Sobre presenças, ausências e a polêmica literária da vez

Nos últimos dias tem se discutido bastante sobre presenças e ausências, na polêmica literária da vez. Para quem não sabe do que estamos falando, recentemente a FUVEST divulgou uma lista com aquelas que serão as autoras lidas no seu vestibular do próximo triênio (2026-2028). Dizemos aqui “autoras” porque a lista é composta só por mulheres (a maioria delas já muito consagrada no meio literário), o que gerou um mal estar entre acadêmicos, que escreveram uma carta contra a fundação que organiza a prova, pedindo a mudança da lista.

Não estamos de acordo com a posição defendida pelos autores da carta, que aliás está assinada por nomes importantíssimos para os estudos de literatura no Brasil. Por isso, como não houve abaixo-assinado de acadêmicos contra as listas anteriores da FUVEST, decidimos deixar alguns pontos em que viemos pensando, para contribuir com o debate:

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Antes de qualquer coisa, é importante dar um google nas listas anteriores… Elas falam por si sós. (Deixamos no carrossel abaixo algumas das mais recentes. Apenas observem.)

Lista de 2016
Lista de 2017
Lista de 2020
Lista de 2021
Lista de 2022


Os dados podem ser sintetizados da seguinte forma: 2016 e 2017 (nenhuma autora); 2020, 2021 e 2022 (entra Helena Morley, em 2018, e em 2021, Cecília Meireles, apenas). Note-se a ausência absoluta de autoras não brancas antes de 2026. As quatro imagens finais são as novas listas (de 2026, 2027, 2028 e 2029).

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Uma lista composta apenas por autoras não é uma lista de literatura precária. Estamos falando de grandes nomes da literatura de língua portuguesa, que com frequência ganham menos destaque na historiografia literária que seus pares do sexo masculino. Não dá para comparar a projeção (de mercado e de estudos) entre a literatura escrita por homens e a escrita por mulheres: segundo a pesquisa de Regina Dalcastagnè, no Brasil, 72,7% dos autores são homens, 93,9% brancos.

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Vale a pena dar uma olhada na composição das listas de 2026 a 2028. São autoras como Rachel de Queiroz, Sophia de Mello Breyner Andersen, Lygia Fagundes Telles, Conceição Evaristo e Clarice Lispector, por exemplo, além de outras de menor projeção. Ou seja: não estamos falando de estreantes, mas de nomes consagrados e de muito prestígio no meio literário.

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Trazer uma lista de autoras, incluindo autoras negras, também significa trazer perspectivas diversas das que vêm sendo trazidas até aqui para o debate. Não é apenas reparação histórica ou representatividade, mas abertura para olhares e pontos de vista distintos no universo da literatura.

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Em tempo, parece preciso dizer: o fato de existir num livro uma grande personagem (Medeia, Antígona, Julieta, Hedda Gabler, Anna Karenina ou Capitu) não faz do autor do livro uma mulher. Por isso, não traz a perspectiva feminina, destacada no tópico anterior. Outra coisa, ser ou não feminista também não resolve, ainda que seja, claro, um ponto positivo. (Ou seja, o apelo a Machado e Capitu não dá conta das ausências no quadro geral).

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De qualquer forma, Machado estará de volta à lista já em 2029, junto com Érico Veríssimo e Luís Bernardo Honwana, além das autoras que ainda estiverem na composição do triênio. E nesse meio tempo, podem estar tranquilos, os grandes nomes do cânone não deixarão de ser lidos nos muitos outros espaços em que continuam sendo regra.

Aliás, serão só três anos das tais listas apenas com autoras. Quantos foram os anos com duas, uma ou nenhuma mulher na lista? A pergunta não é retórica: tentamos calcular e não conseguimos, já que são muitos.

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É sintomático que uma lista só de autoras cause tanto rebuliço, quando a maior parte das disciplinas da graduação em Letras (sem falar na estilística do Ensino Médio) é composta quase exclusivamente por autores homens (à exceção, claro, de Clarice, que aparece como menção honrosa ao gênero, para não dizer que não falamos das flores).

Por que essas listas incomodam tanto?

Sabemos: vão falar da literatura em perigo, da sociologização da literatura, da literatura como documento, da importância irrevogável de determinados nomes (tão seguramente indispensáveis quanto dispensáveis os das autoras até então ausentes), ou da militância errática, da injustiça com os autores (que de nada têm culpa), dos meios inadequados de buscar reparação, da perda do valor da literatura em si mesma, da pouca importância do gênero e da cor de quem escreveu (pois “o que importa é a qualidade”), dos ressentimentos (Harold Bloom mandou lembranças), etc etc etc.

Mas tudo isso está aí há muito tempo: a literatura está “em perigo” desde que nasceu. E tem se mantido pelo desejo de quem a ama. Por isso, repetimos a pergunta: por que tanto incômodo?

Às vezes, é preciso sustentar o mal-estar para continuar caminhando. 

A passos lentos, mas firmes, caminhamos. Avante.

Como escrever um ensaio acadêmico?

O mais certo seria escrever este texto de maneira ensaística. Porém, como vocês logo vão perceber, a forma ensaio pode ser enigmática e obscurecer um pouco as coisas, não podendo ser entendida e planejada como uma receita de bolo ou coisa parecida, já que o ensaio se desenrola e se desenvolve à medida que se escreve, e não inteiramente de antemão.

Como o intuito desta publicação é a objetividade, optamos por uma forma, digamos, menos aberta, mas não de todo fechada, para orientar escritores que querem ou precisam (por quaisquer motivos) escrever um ensaio acadêmico ou científico.

Antes de começar, no entanto, gostaríamos de dizer que o texto abaixo é uma adaptação de alguns trechos e comentários feitos por pesquisadores da Unicamp que comentam sobre o gênero. A ideia foi disponibilizar o conteúdo desse texto de um jeito mais descontraído. Esperamos que vocês façam bom proveito!

O que é um ensaio?

Antes de qualquer coisa, é muito importante destacar os adjetivos que você coloca depois da palavra “ensaio”: literário, científico, acadêmico, jornalístico, biográfico etc., porque, se você deseja escrever um ensaio, é preciso saber de que tipo de ensaio estamos falando, já que esse gênero textual é mutante e está presente tanto no vasto grupo das literaturas, quanto entre os vários gêneros acadêmicos.

Entende-se por ensaio um texto que, à maneira dos artigos, tem por pretensão apresentar ideias e pontos de vista a respeito de determinado assunto. Mas não se engane: o ensaio não é um simples texto dissertativo e/ou argumentativo, porque nele o escritor tem maior liberdade formal e não precisa explorar o tema principal de um jeito tão aprofundado e sistemático.

Nesse caso, é possível dizer que ao contrário de ter que defender e argumentar contra ou a favor de uma tese, no ensaio o escritor precisa desenvolver e sustentar uma hipótese. Nesse sentido, o ensaio pode ser entendido como uma tentativa, um lançar-se sobre um tema na busca de melhor compreendê-lo e situá-lo, sem ainda chegar ao ponto de construir uma visão sólida sobre ele.

O ensaio acadêmico

Esta é a modalidade mais utilizada nas universidades, principalmente nos cursos de Ciências Humanas. Em geral, os trabalhos finais de disciplina pedem justamente para que o aluno escreva um ensaio acadêmico sobre determinado assunto, levando em conta os textos que foram lidos e o conhecimento que foi adquirido ao longo das aulas, além da bagagem pessoal construída pelo estudante durante sua formação.

Normalmente, é avaliada tanto a pertinência das hipóteses apresentadas pelo autor como sua argumentação em favor dessas hipóteses, além da originalidade da escrita. Por esse último motivo, o ensaio também pode apresentar certa literariedade, já que é um espaço em que as marcas do estilo pessoal do autor não só são aceitas como também desejáveis. Dessa forma, em alguns casos, o ensaio tende a performar aquilo que apresenta por meio de sua linguagem.

A forma ensaística

Muita gente acredita que basta escrever na primeira pessoa do singular – “eu penso” ou “eu existo” – para que um texto adquira ares de ensaio.

Contudo, a primeira pessoa do singular pode ser uma grande armadilha, podendo levar o texto ensaístico a um discurso barato e opinativo, se não trouxer a necessária reflexividade e potência do pensamento que fazem do ensaio algo cativante e provocador para aquele que o lê.

Mais do que simplesmente usar o eu para marcar o discurso, a forma ensaística está na ousadia de quem ensaia, ou, dizendo de um outro modo, não reside na tentativa de convencer o leitor com argumentos frios, mas de convidá-lo a experimentar o texto como se experimenta uma dança – o que não quer dizer que a lógica e a coerência não sejam importantes aqui.

Estrutura

É durante o ensaio que se cria mais livremente, enquanto a coreografia ainda não está totalmente definida. Por isso, diferentemente dos artigos científicos, no ensaio os escritores têm muita liberdade formal; um ensaísta não precisa, por exemplo, respeitar estruturas do tipo introdução-desenvolvimento-conclusões, embora também não seja errado fazer um texto “fechadinho”. O ponto é que no ensaio pode-se desenvolver o argumento pelo caminho que melhor funcionar para o autor, sem seguir um modelo pré-formatado.

É claro que isso depende da revista, plataforma, e até daquilo que seus professores ou contratantes entendem por “ensaio”. No entanto, não há dúvidas de que esse gênero tem uma abertura formal difícil de encontrar em outros textos acadêmicos, diferente do artigo, do projeto ou do relatório, que são mais restritivos e rigorosos.

Agora, é preciso dizer também que “essa tal liberdade” formal pode embaralhar o começo da escrita, ficando o ensaísta sem saber muito bem por qual trilha seguir. É por isso que é comum encontrar algumas sugestões de estrutura, que podem ajudar na hora do bloqueio. Abaixo, deixamos alguns modelos para você se inspirar.

Ensaio descritivo
Apresenta, de forma expressiva, objetos, locais e eventos para que o leitor consiga vislumbrar e tenha uma sensação clara sobre aquilo que foi descrito.

Ensaio explicativo
Tem por objetivo descrever um termo ou fato específico através de outros termos, fatos e metáforas.

Ensaio narrativo
Descreve uma sucessão de eventos a partir de uma perspectiva subjetiva privilegiada e explicita o desenvolvimento pessoal do narrador em termos de experiências e reflexões.

Ensaio comparativo
Visa demonstrar relações e diferenças mais substanciais entre dois ou mais itens analisados.

Ensaio de persuasão
Pretende convencer o leitor sobre as ideias ou opiniões do autor. O autor precisa (a) demonstrar que seu ponto de vista é razoável, (b) manter a atenção do leitor ao longo do texto e (c) fornecer evidências fortes para sustentar o seu ponto de vista.

Ensaio reflexivo
Inicia-se com uma proposição e um argumento, a seguir apresenta um contra-argumento e, por fim, derruba o contra-argumento com um novo argumento.

Fonte: Redação Científica/Unicamp.

É claro que nenhuma dessas estruturas é definitiva, e é sempre importante considerar que possivelmente o tema discutido vai impactar na forma como você escreve e no percurso das letras diante da tela. Por isso, não se esqueça: esses modelos são apenas uma ignição para que você desenvolva sua própria estrutura textual, de acordo com o caminhar da redação. Na dúvida, tente estruturar o texto com apenas um tópico ou argumento por parágrafo, buscando passar de um tema ao próximo com sutileza para que o leitor não fique perdido. Afinal, você (provavelmente) quer que seu leitor te acompanhe nesse percurso. Certo?

Dicas de ouro

1. Distancie-se do texto. Dê a você mesmo, se for possível, um tempo para assimilar e refletir sobre o que está escrevendo. Ao se afastar do texto, pode ser que você faça novas conexões, perceba erros de que não tinha se dado conta ou queira acrescentar ou remover algo que faltou ou sobrou. Para isso, um intervalo entre a escrita e a releitura é fundamental e vai ajudar a melhorar seu ensaio.

2. Suavize suas afirmações. Pode parecer estranho (ainda mais se você cresceu praticando o “modelo Enem” de redação, em que não há muito espaço para antíteses e reflexões mais aprofundadas), mas ser categórico demais tira parte da força do seu texto. É preciso pensar que o que você está expondo não são fatos – contra os quais não há opiniões –, mas interpretações, conexões, tentativas de explicações, etc. Portanto, ao invés de escrever que “o que Sócrates quis dizer com o mito da caverna é que…”, é melhor modular a frase e propor algo como “o mito da caverna pode ser interpretado como…” ou “o mito nos leva a pensar que…”, etc. Além disso… É básico, mas não custa lembrar: evite escrever de maneira preconceituosa e/ou ofensiva. O cuidado com a escrita também é o cuidado com o outro que irá ler o seu texto.

3. Capriche na conclusão. Em especial, capriche na última frase, que você pode aproveitar para reforçar a ideia principal do texto de uma maneira marcante para o leitor. É com ela que seu leitor vai ficar depois de terminar a leitura, então vale a pena investir em algo que o deixará com a impressão desejada. Um final de impacto – e não de efeito – ainda tem seu lugar ao sol.

Oito romances fundamentais para ficar por dentro dos clássicos da ficção científica

Texto por Isadora Urbano

Oiê! Na lista de hoje, elencamos oito romances (e uma surpresa!) para quem quer começar a se aventurar pelos mares da ficção científica. A lista inclui desde textos muito antigos e canonizados a outros menos conhecidos, mas que têm conquistado seu lugar entre os destaques do gênero! Além desses, muitos outros seriam dignos de entrar numa lista dos melhores ou mais importantes – e é também por isso que não vamos colocar os romances indicados nesse tipo de competição: afinal, tem espaço pra todo mundo, não é mesmo?

Ainda assim, os romances escolhidos foram selecionados a dedo por uma aca-fan que tem buscado conhecer mais desse imenso universo literário! Vamos embarcar nessa com a gente? 😃

1. Frankenstein, de Mary Shelley (1818)

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O clássico de Mary Shelley foi considerado por Brian Aldiss o primeiro romance de ficção científica já escrito. 😮
E nós também achamos que ele merece a honraria! Afinal de contas, o célebre romance de Shelley mistura elementos da literatura gótica e de horror com extrapolações dos avanços científicos no campo da biologia e da medicina.
Brincando de deus, Frankenstein criou um monstro – um que vive no mundo, e um que habita dentro de si. Mas qual dos dois será mesmo o pior? 🧠🦴🧟

2. Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne (1864)

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Outro autor que merece destaque no campo da ficção científica é Júlio Verne, que escreveu, dentre tantas histórias, Vinte mil léguas submarinas, A volta ao mundo em 80 dias, A ilha misteriosa e Viagem ao centro da Terra, que escolhemos para entrar nessa lista.
Apesar de ser considerado um dos pais do gênero ficção científica, os livros de Júlio Verne costumam aparecer mais ligados às histórias de aventura – como se um um livro de sci-fi não pudesse ser ao mesmo tempo uma aventura!
Em Viagem ao centro da Terra, um cientista e seu sobrinho, acompanhados de um guia islandês, conseguem descer pelo interior da crosta terrestre, e lá encontram todo um mundo desconhecido, que contém desde dinossauros e homens das cavernas aos mais estranhos animais imaginários!
Com certeza, é um dos livros que não poderia passar batido! 💛

3. A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells (1898)

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Outro clássico indispensável na lista dos romances de ficção científica é A guerra dos mundos, de H. G. Wells – outro nome incontornável do gênero!
Inventor de diversos temas que se tornaram convenções na escrita do sci-fi, em A guerra dos mundos, Wells nos apresenta uma invasão marciana narrada em primeira pessoa por uma de suas testemunhas.
Nesse contexto, o poder bélico dos alienígenas é tão superior ao dos seres humanos que pouco resta à nossa pobre espécie senão se resignar ao massacre. Mas nem tudo está perdido! E a narrativa de Wells mostra como acontece de os seres mais subestimados se tornarem os heróis da vez.

🤑 Você pode adquirir gratuitamente o e-book do conto A porta no muro, também de Wells, em sua edição Kindle pela editora Wish.

4. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932)

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No mais conhecido livro de Huxley, entramos em contato com a primeira distopia da lista! – Sim, distopias também são ficção científica!
Nesse mundo, os bebês são criados em laboratório e condicionados – química e psicologicamente – a agir de acordo com suas castas: alfas e betas ganham os melhores cargos e luxos, enquanto deltas e gamas vivem mecanicamente suas vidas de exploração, e todos são viciados em soma, uma droga para aliviar o vazio dessa vida medonha!
Mas tudo começa a dar errado quando Bernard, o protagonista, começa a questionar a superficialidade da sua existência, almejando mais, ainda que permaneça guiado por princípios fúteis.
Ao fazer uma viagem a uma “reserva”, onde vivem os povos que não foram atingidos por essa civilização, Bernard e a moça que está tentando impressionar conhecem John, o selvagem, que volta com eles para o mundo moderno. A partir desse ponto, é só confusão atrás de confusão – e garanto que, pelo desenrolar da história, Huxley não parecia nada otimista quanto ao futuro que imaginou! 🚁

5. Blade Runner: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick (1968)

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Nessa narrativa, acompanhamos um caçador de androides, que trabalha “aposentando” (um eufemismo para matando) um grupo específico de andys, que teria fugido da colônia em Marte para viver livremente na Terra. Alternadamente, assistimos à vida mais monótona, e mais sensível, de Isidore, um “cabeça de galinha”, afetado pela poeira radioativa que atingiu todo o planeta.
O livro aborda diversos temas da maior importância, como a religião e a nossa relação com os animais, mas sem dúvidas o tema que mais chama a atenção é a dificuldade da distinção entre os que são e os que não são humanos, pois nesse mundo os androides fugitivos são praticamente idênticos a nós.
Para distingui-los, o caçador Deckard aplica um teste de empatia e no contexto do livro, é o resultado desse teste o que justifica o assassinato a sangue frio e a absurda desumanização dos androides. Por essas e outras, as questões que Blade Runner levanta continuam mais que atuais – e a leitura, por si mesma, é muito envolvente.

6. A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin (1969)

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No romance de Le Guin, o embaixador Genly Ai visita o planeta Gethen para convencer seus líderes a se unir à Liga de Todos os Mundos (algo como a ONU, ou parecido). Mas Genly se depara com entraves de um tipo inesperado: o fato de os gethenianos não possuírem as nossas formas de gênero – não sendo nem homens, nem mulheres.
Além de discutir os papeis de gênero, A mão esquerda da escuridão também proporciona reflexões muito válidas sobre a amizade, a lealdade e as dinâmicas da vida política, e isso tudo sem falar na incrível aventura no gelo que se passa por volta da segunda metade do livro!

Vale lembrar que esse romance é considerado um dos pioneiros no subgênero de ficção científica feminista, que também conta com grandes nomes como os de Joanna Russ (The female man) e Angela Carter (A paixão da nova Eva). 💋💪

7. Matadouro Cinco, de Kurt Vonnegut (1969)

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O romance de Vonnegut é instigante por várias razões: além de ser fragmentado e pós-moderno, ele apresenta uma narrativa muito próxima à vida pessoal do escritor, um dos sobreviventes ao bombardeio na cidade alemã de Dresden, durante a Segunda Guerra Mundial.
No livro, o personagem central viaja no tempo – e no espaço – entre seu futuro como um optometrista casado e com filhos, que leva uma vida relativamente tranquila, e os momentos do passado, em que era ainda um jovem soldado tentando sobreviver à dura realidade como prisioneiro de guerra.
Além disso, o personagem também conta de suas viagens ao planeta Tralfamadore, para onde teria sido sequestrado para servir de reality show aos tralfamadorianos.

O livro deixa livre a interpretação quanto à questão das viagens no tempo – se seriam, de fato, viagens reais ou viagens na memória. Independentemente disso, é uma obra que vale a leitura, sendo um dos bons exemplos de como a ficção científica também pode servir a repensar os traumas da nossa história.

8. Kindred: Laços de Sangue, de Octavia E. Butler (1979)

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No romance Kindred – Laços de família você vai acompanhar a história de Dana, uma jovem escritora afro-americana, que de repente viaja para o tempo de seu tataravô, Rufus: um menino branco e filho único de uma família latifundiária do sul dos Estados Unidos. Só que o salto temporal de Dana é um mistério que o livro de Butler não soluciona: não há qualquer sugestão de tecnologias, sofisticadas ou não, que sejam capazes de romper a barreira do tempo – uma das razões porque, vez por outra, aparece a dúvida quanto ao enquadramento do romance na categoria de ficção científica, o que pesa ainda mais por ser uma narrativa muito próxima à história e às questões pós-coloniais.

Agora, um detalhe interessante e que corrobora a ideia de se tratar de uma ficção científica é a posição de Dana em relação à maior parte das personagens da trama. Pelo fato de o período histórico para o qual ela foi transportada ser antes da guerra civil americana, Dana se vê como uma espécie de alienígena: incapaz de se comunicar e agir da forma que conhece e sendo sempre vista com desconfiança, como uma “pessoa fora do lugar”. 👽 E aí, o que você acha?

Bônus: A Verdadeira História da Ficção Científica, de Adam Roberts (2018)

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Se você se interessou pelo gênero e gostaria de ler mais sobre suas questões históricas e teóricas, uma ótima recomendação é o livro A verdadeira história da ficção científica, de Adam Roberts!

Nele, o autor apresenta algumas das muitas definições de sci-fi e o desenvolvimento histórico do gênero, passando pelas suas origens entre os séculos XVI e XIX, as revistas pulp e os sucessos nas telas de cinema.

O livro é dividido em 16 capítulos, sendo que o último é sobre a ficção científica do século XXI. A primeira publicação do livro, em inglês, foi feita em 2005, mas foi em 2018 que chegou para o público brasileiro pela editora Seoman.

O que achou da nossa lista? E o que mais você acha que deveria aparecer por aqui? Conta pra gente! Vamos adorar te ouvir ♥

5 contos clássicos de ficção científica para se apaixonar pelo gênero

Olá! E bem-vindos ao primeiro post do Duras Letras em 2021! Para abrir o ano com chave de ouro, especialmente de um 2020 tão surreal como todos sabemos que foi, proponho aos queridos leitores uma breve lista de 5 contos de ficção científica escolhidos a pente fino – só a nata da nata!

E se você ainda tem dúvidas se o gênero ficção científica é para você, saiba que essas são algumas das melhores histórias para tirar a prova, selecionadas a dedo para impressionar até os leitores mais exigentes! Vamos lá?

1. “Razão” (1941), de Isaac Asimov

O primeiro conto da lista é Razão (do livro “Eu, robô”), do consagrado Isaac Asimov, em que acompanhamos a tentativa de um androide de compreender sua própria origem e propósito. Recém-construído por dois humanos numa estação espacial, o robô não acredita que seres cuja inteligência fosse tão menor que a dele próprio pudessem tê-lo criado, a despeito das inúmeras evidências que seus criadores apresentam para convencê-lo do contrário.

O conto é instigante por levantar reflexões sobre a relação entre criador e criatura, aí inserido o debate sobre o criacionismo e a fundação das religiões. Asimov também nos faz encarar, não sem dificuldades, a complexa situação dos postulados lógicos, que – no limite – se aproximariam muito das questões de fé. A pergunta final que o conto suscita é: como saber o que é real?

Para os amantes do ceticismo e questionadores de carteirinha, é uma ótima pedida! Se é o seu caso, clique aqui ou no botão abaixo para ler o conto completo.

“Razão”, de Isaac Asimov

2. “Vocês, zumbis…” (1959), de Robert Heinlein

O segundo conto da nossa lista é Vocês, zumbis… (“All you zombies“), que talvez conheçam por meio da adaptação cinematográfica Predestinado (Predestination). Nele, seguimos de perto o relato de Jane, um homem que, tendo nascido com os dois sexos, passou a maior parte da juventude como mulher e, após ter tido uma filha, foi transformado cirurgicamente para manter apenas os caracteres sexuais masculinos.

Ainda na maternidade, contudo, sua filha é sequestrada, e Jane, que nunca desistiu de encontrá-la, segue sua vida sem muito entusiasmo. Enquanto conta sua história para o barman com quem conversa, este revela, misteriosamente, já conhecer muitos detalhes da sua vida, e apresenta a solução para finalmente encontrar a filha, depois de muitos anos – a solução que, no fim das contas, está na origem do próprio problema, com direito a descobertas bombásticas.

Gostou? Clique aqui ou no botão abaixo para ler o conto traduzido.

“Vocês, zumbis”, de Robert Heinlein

3. “A gaiola de areia” (1962), de J. G. Ballard

O terceiro conto, “A gaiola de areia” (The cage of sand), de J. G. Ballard, presente no livro As vozes do tempo, apresenta uma perspectiva existencialista sobre os sonhos da conquista espacial.

Acompanhamos de perto a vida de Bridgeman numa Cabo Canaveral aterrada de areia marciana, onde, além dele, vivem apenas dois outros personagens: Travis, um ex-astronauta com problemas de consciência, e Louise, uma viúva cujo marido morreu no espaço. Ao longo do conto, descobrimos que os três personagens têm relação próxima com a atividade espacial, e vivem como fugitivos numa terra desertificada e contaminada. À noite, eles assistem juntos à “conjunção”, isto é, o momento em que as cápsulas de astronautas que morreram em serviço atravessam o céu como estrelas cadentes – mas também como caixões em perpétuo movimento.

Mais que pelo desenrolar do enredo, o conto nos toca por falar de questões próprias a toda a humanidade, como a solidão, a relação com a morte e o desafio de seguir em frente. Além disso, Ballard é um mestre da escrita, e suas descrições são tão vívidas e impactantes que só por elas a leitura já valeria a pena.

4. “Podemos recordar por você, por um preço razoável” (1966), de Philip K. Dick

 

 

(“We can remember it for you wholesale”, 1966)

O conto Podemos recordar por você, por um preço razoável (“We can remember it for you wholesale”), de Philip K. Dick – autor do clássico Blade Runner e outras obras de sucesso –, conta a história de Douglas Quail, um homem cujo sonho sempre foi conhecer Marte. Sendo um incompreendido e frustrado, ele recorre a uma empresa de implantação de falsas memórias para realizar esse desejo, porém, durante o procedimento, descobre-se que essa memória já estava em sua mente. A partir daí, a história se torna cada vez mais próxima de um suspense/thriller, em que seguimos junto a Quail na tentativa de saber o que de fato aconteceu e como ele está envolvido nessa história. Para quem curte narrativas com muita ação, surpresas e reviravoltas, a história de Dick é imperdível.

O conto faz parte da coletânea “Minority Report – A Nova Lei”, e foi adaptado para o cinema no filme “O vingador do futuro” (“Total Recall”), que ganhou uma nova versão cinematográfica em 2012. Outro filme que trabalha a questão da implantação (ou, no caso, remoção) de memórias e que vale a pena conferir é “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, do impecável Charlie Kaufman.

 

5. “Superbrinquedos duram o verão todo” (1969), de Brian Aldiss

 

 

(“Supertoys last all summer long“, 1969)

Chegamos ao último conto da nossa lista: Superbrinquedos duram o verão todo (“Supertoys last all summer long“), de Brian Aldiss, publicado no livro de mesmo título.

O conto apresenta a perspectiva de David, um menino robô cujas capacidades para amar, interagir e compreender o mundo são como as de um menino humano. Contudo, David não é amado, e embora se esforce para expressar seu afeto à mãe, Monica Swinton, ela não retribui seus sentimentos e não consegue se conectar com ele, de modo que os dois sentem a presença pesada da solidão e da incompreensão, e o único que de fato se aproxima de David é Teddy, um robô ursinho que lhe faz companhia – e que também é rejeitado pela “mãe”. Ao final do conto, o senhor e a senhora Swinton celebram o fato de finalmente terem recebido a autorização do governo para ter um filho, e paira a dúvida sobre o que será feito de David e Teddy.

O conto é singular por sua capacidade de nos levar a pensar sobre a natureza do amor, as condições de um ser para se conectar a outro e as formas nocivas com que muitas vezes tentamos preenchemos o vazio e a infelicidade de nossas vidas, sem nos atentar para como isso pode causar sofrimento a outros seres. Afinal, quem é mesmo capaz de amar?
Também este conto foi levado às telas do cinema na adaptação “A.I. – Inteligência Artificial”, do diretor Steven Spielberg, uma versão que certamente vale a pena conferir.

 

Para finalizar…

 

Essa seleção foi pensada com carinho especialmente para as pessoas que têm curiosidade com ficção científica, mas pouca disposição para quebrar a cabeça tentando achar sozinhas aquilo que vale à pena. Não quer dizer que sejam as únicas: na verdade, existem muitas outras histórias legais por aí, esperando apenas ser encontradas. Espero que esse post tenha ajudado a entender que ficção científica não é só sobre robôs, astronautas, marcianos e raios-laser, mas sobre a nossa realidade, identidade e questões fundamentais, ficcionalizadas em outros universos possíveis. E aí, qual você vai ler primeiro?

 

Como ler poesia: dicas para desvendar o universo poético

Como ler poesia? Ler poesia é desafiador, mesmo para os leitores mais experientes. O que não quer dizer que não existam estratégias de análise que ajudem na empreitada. As informações a seguir pretendem ajudar você a se aventurar na leitura da poesia – e, quem sabe, ir até mais fundo nas suas experimentações.

O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema.

Décio Pignatari

Sintagma e paradigma

Segundo Pignatari, no livro O que é comunicação poética (Ateliê Editorial, 2011) a contiguidade (proximidade) e a similaridade (semelhança) são os dois processos de associação ou organização das coisas, que foram o eixo da seleção, chamado de paradigma, e o eixo da combinação, a que se chama sintagma.

Quando duas (ou mais) coisas se associam por características comuns a si, as associamos pelo eixo paradigmático (o da similaridade). Observe o mosaico abaixo, que ilustra a questão:

Certamente, é só bater os olhos para reparar que os objetos em questão, embora sejam das mais variadas naturezas, partilham de uma mesma cor, o verde, que é seu paradigma. Agora observe a seguinte imagem:

O cardápio acima oferece opções de sorvete, dentre os quais o consumidor deverá escolher o (ou os) que deseja. Se, além do sorvete, ele também escolhe um prato salgado e uma bebida entre as opções, ele irá criar um sintagma, ou seja, uma seleção ou reunião, a partir de escolhas dentro de conjuntos de pratos, bebidas e sobremesas.


Metáfora e metonímia

De acordo com o linguista Jakobson, a metonímia (a tomada da parte pelo todo) e a metáfora (a semelhança entre duas coisas, apresentada por uma palavra ou conjunto de palavras) são as duas figuras de linguagem que predominam nessa lógica, sendo que a metonímia prevalece no sintagma e a metáfora no paradigma.

Pensemos agora nas seguintes frases:

(a) Maria é flor.

Associamos as duas partes, sujeito e predicado, numa metáfora, por contiguidade, que aproxima não as duas palavras em si, mas as duas coisas: entre Maria e a “flor”, deve haver características comuns: o perfume, a delicadeza, ou algo mais. Agora leia a próxima:

(b) Flora é flor.

Nesse caso, além da metáfora do primeiro exemplo, temos ainda a semelhança entre as duas palavras “Flora” e “flor”, fazendo que a semelhança entre os objetos seja traduzida também nos sons das palavras que os designam. A semelhança dos sons entre palavras ou numa mesma palavra é chamada paronomásia, e é ela que possibilita o trocadilho e a poesia. Para facilitar, a metáfora aproxima a semelhança de duas coisas (significados), e a paronomásia, de duas palavras.

Quando o eixo da similaridade se projeta sobre o eixo da continuidade, é quando a linguagem apresenta a sua função poética – é o que concluiu Jakobson. Na terminologia de Pierce, a marca dessa função é a projeção do ícone sobre o símbolo (ou seja, transformar o símbolo, a palavra, em ícone: figura). Podemos ainda pensar nos termos do analógico que se projeta sobre o lógico.


Paronomásia

Exemplos são uma boa forma de entrar neste tópico. Então, diga, o que você observa em cada imagem abaixo?

As paronomásias podem ocorrer em diferentes formas: (i) a paronomásia propriamente dita, (ii) o anagrama, (iii) a aliteração e (iv) a rima. Os exemplos abaixo ilustram cada tipo, respectivamente:

1 — Paronomásia (propriamente dita)

Há soldados armados, amados ou não

— Geraldo Vandré

2 — Anagrama

Amortemor – Augusto de Campos

3 — Aliteração

Se Sara sarar do sarampo
Sara será sereia
pois sara não é feia
embora não seja um anjo
merece um solo de banjo

– Chacal

4 — Rima

Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?

– Cacaso

Ritmo

O ritmo se configura como a divisão no tempo e no espaço de elementos verbovocovisuais (verbais, vocais, visuais). Na linha ocidental, há quatro tipos básicos de ritmo, a serem mostrados a seguir.

(a) Binário ascendente

Um som fraco (breve) seguido de um forte (longo): – —

A coi-sa con-tra a coi-sa (Orides Fontela)

(b) Binário descendente

Um som forte seguido de um fraco: — –

es-sas plan-tas fo-ram vin-do (Ana Martins Marques)

(c) Ternário ascendente

Dois sons fracos seguidos de um forte: – – —

Pe-las on-das do mar sem li-mi-tes (Álvares de Azevedo)

(d) Ternário descendente

Um som forte seguidos de dois fracos: — – –

Fa-ses que vão e que vêm (Cecília Meireles)

Métrica

As possibilidades rítmicas da tradição luso-brasileira se configuram, em geral, por meio de algumas regras. Para conhecê-las, é preciso lembrar que:

(1) As sílabas são contadas apenas até a última tônica (sílaba forte);
(2) A sílaba terminada em vogal átona (fraca) faz elisão (ou seja, emenda) com a vogal átona seguinte, e por isso contam apenas como uma sílaba;
(3) Os acentos das regras são os obrigatórios, não excluindo as possibilidades de outros.

Vamos lá!

a) Versos de 5 e 7 sílabas

Acentue onde quiser. Os versos de 5 sílabas (os pentassílabos) são chamados de redondilha menor. Os de 7 (heptassílabos), redondilha maior.

U | ma | pa | la | vra | se | a | bre (Emily Dickinson)

b) Versos de 8 sílabas

Os acentos tônicos vão na 4ª e na 8ª, ou então na 2ª (ou 3ª), na 5ª e na 8ª.

c) Versos de 9 sílabas

Acentos na 3ª, 6ª e 9ª sílabas ou na 4ª e na 9ª.

d) Versos de 10 sílabas (decassílabos)

Acentos na 6ª e na 10ª, ou na 4ª, 8ª e 10ª.

e) Versos de 11 sílabas (hendecassílabos)

Acentos na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª, ou na 5ª e na 11ª, ou ainda na 3ª , 7ª e 11ª.

f) Versos de 12 sílabas (Alexandrinos)

Há três tipos:

  • Acentos na 4ª, 8ª e 12ª – o mais fácil e comum.
  • Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que o da 6ª caia em palavra oxítona, marcando o meio do verso.
  • Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que a 6ª caia em palavra paroxítona terminada em vogal átona, de modo a fazer elisão (emendar) com a vogal átona seguinte, formando a 7ª sílaba.

Os versos que possuem métrica mas não rima são chamados de versos brancos, enquanto aqueles que não se valem de nenhum dos dois se chamam versos livres.


Rima

Apesar de ser tipicamente reconhecida como paronomásia, as rimas merecem um tópico à parte. Elas são, via de regra, as semelhanças entre os sons que se encontram verticalmente no final dos versos. As rimas mais previsíveis (ar, ão, eira, osa, etc.) são menos prestigiadas, porque informam menos. Rimas menos prováveis informam mais, e por isso têm mais crédito. A rima também pode ocorrer dentro do próprio verbo, como faz Poe em O Corvo, ou ser incompleta (toante), quando só as vogais se assemelham, como no exemplo abaixo:

Pode ser magrela, pode ser retinta
Porte de gazela, olho de leoa
Ser muito versada e hábil com a língua
Do tipo que domina idiomas
Mas ela não samba (...)

Já Reparô? – Adriana Calcanhotto

Os tipos de Pound

Ezra Pound define três tipos fundamentais de poema. São eles os que se sobrepõe a fanopeia, a melopeia ou a logopeia.

Na fanopeia… sobressaem as imagens, as comparações e metáforas.
Na melopeia… sobressai a musicalidade.
Na logopeia… as ideias são o principal, e por isso se aproxima mais da prosa.

No poema acima, de Leminski, qual das três correntes parece predominar? E no trecho a seguir, de Fernando Pessoa?

Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo 
(...)

"Tabacaria" – Fernando Pessoa

Outros caminhos

O poema ao lado, de Anatol Knotek, além de brincar com os sentidos das palavras, se atreve também a pensar sua forma no papel. Ela não obedece a lógica linear comum dos poemas tradicionais, e trabalha em conjunto os significados dos signos (as palavras), o desbotamento da cor e o sumiço de certas letras, criando novas percepções.

O poema abaixo, de Antero de Alda, também não se permite ler pela lógica tradicional. Ele pressupõe seu “desenho” como parte indispensável da leitura, não podendo, por isso mesmo, se reduzir às palavras que o compõem. Veja você!

Também o poema O Pulsar, de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso, partilha desse jogo de sentidos que se dá por meio dos desenhos do próprio poema:

Poema de Augusto de Campos / Canção de Caetano Veloso

Para encerrar, deixo para vocês a sugestão de leitura que inspirou este post, o livro O que é comunicação poéticade Décio Pignatari. Outras leituras que podem inspirá-los também se encontram em ABC da Literatura, de Ezra Pound, Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, Linguística e Comunicação, de Jakobson, O Que é Poesia Marginal, de Glauco Matoso, e O Arco e a Lira, de Octavio Paz.

Entre Drummond e Borges

Carlos Drummond de Andrade e Jorge Luis Borges cresceram e criaram suas literaturas em contextos muito similares: embora nunca tenham chegado a se conhecer, os dois foram escritores a presenciar as grandes mudanças da modernidade, a vida da cidade, o conturbado começo do século XX e suas grandes marcas na história. Apesar de o primeiro ter se alçado principalmente como poeta, enquanto o segundo se destaca pelos seus contos, semelhanças relevantes permeiam a literatura desses dois nomes de peso da América do Sul. O texto a seguir apresenta algumas das ligações entre os autores, a partir dos aspectos fundamentais de suas obras.

Tão complexa é a realidade (…) que um narrador onisciente poderia redigir um número indefinido, e quase infinito, de biografias de um homem.

(Jorge Luis BORGES)

A partir dessa citação, é possível observar que na obra borgeana há toda uma apropriação da realidade que assume o pressuposto da multiplicidade e do momentâneo: as muitas camadas do real se sobrepõem e através do seu recorte de imagens e de seu consecutivo desvio se delineia um “caos de aparências” que atravessa a literatura do autor.

Nesse sentido, o argentino delimita um olhar sobre a realidade em que o objetivo não é a mímeses, mas o simulacro metafórico que prescinde de referentes extratextuais. Por essa mesma razão, os personagens borgeanos não são psicologizados, e a ênfase se dá sobre a trama, motivo pelo qual a brevidade se mostra um recurso estilístico recorrente, dialogando com a tradição literária (e não apenas a argentina) em vistas de questioná-la e não enfeitar a flor, propondo mesmo uma reflexão sobre o que significa criar uma literatura argentina – o que ultrapassa em muito a inserção de elementos da cor-local.

Ainda assim, a escrita borgeana se apropria, borra, e miniaturiza toda a tradição argentina do século XIX: parte do caráter popular de seus contos tem a clara influência da literatura gauchesca (marcas de oralidade, culto à coragem, à violência, etc.), como se percebe em Hombre de la esquina rosada, de Historia universal de la infamia, a título de exemplo.

Há também uma forte marca anti-intelectualista, no sentido de que a busca da verdade nas bibliotecas e nos livros não leva a lugar algum. Ela assume, por isso, um caráter populista, escolhendo buscar a verdade na vida do homem comum, ao mesmo tempo que busca a totalização no seu cosmopolitismo, na erudição e no manejo da cultura.

Também parte dessa busca a ideia de circunscrever a realidade através do olhar alheio, o que faz com que seus contos carreguem ares de transcrição de relatos de terceiros. Por isso mesmo, Borges se apropria do outro e distorce a realidade desse outro sem referente externo, até sobrar a imagem comunicada a partir de fragmentos coordenados de forma coerente, ainda que plural. O jogo borgeano é, portanto, o jogo das máscaras e dos contrastes, em que os personagens, a um só tempo, estão e não estão desmascarados, onde o rosto e a máscara se encontram num ponto de divergências.

O poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade

Por sua vez, Drummond se apropria da realidade amparando-se na ideia de registrá-la como se dela estivesse apartado, embora não o esteja de fato, e embora o faça através da estética modernista. A essa busca por limitar-se a registrar (fatos, acontecimentos, sentimentos), contrapõe-se o desejo de criar laços com o outro, motivo pelo qual se apropria das memórias do passado de todos: assim como Borges, revela um claro anseio pela totalização, que se espelha nas muitas menções à palavra “mundo” na sua poesia, como destaca Miguel Wisnik.

Insere-se, assim, o gosto por um cotidiano expandido, alargado, que, como Borges, guarda o traço popular na sua poética. Nesse sentido, livros com o A Rosa do Povo confeccionam uma espécie de epopeia do cotidiano, em que a busca por uma verdade recai inevitavelmente na verdade do homem simples, do qual o poeta se aproxima como uma alteridade, como no poema O Medo, que dialoga com seus próprios temores e sua subjetividade solitária, a exemplo de Consolo na praia.

Nesse aspecto, o eu e o mundo se aproximam, se distanciam, se contradizem e se complementam na medida em que o eu-poético questiona as possibilidades dessa coletividade e de se fazer poesia na cidade e no mundo moderno. Tal inquietude, por certo, permeia toda a construção literária do poeta itabirano: o cosmopolitismo drummondiano, à divergência do escritor porteño, passa pelo sentimento de não pertencer a nenhum lugar ou grupo (“Itabira tornou-se apenas um retrato na parede”), marca de sua profunda solidão e seu senso de dépaysement, como se coloca na incompletude do poeta na roça e no elevador:

Explicação

Meu verso é minha consolação
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre…
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
Mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, [preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola…
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de quaquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era…
no elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

(DRUMMOND, Explicação. In: Alguma Poesia – 1915. Grifo nosso)

Nesses termos, o poeta mineiro demonstra apreender a realidade na perspectiva do objeto que escapa, como se quebrasse a própria possibilidade do fazer poético na bênção e na maldição de fazer parte do mundo moderno. Assim, indivíduo e mundo se flexionam constantemente, dando pistas da posição desse eu-poético frente a esse novo mundo: deslocado, inadequado, anacrônico, que carrega desde seu primeiro verso a profecia gauche (“Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.), mas que se força a esse espaço fronteiriço na postura de reconhecer-se enquanto falta ou sobra, como inclusão excludente, fazendo que essa poesia se insurja contra a “grande máquina” que coisifica pessoas e relações, mas também contra as palavras, colocando-se como uma arte anárquica que subverte o seu sentido. Desse modo, é como se essa procura pela poesia não se afastasse da procura do mundo, em que Drummond se coloca como condenado: ainda bem.

Este texto foi concebido como trabalho final para a disciplina Borges e Drummond, ministrada pelo prof. Roberto Said da Faculdade de Letras da UFMG.

Repensando Vênus

Miguel Spinelli abre seu artigo acerca de De rerum natura, de Lucrécio, com o questionamento da tradução do título. Segundo o autor, se a tradição tende a preferir “Da natureza das coisas”, fórmula mais apurada seria “Das coisas naturais”, o que, de fato, altera em muito o sentido atribuído, e se aplica melhor ao conteúdo do poema.

Em seguida, disserta sobre a abertura do livro, que contempla a invocação a Vênus, “Enéadas genitora”, e as apropriações do mito de Enéias derivado das narrativas da Ilíada de Homero. Eneida e De rerum natura, cujos autores, Virgílio e Lucrécio, são praticamente contemporâneos, denotam o mesmo ethos, tencionando unir o lendário e o real, assim como a herança grega ao berço romano, de acordo com Spinelli. Assim, ele explica, a figura de Vênus foi muito cultuada porque, sendo mãe de Enéias, era tida também como mãe de todos os romanos.

O poema de Lucrécio, no entanto, descreve em seu conjunto o ciclo das coisas naturais, desde a geração até a morte, dando início à tradição filosófica dos estudos da phýsis. Seguindo uma linha de pensamento epicurista, o poeta desloca a questão “o que é o ser?” para o pólo “o que é ou não natural do ser?”. Assim, em sua elucubração, ele defende que nada vem do nada, e tampouco retorna ao nada, sendo os processos de todas as coisas determinados pelo arranjo, desarranjo ou rearranjo dos átomos.

Spinelli disserta, então, quanto às fontes para o poema em questão. Duas delas são manuscritos conservados hoje na Universidade de Leyden, o Oblongus e o Quadratus, que tiveram como títulos De rerum natura, o primeiro, e De physica rerum origine vel effectu, o segundo. Além desses, há os códices chamados Itali, cópias feitas no século XV por Bracciolini, e que deram origem à tradição italiana dos estudos do poema.

O autor apresenta, depois, o que se poderia considerar, à primeira vista, um paradoxo da obra: a invocação de Vênus e a mensagem do livro, de que não há ou houve criação divina, sendo os átomos a origem de tudo. Sua lógica parte do pressuposto (já conhecido de Cícero) de que os deuses são desinteressados e impassíveis às questões humanas, e que em nada interferem.

Assim, se os deuses não se comovem das preces, por que invocar a Vênus logo ao início para frutificar as palavras e apartar as guerras? Dentre as razões apresentadas por Spinelli, existe Mêmio, a quem o poema é dedicado, cuja família cultuava a deusa, e a reverência aos romanos, que tinham Vênus em grande estatuto, por ser a “mãe” de seu povo.

Na perspectiva de Lucrécio, contudo, Vênus governava a natureza junto de Ver (a Primavera) e Ceres (deusa da colheita e da fertilidade), sendo, nesse sentido, a Alma Venus cultuada pelo poeta aquela responsável por promover, alimentar e nutrir a fertilização da vida. Era também ela a responsável, junto a Cupido e Primavera, por unir e festejar a fertilidade dos amantes, fazendo com que se encontrassem e se apaixonassem.

Desse modo, a Vênus de Lucrécio apresenta várias faces, dentre as quais as de musa, de mãe, de cupido, de Alma Venus e também de vulgívaga, que muito para além do arquétipo da meretriz, carrega a representação da mulher volúvel, inconstante e mutável. Todos esses predicados, por sua vez, fazem que sua síntese reapareça em uma palavra, de acordo com Spinelli: amor. Em suas muitas individualidades, esse amor poderia aparecer como amor calmo, altruísta, terno, mas também como o ardoroso e efervescente amor da paixão. (lembrando que Lucrécio, por seguir a linhagem epicurista, tende a pensar o amor-paixão como causador de mais dor que alegrias.)

Em conclusão, a figuração de Vênus retoma o ícone da fertilização da vida: eis a razão de ser uma deusa de todos os povos, mãe de todas as formas de amor.


SPINELLI, Miguel. Lucrécio E Virgílio As Várias Faces De Vênus: Musa, Genitora E Vulgívaga. Hypnos, São Paulo, n. 23, p.258-277, 2009.

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