite de meditação, o rei Qin decidiu enviar todas as folhas que cultivou como, pelo menos, oferta de paz, para que cessasse o ato de destruir as naus.

Qin, em uma carta extensa, hoje exposta em qualquer museu por lá, jurou pela própria honra que aquele líquido ajudaria com a doença de Jie e recomendou que o pequeno rei tomasse comedidamente o chá e que guardasse bem aquelas folhas, tão finitas quanto qualquer outra.

Jie assistiu satisfeito, enquanto seu cavalo de madeira entrava pelo portão da Troia que construiu para si.
As folhas logo curaram sua doença. Além disso, tamanha era a energia e a astúcia adquiridos com poucos goles, o rei enrijeceu o regime de suas províncias e começou campanhas de expansão contra o império de Qin e contra os reinos para lá do oriente, isso por volta de 261 a.C.

O grande Qin, experiente nas artes da guerra, não se deixou abalar por ameaças e ataques: resistiu fortemente durante os combates que marcaram o século.

Mas não foi suficiente.

Foi destronado pelo rival alguns anos depois do começo das batalhas. Teve tempo de assistir ao rei Jie dominando e logo depois queimando por completo o seu império.

Não deixou de sorrir, quando perdeu a cabeça.

As ruínas e as árvores, depenadas, secas, compunham a paisagem estéril que se estendia infinitamente. Ao redor do Nilo, Jie fez o deserto nascer da guerra e da vaidade; as plantas só renasceriam com o passar dos anos e com inteligência no cultivo.

Só que nada disso interessava a Jie, que viveu sua glória imperial sem deixar herdeiros para o império. Império que não durou mais de vinte anos, pois as línguas se misturavam, o povo crescia e se revoltava e o chá, a cura para sua doença, era uma doce lembrança e ilusão.

Detalhes

O conto “O segredo do chá” integra a coletânea Primeiros e outros contos, editada e publicada por Gabriel Reis Martins, em 2019, e que ganhou uma versão digital para o kindle, em 2020. Na obra, o autor faz uma seleção de quinze histórias curtas autorais, transitando entre um estilo realista, de linguagem objetiva, e outro em que as brincadeiras com a linguagem e com a narrativa são mais frequentes.

Crônica – Latência, de Paulo Bittencourt

Venho apenas dizer-te da carta por escrever

Marta Chaves

Desperto. E à luz do primeiro raio de sol que penetra através da janela recobro a consciência que estivera por alguns instantes suspensa em universo onírico. Conforto, serenidade? Não. Desespero, ansiedade? Ainda não. Latência. Estado não manifesto do meio; inatividade entre os estímulos que se vão acumulando e a resposta subliminar por eles provocada. Experimento quase que diariamente essa sensação irrequieta de confrontar-me com a ampla miríade de responsabilidades de maior ou menor escala ou importância; mas a dúvida que paira é comum: de onde vem e por que persiste o sentimento de dívida?

Imóvel. Acalme-se… A projeção do dever é fruto de suas próprias inseguranças. Acalme-se… Uma coisa de cada vez. Essa pedra no meio do caminho é muito mais do que um obstáculo para atingir qualquer objetivo. A verdade é que ela é, em si mesma, a finalidade da caminhada. É no processo que se encontra o fim, ou nos prenderíamos todos às imagens projetadas e, assim, nada haveria de ser feito. Veja: essa passageira alegria, esse conforto momentâneo é produto mesmo da metade, e não do resultado! Mas então por que diabos a tão aguardada resposta simplesmente não dá o ar da graça?

Inerte. Ainda está tudo muito confuso; a visão, nublada. O que quero dizer é o seguinte: sinto ao acordar uma imobilidade, uma paralisia que me choca os nervos. Aparento calma e segurança, como me é esperado; ajo conforme o cumprimento de quase tudo aquilo que me é dado para o designado dia, cumpro os prazos. Mas sempre, sempre guardo em mim a insuficiência. Atraso. Aquilo que poderia, mas não foi. Entende?

Estático. O maior estranhamento acompanha a dissociação disruptiva entre o pensamento e a ação. Sei que para completar alguma coisa, preciso planejar, dividir, me contentar até com o pouco que posso, ainda mais num estado desses, de pululante nervosismo. Sei que nunca os objetivos se equivalem às expectativas; as idealizações que projetamos se distanciam sempre do resultado material, que por vezes até mesmo as supera — quem diria?! Tudo o que precisa ser feito, agora, não é muito. Não posso antecipar todo o universo para o aqui, agora. Tempo (ah! Tempo!). Mas é simplesmente isto: o corpo não vai, não sai do lugar… Será que o problema é com a cadeira?

Suspenso. Penso, penso, penso… Diminuo a quantidade de tarefas. Ninguém aguenta tudo isso, não. Eu me cobro demais. Tento em vão controlar a ansiedade e o desespero. Desistir? Jamais! Mas não-vai-de-jeito-nenhum. Inferno! O que precisa ser feito para que a racionalização de toda a situação de inatividade, para que todas essas conclusões sobre o que precisa ou não ser feito em cada momento, para que a tão pensada paciência da atividade diária, concentrada e organizada, desperte no meu corpo o prazer momentâneo daquilo que eu mais admiro? Será que é isso mesmo o que eu admiro, será isso o que me traz felicidade? Ou não seria o meu gozo fruto mesmo do estado de latência?

Reincido numa arquitetura que privilegia as faltas…

27 de abril de 2021.


Devaneios de um viajante solitário

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Ode ao humor

Fascinante experiência é ver-se através de um espelho! A produção virtual de uma realidade, na qual se reflete de forma mais ou menos precisa a imagem própria do indivíduo, sem dúvidas lhe provoca alguma espécie de inquietação. Essa ocorrência — que por vezes se dá nas mais fugazes das circunstâncias, como que numa espera dentro de um elevador para atingir o andar do prédio em que se trabalha ou do apartamento em que se mora, ou até mesmo no breve reflexo produzido pelas janelas de um ônibus que passa à frente, enquanto se espera a luz verde do sinal de pedestres para atravessar avenida — é o estalo de narciso mais ou menos duradouro que habita a todos nós.

A experiência narcísica não se reduz somente a uma admiração própria ou a uma fixação contemplativa inelutável rumo à imagem própria. Não. Ela se mistura a uma certa agonia, um amálgama entre a recusa e o desejo de si. Divididos numa fração de segundo, essas duas metades inseparáveis agora se encaram na indissolúvel contradição entre atração e repulsa de nós para conosco — a segurança apaziguadora do que em cada um é unidade agora fragmenta-se em duplo.

Dir-se-ia que há uma vontade hesitante do espírito em se reconhecer nesta unidade que representa o corpo, mas a consciência de nossa multiplicidade interior rapidamente a desconfigura. É angustiante e, por vezes, até mesmo revoltante quando somos resumidos a um estereótipo; a definição redutora que rotineiramente nos é atribuída como arquétipos de somente uma das faces do prisma que compõe a nossa natureza provoca a reação quase que instantânea de erro — não somos limitados ou definidos (somente) por isso.

Encarar a imagem própria coloca em conflito, então, essas várias facetas de um mesmo “eu”, agora dividido no confronto com seu reflexo — este estranho familiar que passa a representar o “outro”. Eu e outro frente a frente, reprimindo-se, julgando-se, reconciliando-se na medida do possível, pois que guardam diferenças fundamentais entre si. A parte em mim que concentra todo o espírito de completude, de estabilidade, de equilíbrio, impõe represálias àquela outra em cujo desejo inebriante de retorno ao instintivo, à aventura, à solidão e à embriaguez se aflora.

Passado o veículo coletivo, aberta a porta do elevador, essas duas metades tornam a se tensionar dentro dessa aparente unidade física que é o nosso corpo. Condenados a viver neste eterno pêndulo de luz e sombra que nos habita a essência desde o reconhecimento inicial do pensamento. Reduzimo-nos àqueles bons dias em que se cumprem todas as obrigações e o retorno à casa se dá pacificamente para o descanso merecido após algumas horas de dedicação. Esses dias que se nos apresentam sem maiores êxtases, sem maiores dores. Cada vez mais frequentes — invisíveis.

O reflexo já se foi, não nos resta mais brigar, mas alguma coisa ainda carece, ainda estamos em dívida com nosso outro interior. A dívida é eterna, e sábio é aquele que vê a divisão primordial como ironia de si, e a transforma numa grande peça de humor.

20 de Abril de 2021.

Imagem da capa: O espelho falso (1928) – René Magritte


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

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