Aperte os cintos

Houve uma época em que usar o cinto de segurança quando se estava no assento de trás do carro era uma veleidade. Algo tido como mera formalidade opcional. As viagens, por mais longas que fossem ou por mais sinuosas que as estradas se apresentavam à frente no trajeto, sempre guardavam um quê de perigo iminente, por mais que não nos atentássemos a isso. Quando o porte físico ainda me permitia, revezava a posição entre um cochilo encolhido deitado ao banco, desconfortável mas aconchegante pela sensação de velocidade e pelo vento que entrava turbulento pela janela, e um estado de espera suspensa e ansiosa pela chegada ao destino, em que ficava assentado, apoiando o queixo sobre as mãos. O olhar fixava-se através do vidro da janela para uma paisagem que passava muito rapidamente e cuja configuração se alterava entre árvores e pequenas casas de distritos isolados.

Imagino que nesse olhar algo monótono, a mente tenda a criar formas de se entreter para preencher aquele excesso do qual é difícil absorver alguma imagem real perene. Constantemente me punha com olhar fixo a uma árvore ou a um poste de luz muito adiante na estrada, e aquele curto espaço tornava-se o objetivo último do percurso: “sairei vitorioso dessa corrida assim que ultrapassarmos aquele objeto estático, logo então ficarei em primeiro lugar e atingirei o mais alto lugar do pódio”. E a corrida tornava-se uma competição pessoal, individualizada, inexistente para os outros passageiros, silenciosa. A tensão era crescente à medida que se aproximava o concorrente inanimado. Os últimos momentos antes da ultrapassagem faziam prender a respiração, e numa passagem quase invisível o poste era deixado para trás e a missão estava concluída com sucesso: alívio; sensação de dever cumprido — antes de retornar à monotonia e alterar a posição para tentar um novo sono vigilante.

Jovem e inocente, ainda havia muito o que aprender… Sempre ouvira a seguinte fala, dos mais diversos adultos: “Você entenderá quando ficar mais velho”. Quando finalmente chegaria esse momento em que o entendimento das coisas, de súbito, instalar-se-ia em mim e transformaria minha infância em minha maturidade? Esse estado de espera por algo que nunca se sabe exatamente quando cria uma angústia. O caminho se mostra cada vez mais estreito, a ansiedade torna-se parte constituinte da espera. Os objetos do cotidiano são realizados de maneira cada vez mais rotineira e irrefletida, como um caminho já traçado a ser percorrido com maiores ou menores obstáculos pouco a pouco transpassados. É como a construção de um edifício interminável, sua fundação parece nunca ter fim. O castelo na areia, a terra absorta, movediça, absorve lentamente a esperança de transformação. A árvore na estrada parece nunca chegar: Zenão — sempre metade, metade, metade… ao infinito.

Passa. Está terminada a corrida, já me encontro na primeira posição; o edifício está concluído. Nada mais está adiante, o caminho está aberto. Mas a visão está em choque, fixada atrás, nostalgicamente observando o que passara num piscar de olhos. O tempo chega — de absoluta depuração. O que resta é a saudosa memória do poste que ficou para trás. O objetivo tão aclamado se desfez em tédio, em remembranças incertas, em dúvidas. Ficou para trás a criança e sua inocência — o olhar passa quase desapercebido por este exato momento em que, lado a lado, encontram-se o ser e o seu duplo, até que sua velha metade é deixada ao longe, e sua memória travessa trai o agora impossível ímpeto pelo seu retorno. Assim deixamos para trás grande parte de nós mesmos, de uma esperança aflitiva para atingir o momento tal em que tudo se alteraria para sempre, e quando finalmente se chega, o que nos resta é a sensação vã de que aquela esperança sempre fora uma grandíssima inocuidade. Os olhos que agora deveriam contemplar o vale imenso de possibilidades à frente não conseguem senão tornar-se para a trilha estreita que passou. Não nos foi dado tempo o suficiente para contemplarmos a passagem, aquele instante perfeito em que o “eu” se divide para sempre. Não nos é dada a oportunidade de dar adeus a uma parte querida de nós mesmos, que eternamente estará perdida no abismo do tempo. O canto harmônico — ode à existência do instante em que se tem completa a vida –; este preciso momento praticamente inexistente, pois que os olhos não o conseguem captar sob tamanha velocidade, é o que se chama — eternidade.

Mas passou…


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

“À Deriva”

Há alguns dias ou semanas, lembro-me de ter visto em algum portal digital uma reportagem sobre um determinado ponto do Oceano Pacífico cuja localidade exata guardaria a maior distância com relação a qualquer porção de terra continental na face do planeta. Se me recordo com alguma precisão, havia menção a uma tendência de maior migração de animais marinhos e aves, dirigindo-se a esse ermo absoluto por diversas razões relacionadas à ação antrópica, como a pesca predatória e uma maior concentração de poluentes nas águas e no ar.

Imaginei-me sentado de pernas cruzadas neste exato ponto, como que flutuando por sobre a mais vasta imensidão do oceano, sentindo o fluxo das correntes marítimas sob minhas pernas, sem me afundar na água ou ser violentamente dilacerado pela vida animal que pouco tomaria nota da minha presença inútil ali. Imagino-me assim, pois, em um completo estado de distanciamento, de olhos bem abertos, experienciando a mais terrivelmente sublime das imensidões solitárias e das solidões imensas do ser.

Assim naufrago no isolamento ensimesmado dentro de meu próprio desengano, mas com a sutil diferença de sentir a traição dos sentidos, pois que eles não me permitem ausentar-me a essa maneira da grande máquina que gira à revelia de qualquer intervenção – humana, animal, cósmica ou divina. A atração gravitacional que assola os impulsos do meu corpo em direção a essa roda incessante faz do retorno ambiguidade: em qual dos dois estados se estaria mais próximo da realidade?

Levantar o olhar novamente através das grades da janela para a maré de prédios sob a cacofônica rapsódia de construções civis, veículos automotores e vozes alheias fez cruzar em meus pensamentos versos daquele a quem gosto de apelidar “O Poeta Desterrado”:

Eu me engano: a região esta não era; 
Mas que venho a estranhar, se estão presentes 
Meus males, com que tudo degenera. 

É de muito difícil compreensão e racionalização a experiência do isolamento. Criou-se uma dependência vital de controle, planejamento, que por ora escapa completamente às nossas ações e segue rumo peremptório desconhecido – talvez muito mais próximo do retorno ao vazio imenso do qual somos provenientes do que se possa prever ou sequer imaginar. A completa modificação do espaço se confunde com a total virgindade da paisagem oceânica: daqui, de dentro, o que altera a experiência, o que degenera o espaço com o qual convivemos é o olhar atordoado de quem se viu perdido em um universo de rumos randômicos.

Não há, nem aqui, nem lá, possibilidade de construção de sentido – por mais que se empenhe toda a energia humana na construção deste trilho, a distância (aparente ou não) é infinita, e a terra firme não passa de uma ilusão. Sinto como se o fluxo das correntes marítimas naquele ponto, o mais distante do oceano, fosse subitamente interrompido, e meu corpo, atônito, finalmente afundasse.

13 de abril de 2021.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

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