Poema em prosa – “Moços”, de Otávio Moraes

E o assunto era o sexo, falavam, falavam, falavam demais, mais que demais, um acinte. Sentados os três, me subtraio da equação pois eu em nada estava presente, diziam de foder e de transar, delícias, enfim. O leitor não me interprete mal, não sou dessas alminhas recatadas, gosto sim de sexo, sexo não me cai mal.

Porém, me interesso muito pouco por aquilo que virou o sexo. Sim, eu sei, pareço um desses velharões costurando saudades, remoendo uma vida inteira do que poderia ter sido, mas não foi. Tenho lá minha bagagem, deixei algo na estrada, mas quem não tem? Ao fundo, em tons retorcidos de aparelho de áudio moribundo, Caetano canta:

Mas não tem revolta, não
Eu só quero que você se encontre
Ter saudade até que é bom
É melhor que caminhar vazio.

Voltemos ao sexo, sim, pois bem. O que me incomoda, talvez sim velharão, é que não, tudo às claras. Não, tudo em palavras. Não censuro, indecências, insolências, maledicências. Também tenho minha porção de palavras boas, fortes e frágeis com as quais canto, delicado, meus desejos de homem maduro. Mas acontece que, talvez ridículo, romântico, raquítico no amor, eu busque algo de ninar entre os cochichos ao pé do ouvido. Nada me desconvence de que gemer é chamar a mãe.

Afinal, a nudez é algo tão frágil, tão forte. O corpo, só corpo, deslizando aos borbotões entre o suor e o sêmen. Pensando assim, é bonito, mas bonito em silêncio. Eles, do silêncio não sabem nada. Ficam narrando e narrando e narrando. Não sabem os moços nada sobre o silêncio. Não sabem os moços que o fundamental, para muito além desse papo de pau, se diz calado, ainda que o silêncio assuma um idioma de ruídos, gemidos, mordidas, saliva e ruminação.

Agora canta Lupicínio:

Esses moços, pobres moços.
Ah! Se soubessem o que eu sei.

Eu vou embora.

Poema em prosa – “Quimera”, de Otávio Moraes

Foto de capa: Reflection with Two Children (Self-portrait) (1965) – Lucian Freud. Disponível em: dasartes.

Manhã, domingo, céu bembranco, o tempo preguiçando. Homem velho, contra o espelho, assemelhando avô velho. Homem velho é o desde sempre. Posição desigual cabe ao moço, mocidade é o mundo no novo, Deus, antes da canseira, brincandopracimadaságuas. Moço, ainda verde, é pai e mãe do próprio umbigo. Assim ruminava; assim nebulava; assim deduzia; o homem velho concreto e irreversível, tudo isso estanciado na cama. Homem velho, felino malpropício despelando preguiçoso, coçava as costas, ainda cabia n’um corpo. Filhos? Dois’homem pais d’outros home num sem-fim de picas ao leu. Casado? Uma vez, depois amasiado, depois desacompanhado de tudo. Sobraram zolhos molhados d’um vermelho raivechoro. O homem velho absurdava, nos redemonomes: Zumira, Raian, Bonifácio, Almeida, Soraia, Luzia, Carlão, Lucinda, Jeremias, Itamar, Clarice, Emília, Josué, Euclides, Nair, Leopoldo, Nara, Tadeu, Zumira, Pedro Henrique, Margareth, Lu… O homem velho trepava sonambulento o corpo das putas, ancas cor de canela, pernabraços, língua enorme avançando, seu sexo, um colar, cabeças de homem, febrava, ardia, água, mel e leite.  Nublava no catre, arquipélago de nomes, calava. Domingo é o breu, as águas bem frias. Domingo, folgava. Homem velho é mundo, mundo desalumiando gato manso,

Homemvelh…

Nem isso.

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“O homem velho” – em Velô (1985), de Caetano Veloso

Lirismo enquanto doença

Na nossa cultura, o conhecimento (segundo uma antinomia que Aby Warburg acabou diagnosticando como a “esquizofrenia” do homem ocidental) está cindido entre um pólo estático-inspirado e um pólo racional-consciente, sem que nenhum dos dois consiga reduzir integralmente o outro.

– Giorgio Agamben, em Estâncias  

No poema “Num monumento à aspirina” é possível tomar como mote o movimento metafórico entre o remédio e o sol. A predicação do primeiro caminhando em direção ao segundo, mas a partir de uma polifonia que alça o astro-rei para o papel de consciência formal, superego de uma tradição poética que através da lírica indisciplinou o consciente. Leio, portanto, este poema concentrado nas possibilidades metapoéticas da antilírica cabralina.

Antes, contudo, transcrevo-o abaixo, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo:

Num monumento à aspirina – João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

“O sol de um comprimido de aspirina”, exuberante sol, desvelador das formas, patrono de uma clareza cristalina, capaz de cegar o intuitivo, o dito natural. O sol é o pressuposto de uma operação que assume o criar enquanto oficina, é perigoso manipular máquinas em meio ao breu, lesões, acidentes e imprecisões deformam a forma.

O latejar do crânio, preambulo da aspirina, é anterior ao poema, o remédio demanda a doença e a doença faz par com o remédio. Exatamente pelo aflorar orgânico da imprecisão das formas, suas abstrações pretéritas ao nome, faz-se preciso um fármaco solar: consciência, método.

O poema articula-se enquanto o elogio do remédio “Principalmente porque, sol artificial”.  Elogio, pois, afirma-se contra o crescer vertiginoso da linguagem. O fármaco, como produto do espírito, formaliza a distância radical entre a espontaneidade e o labor. Ode, portanto, ao artifício.  

A antilírica prossegue na defesa do botânico contra o jardineiro, o método em recusa da inspiração, afinal, somente o sol em pílula é “(..) imune às leis da meteorologia”. A técnica poética, o cálculo, é apresentado como gesto ou prática capaz de se não abolir ao menos driblar a contingência romântica imposta pela inspiração.   

Convergem: a aparência e os efeitos 
da lente do comprimido de aspirina: 
o acabamento esmerado desse cristal, 
polido a esmeril e repolido a lima, 
prefigura o clima onde ele faz viver 
e o cartesiano de tudo nesse clima.

“Convergem: a aparência e os efeitos”, a luz, como lâmina, propõe, escolhe, recorta, qual sombra deve dilatar-se pelas páginas abertas da mente-oficina. Exatamente por ser conflito entre o doer e o anestesiar o momento ímpar, aquele de mais perene equilíbrio, é quando o fármaco se encontra como ao meio dia. Luz total, meridiana e penetrante, mas já antevendo o ascender das sombras, o porvir da lua. Nesse sentido, a aspirina surge enquanto emergência, objeto de uso crónico, espécie de reparo ou dique que impede que aquelas ondas fortes do oceano lírico roubem ainda mais areia à praia.

O poeta antilírico sofre como se fosse lírico pois contínua recebendo as ofensivas incoordenadas da linguagem, o sentir que precede a forma.  É como em um haikai de Matsuo Basho, que traduzo com honesta imprecisão a partir do inglês,

Nuvens 
Uma chance 
Desver a lua  
Clouds - 
a chance to dodge 
moonviewing. (Poema disponível aqui)

A perturbação aumenta a nitidez do objeto, nada melhor do que ocultar para acabar revelando. O interessante, no sentido romântico do termo, capacidade de ser gerador de interrogações, é o poema abordar uma ferida crónica, uma dor que passa somente para voltar mais forte e que por isso mesmo mantem o poeta atento, firme, na espera da derrota final contra a linguagem.

De outro lado, porque lente interna, 
de uso interno, por detrás da retina, 
não serve exclusivamente para o olho 
a lente, ou o comprimido de aspirina: 
ela reenfoca, para o corpo inteiro, 
o borroso de ao redor, e o reafina.

O remédio solar funciona tal qual lente, “Ela reenfoca, para o corpo inteiro”, cindindo interioridade e exterioridade em um todo formal, como se almejasse que a palavra fosse capaz de dar unidade ao todo.  “Lente interna”, pois no exercício de desembaraçar “o barroso de ao redor” reforça a capacidade ordenadora da linguagem poética.

A construção desse poema, suas imagens, me fazem pensar que existe algo de utópico, algo além do humanismo romântico que deu forma ao lirismo moderno. Só que no caso de Cabral eu apostaria que mais do que alcançar outro lugar, o utópico assume uma espécie de não geografia, a poesia mais interessada em ser dis-topíca do que lugar: somente nessa estância dissociada de endereço que a criação poderia assumir o rigor demiúrgico almejado pelo poeta.

Claramente: o mais prático dos sóis, 
o sol de um comprimido de aspirina: 
de emprego fácil, portátil e barato, 
compacto de sol na lápide sucinta.
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