Conto – “Lettipark”, de Judith Hermann

Como Elena era linda! Uma garota linda e muito magra, de olhos negros e cabelos castanho-escuros, tesa como uma corda de arco e com um rubor na face, como se o tempo todo beliscasse as próprias bochechas. Elena era vigorosa, corajosa, radiante e irritadiça, estava sempre precavida. Usava saias por cima das calças – feito uma cigana –, bijuteria, mas não maquiagem. E seus cabelos eram tão desgrenhados, como se passasse o dia inteiro deitada na cama, fumando, batendo as cinzas no chão e arreganhando as pernas. Em todo caso, à noite ela ia trabalhar em um bar numa rua de paralelepípedos quebrados, prédios decadentes, portas da frente abertas, acácias à direita e à esquerda, bétulas nos pátios. No inverno o lugar cheirava a carvão e no verão a genista e poeira. Elena era do tipo que, à noite, prendia com um lápis os cabelos em coque. Ela vestia uma saia vermelho-ferrugem sobre uma calça verde-hortelã, abria o bar, varria as bitucas de cigarro para fora, tomava uma cerveja, ligava a música e acendia o varal de lâmpadas coloridas entre os ramos de acácias. Mais tarde apareciam todos. Elena era a garota mais linda da rua.

Elena está na frente de Rose no caixa do mercado, Rose a reconhece tarde demais, só depois de já ter colocado os morangos, açúcar e o creme de leite na esteira, aí sim reconhece Elena. Tivesse reconhecido Elena mais cedo, teria se virado e olhado para trás em busca de algo, mas agora não dá mais. Paul também já está ali, ele põe suas coisas ao lado das dela, peixe enlatado, tabaco e um vinho do Porto. Elena não repara. Ela engordou e envelheceu, está fleumática e lenta, é inconfundivelmente Elena – olhos amendoados e madeixas semelhantes a serpentes, uma pele em que se vê o calor, e que é sempre maior que todas as outras – mas agora parece estar metida em dificuldades. Alguém a acompanha, um indiano, troncudo, enérgico e robusto, possivelmente com uma inclinação à violência e um pouco desleixado, ele traz chinelos empoeirados nos pés, e sua camisa florida está manchada. O indiano organiza as coisas na esteira. Entrega-as à atendente, pega-as do outro lado e ainda as põe na sacola, Elena só fica parada ao lado. Ausente. Ombros caídos. Tomates, manjericão em vaso, velas e arroz. Cigarros. Duas garrafas de uísque. Elena tira uma carteira da bolsa e abre-a feito um livro. Ergue a cabeça e vê Rose. Com que expressão? Rose não consegue distinguir. Elena se assemelha a uma gigante triste. Uma gigante melancólica e enfeitiçada.

Caralho, diz Paul. Que desgraça. Não dá pra entender a lentidão dessa gente. Essa merda de frio aqui. Que gelo de lugar, essa é a última vez que nós pisamos neste lugar, Rose, ouça o que eu digo. Morangos. Você e sua ideia-fixa de que precisaria de mais isto ou mais aquilo.

Ninguém consegue pronunciar a palavra morangos com tanto desprezo quanto Paul. Ele deixa Rose ali parada e vai até a banca de jornal em frente, não está tão frio para dar uma folheada nos jornais. O indiano percebeu algo, uma sutil e tênue vibração. Ele toma a carteira das mãos de Elena e lança a Rose um olhar fulminante. Se soubesse como Elena já foi linda, se tivesse alguma ideia. E a situação seria diferente se soubesse?

Rose.

Paul a chama, e bem aí, de repente, Elena captou algo; ela volta a cabeça pesada de Rose para Paul e entende a ligação. Paul segura o jornal no alto, o tabloide sensacionalista, no qual confere seu horóscopo e o de Rose, as afirmações no horóscopo de Rose são para Paul mais verdadeiras que as próprias afirmações de Rose, e se o horóscopo diz que ela deveria refletir e finalmente contar a verdade ao parceiro, então Rose pode se preparar para uma semana difícil. Paul segura o jornal no alto, a manchete relata assassínios canibais, bárbaros nas proximidades e alta no preço da água, ele grita, você deveria fazer uma pausa, Rose, sossegar o facho, e Elena volta a cabeça para Rose.

Rose e Elena não tinham nada em comum, exceto pelo olhar que Page Shakusky lançara sobre elas, e pelo fato de terem sido uma imagem nos olhos de Page Shakusky. Uma visão. É que Rose saía para estudar, e Page Shakusky a vira, ele entrou em seu apressado caminho de volta do campus para a casa, quando ela não tinha outro objetivo senão preparar algo para comer, comer na escrivaninha e enquanto isso continuar estudando. Rose passara apressada pelo bar de Elena, e Page Shakusky se levantara num salto da mesa torta do jardim, da que sempre se sentava, e a agarrara. Bêbado, bêbado – como de praxe –, nunca estivera sóbrio. Ele dissera: mas que garota encantadora e graciosa você é, com esse andar de gazela e esse charme de ave cantadeira, todos te fitam fixamente. Rose não caiu nessa. Livrou-se dele, apressou-se e correu escada acima até seu apartamento, e ao chegar lá em cima, trancou a porta por dentro. Ela se deixou cortejar, mas não deu confiança. Page Shakusky persistiu por um bom tempo, de manhã ficava deitado na frente da porta dela, quando ela saía de casa, subia até sua sacada e esperava até que voltasse, escrevia-lhe incontáveis cartas, cheias de promessas, juras e safadezas. Rose tapava os ouvidos e fechava os olhos. Era retraída e estava preocupada em sobreviver, e sabia que, no fundo, Page Shakusky assim como ela também estava, só que adotara outra estratégia. Impossível se envolver com ele. Ele tentou por um tempo, e aí deixou a ideia de lado, porque achou uma outra aluna de convento, e de repente se envolveu com Elena, o que foi diferente, se lançou sobre ela. Elena parecia renunciar a qualquer decisão que ameaçasse sua liberdade. Parecia afinal ser livre. Ela partiu o coração de Page Shakusky depois de seis semanas, partiu-o no meio, de fora a fora em dois pedaços, e então espetou o seu lápis nos cabelos novamente e acendeu o varal de lâmpadas coloridas, e se sentou na frente da porta de sua loja, como se nada tivesse acontecido.

O indiano pagou junto suas compras e as de Elena. De uma forma como se a vida toda tivessem ido juntos às compras, como se sempre pagasse para si e para Elena. Paul joga o jornal de volta na pilha e vai para o caixa do outro lado. A atendente é loira e jovem, levanta os morangos e fita Rose nos olhos, sem expressão. Paul irá perguntar o que é que ela faz mesmo – ele pergunta isso a toda jovem atendente.

Rose se lembra do Lettipark. Do presente de Page para Elena, e não consegue se lembrar se Elena naquele momento já o deixara, ou se o deixou depois do presente. Com ou por causa daquele presente, ela o deixou. Elena passara sua infância no Lettipark, contara isso a Page. E Page saíra e fotografara o Lettipark para Elena. No inverno. Um parque comum e abandonado na periferia, um terreno baldio, e não havia quase nada para se ver, caminhos cobertos de neve, uma rotunda abandonada, bancos e um campo vazio. Árvores nuas, céu cinza, e isso era tudo. Mas Page seguira com devoção o rastro da infância de Elena. Visitara Rose – que conseguira abrir a porta para ele, desde quando cessara com seu violento e fútil cortejo, desde que estava com Elena. Rose deixava a taça, na qual ele tomara chá com rum, ficar dias a fio sobre a mesa da cozinha – e mostrara-lhe as fotos. As colara cuidadosamente dentro de um livro, sobre o qual escrevera com uma letra grosseira o nome Lettipark e embaixo… para Elena. Rose pensara, um presente como esse só se recebe uma vez. Apesar disso Elena deixou Page Shakusky, sentado, com a cabeça sobre a mesa torta do jardim, assim como estava mais cedo, às sete em frente ao bar, descalço, olhos inchados de choro e bêbado. Mais tarde, ele despareceu da vida das duas. Rose se mudou para longe. Elena desistiu do bar. O varal de lâmpadas coloridas ainda ficou mais um tempo pendurado no meio dos ramos de acácias. Rose não vai lá já tem muito tempo.

Autora

Texto de Gabriel Reis Martins

Judith Hermann (1970) é um escritora alemã ligada ao gênero da Literatura Pop na Alemanha, sendo reconhecida sobretudo por suas narrativas breves. Formada em jornalismo, a autora publica desde 1998, quando lançou seu primeiro livro literário, o volume de contos Sommerhaus, später (Casa de verão, mais tarde, em tradução de Marcelo Backes). Infelizmente, apenas alguns de seus textos foram publicados no Brasil, em antologias ou revistas, mas a autora ainda não recebeu nenhuma publicação de peso no país.

O conto aqui publicado está presente no livro Lettipark – homônimo da narrativa – publicado em 2016.

Conto – “O Voo”, de Franz Hohler

Autor diretamente ligado à comédia, no teatro e na literatura em alemão, Franz Hohler ainda é figura desconhecida nas estantes e livrarias brasileiras. Com uma linguagem ácida, que se vale da obscuridade como ferramenta para construção do humor, Hohler transita com facilidade entre episódios de um cotidiano banal e o completo absurdo, colocando em evidência, a um só tempo, a efemeridade e praticidade da norma social e aquilo que há de perverso nos sistemas com que compactuamos.

Hoje, o Duras Letras vem apresentar um conto deste escritor, com tradução inédita, feita por este que vos fala: Guilherme Oliveira Mello. Apreciem, agora, a leitura de um conto de Franz Hohler.

O v o o

Tradução de Guilherme Oliveira Mello

Primeiro o agente do despacho de bagagem me pediu para largar também minha bagagem de mão na balança. Quando me atrevi a contestá-lo, me lançou um olhar incisivo, e reparei que ele só tinha um olho. Isso me transtornou de uma maneira que coloquei minha bagagem de mão na balança. O funcionário não estava satisfeito. O senhor não tem, disse, excesso de bagagem suficiente, ponha seu casaco na balança. O encarei outra vez e notei que ele tinha um dente canino tão saliente que machucava o lábio inferior, que por sua vez sangrava sem cessar, gota a gota.

Coloquei meu casaco na balança. Agora faltam os sapatos, disse o homem. Não o encarei mais, descalcei os sapatos e coloquei-os na balança. Agora o senhor tem excesso de bagagem suficiente, disse o homem em inglês, vá ao caixa e pague, você pegará o seu casaco e seus sapatos de volta no destino final. Sem olhar para o funcionário, me encaminhei ao caixa, que se achava em uma passagem semiaberta, onde nevava em rajadas leves.

O senhor tem cerejas? Me perguntou o caixa, um homem aparentemente do Norte. Não, respondi, por quê? Poderia ter pago em cerejas, teria sido mais barato, afinal seu excesso de bagagem é significativo, pelo que vejo. Lancei meu pé direito sobre o balcão do guichê. Por isso, eu disse. O senhor está brincando, me diz o caixa, vá mais uma vez ao agente do despacho, e deixe lá as meias. Não! Gritei bem alto, e de imediato uma luzinha azul acima do guichê se acendeu. 50 dólares, me diz o homem, e 50 dólares como sobretaxa de negação. Paguei os 100 dólares, a luzinha cessou, e um guia vestido de urso polar veio me conduzir. Você também vai para o Alasca, murmurou o urso polar no meu ouvido, está levando bons sapatos? Não, eu disse, e vi que um pedacinho de intestino pulava para fora do focinho do urso polar.

Mais tarde, durante o voo, quando sobrevoávamos bem alto uma região montanhosa, o piloto entrou na cabine e perguntou se alguém desejava comprar o avião. Levantei a mão sem hesitar e perguntei quanto custava a aeronave, o piloto se sentou no braço da poltrona, que por consequência envergou, e disse, 300 dólares. Nem por decreto! Gritei, pago no máximo 200. Fechado, disse o piloto, e a aeromoça se aproximou, ainda fantasiada de urso-polar, com o contrato de compra. Assinei, o piloto me entregou uma cópia em carbono e me pediu para entrar no cockpit. Esse é o seu assento, disse, me indicando o assento do piloto, que estava vazio. Não sei pilotar, disse eu, o senhor é quem tem de fazer isso, ou o copiloto. O copiloto já saltou, disse o piloto enquanto se afivelava a uma espécie de saco e punha os óculos de proteção. Boa sorte, assim disse ele, abriu uma escotilha e pulou fora. Espere! Gritei, você está calçando meus sapatos, mas a escotilha já estava fechada. No meio do painel de controle estava piscando uma luzinha azul sem parar. Certo, disse eu, não vou dizer nada, e a luzinha cessou outra vez.

De repente, o urso-polar estava sentado ao meu lado. Do you come from Lucerne?, me perguntou. Não, disse eu, e nisso a luzinha voltou a acender e o avião inteiro tremeu de um modo estranho. Yes, gritei, yes, certainly I come from Lucerne, a lovely town, full of yoghurt! O urso polar assentiu satisfeito, here is your oxygen, disse ele, me estendeu uma máscara, e de repente o ar ficou horrorosamente rarefeito, onde devo encaixá-la, disse eu, o urso-polar, que já vestia sua máscara, apontou para o pedacinho de intestino pendurado nela, conectei a mangueira e inalei um cheiro de feno, que me deu uma vontade aguda de espirrar. A um só tempo, notei um pequeno microfone, que eu presumia contatar alguma estação aeronáutica. Olá, eu disse, estamos em queda, não posso fazer nada. Não é por mal.

Então me levantei, abri as portas da cabine e quis me sentar no meu lugar outra vez. Os passageiros estavam todos de pé ao lado de suas poltronas e me fitavam com olhos esbugalhados, esbaforidos nas máscaras de oxigênio. É, parece que o microfone tinha sido afinal para comunicação com os viajantes. Dei um passo em direção à minha poltrona, os que estavam de pé, um passo em minha direção. Pois é, eu disse, eu só queria perguntar: alguém tem uma chave de fenda? Uma velha negra tinha um pequeno estojo preto consigo, ela o pegou pela alça e me entregou, eu abri e vi que por dentro ele era todo de um vermelho vibrante e que não continha nada além de uma chave de fenda com cabo amarelo. Obrigado, disse eu, muito obrigado, e voltei depressa para o cockpit, eu precisava com urgência de oxigênio, a aeromoça tinha tirado a pele de urso-polar e vestia só uma calcinha transparente, ilustrada com um pé. Sua máscara também tinha sumido, dali a pouco desapareceu a minha falta de ar, eu a enlacei com meus braços e quis beijá-la, só que aquele pedacinho de intestino, do qual escapava um cheiro morno, continuava pendurado na boca dela. Posso sentá-la no meu colo, pensei, assim não preciso ver o seu rosto. Oh, ela disse, quando a puxei pra mim, por favor, não na frente de todos. Eu me virei e percebi que a parede traseira estava estilhaçada e todos, ainda de pé, mantinham os olhos cravados em nós. Para isso que ele precisava de uma chave de fenda, disse um homem de óculos numa voz bem audível. Por favor, disse eu, alguém aqui sabe onde está o fotômetro? Ele não sabe pilotar, soluçou uma mulher quarentona, enquanto apertava um canarinho contra a bochecha. Que pena, eu disse, se a iluminação não estiver certa, nem a melhor cena presta, e pressionei um botão. Um flash lampejou e todos se espantaram. Essa vai pro jornal, disse eu, depois da queda. E agora sentem-se!, berrei em tom ameaçador, e façam silêncio! Este é o meu avião, e não quero ouvir mais nem um pio! Então, veio uma voz nos fones de ouvido, a ela confessei minha completa ignorância em pilotagem e a orientei que falasse comigo como se eu fosse uma criança. Como era a voz do pai de um menininho de cinco anos, ela conseguiu fazer isso, e nós aterrissamos cerca de três horas e quinze minutos depois, em uma pista de tábuas corridas, de paisagem com colinas cinza-azuladas. Eu presenteei o menininho de cinco anos com meu avião, em vão exigi os meus sapatos ou algo em troca, e com gosto teria pegado um quarto de hotel com a aeromoça, mas, claro, o pedacinho de intestino me impediu.

Aliás, a iluminação da foto devia estar mesmo errada. Ela só mostrou gente com cabeça de corvo.

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