“Eu não sei. Acho que viajo muito.” – Entrevista e poemas de Marina Naves

Conversamos hoje com a poeta Marina Naves, que está em vias de lançar seu primeiro livro de poemas, Voyager (editora Escaleras). Marina (21), é poeta, tradutora e pesquisadora. Seu caminho na poesia começou ainda na infância, quando passou a se interessar pelos poemas do seu avô, João Naves de Melo. Cecília Meireles também foi de grande importância para o seu despertar literário. Na adolescência, com a leitura de poetas ultrarromânticos, Marina começou a criar gosto pela rima e pela métrica. Já na Universidade Federal de Minas Gerais, onde se formou bacharela em Estudos Literários, a autora conheceu suas duas grandes inspirações: o irlandês W. B. Yeats e a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Atualmente, Marina estuda e desenvolve pesquisa nas áreas de Literatura Portuguesa, Intertextualidade e Recepção dos Clássicos.

Isadora – Marina, obrigada por conversar com a gente hoje! Vamos começar com a criação: como é seu processo criativo? E como nasceu o Voyager?

Marina – O prazer em ter essa conversa é todo meu, Isadora! Sobre o meu processo criativo, gosto de dizer que tenho apreço em construir versos e estrofes a partir de imagens que me aparecem (às vezes claras, às vezes mais obscuras). A intertextualidade com outros autores também me ajuda bastante a me destravar de qualquer bloqueio criativo em que eu possa me encontrar em algum momento! Assim, posso partir para a segunda pergunta: Voyager nasceu do propósito de fazer uma espécie de “diário de viagens” que narrasse as jornadas que já fiz para diversos lugares. Mas, claro, tal conceito foi mudando e tornando-se mais abstrato, dando espaço para viagens mais estáticas e conceituais – que não nos tiram do lugar físico em que nos encontramos, mas que nos levam a pensar e conhecer novos horizontes.

Isadora – Muitos dos seus poemas trazem referências da cultura clássica, por meio de menções a personagens e mitos, por exemplo. Como você enxerga a sua relação com essa tradição e de que maneira seus poemas dialogam com ela?

Marina – Minha relação com os mitos clássicos é bem forte por diversos motivos. O primeiro deles, talvez, seja puro gosto. Tenho imensa curiosidade e afeição pela cultura greco-romana, o que até me levou a pesquisá-la com mais afinco enquanto estudante de Letras. Um segundo motivo para construir diálogos com a tradição em meus poemas, seria o fato de que eu acredito fortemente que os clássicos são inesgotáveis em tema e em forma. Podemos aproveitá-los para tratar de quase qualquer assunto. Os mitos gregos, por exemplo, até hoje podem ser abordados com temáticas reavivadas. Assim, eu diria que o arcabouço criativo que a tradição nos dispõe é algo tão valioso que não pode ser ignorado.

Isadora – Outro ponto que me chamou muita atenção na leitura de Voyager foi a presença marcante de alguns lugares que inspiram vários dos poemas do livro, como Montes Claros, Curitiba e Dublin, por exemplo. Como foi a escolha desses locais? O que são esses lugares para você?

Marina – Esses lugares foram escolhidos e receberam tanto destaque por causa de uma grande memória afetiva que tenho por eles: por exemplo, morei anos em Montes Claros, sonhei desde a infância em visitar a Irlanda… as imagens, ou lembranças, que eu tinha deles eram fortes e vívidas, então pensei em começar a escrita bruta do livro por esses lugares.

Isadora – E quanto à ordem dos poemas? Como foi essa curadoria?

Marina – A ordem dos poemas foi pensada para seguir uma trilha. A intenção é dar ao leitor a sensação de que está fazendo uma viagem dentro do próprio livro, seguindo pelo mundo greco-romano, depois por um ambiente de verão, depois pelo rio São Francisco e por aí vai. Tive também a ideia de fazer com que o livro terminasse num tom cíclico, como se a viagem pela vida não acabasse senão na morte.

Isadora – Obrigada, Marina! Gostaria de acrescentar alguma mensagem para os leitores de Voyager?

Marina – Eu que agradeço, Isadora! Acho que gostaria de falar mais algumas coisinhas sobre Voyager. Este pequeno livro de poemas trata de várias questões ligadas ao mundo das viagens (sejam estas introspectivas – ocorrendo no âmago de quem narra –, metalinguísticas – passando pela própria linguagem – ou concretas – ou seja, que ocorreram de fato). Os poemas selecionados para compor esta obra são reflexo de lembranças de viagens passadas, desejos de viagens vindouras e elucubrações que são, antes de tudo, viagens dentro da própria alma e da própria mente. Os poemas mais empíricos não deixam de trazer temas mais amplos, mesmo que tratando de eventos vividos por mim: tudo é construído tendo como base sensações e impressões.


Com vocês, três poemas de Voyager, por Marina Naves.

Dublin, 2014

“Dublin made me and no little town
with the country closing in on its streets”
(Donagh MacDonagh)

Por muitos anos sonhei conhecer-te,
ver em tuas vias fadas voarem…
sentir teu ar encantado e ancestral
invadir-me os poros, narinas virgens.

Mas tudo foi diferente. Contigo
aprendi algo do futuro também.
Nas tuas estradas de alvos casebres
caminhavam juntos cabras e carros.

Leprechauns escondidos em Dame Street
ouvem Brigid em igrejas cristãs;
eu também ouço, e ouço mais: Oisin

tocando sua harpa em Saint Stephen’s Green.
Há tradições nestas ruas — ocultas —
que não perecem com o andar dos anos.

Lua

Alvo corpo de Ártemis destemida,
minhas mãos buscam tua branca pedra.
Que minhas cinzas sejam em ti, vida —
expostas como as mentiras de Fedra.

Com um vestido pesado e robusto
(que me seja leve como o universo
— tão macio como o materno busto)
Quero visitar-te em sonhos imerso.

Em uma feliz cadeira de praia
quero descansar sobre tua carne,
observando a doce dança de Gaia.

Que teu irmão, Febo Apolo, não me encare;
que sua flecha-luz em mim não caia,
pois só no escuro brilha tua face.

Via-Láctea

“Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”
(Olavo Bilac)

O som das letrinhas dessa palavra
me lembra o amor: é leite na tigela
com cereal — e o cereal tem a cor
dos cabelinhos amarelos dela.

Ou pelo menos era isso que eu achava
quando tinha uns sete anos. Hoje apenas
me intrigam as estrelas; tão pesadas
mas tão macias — leves como penas.

Pensando bem, igualmente intrigantes
são as flores. Tão cedo nascem e
logo morrem. O que é melhor então

prometer a galáxia fria e eterna
ou as rubras rosas quentes e perenes?
Eu não sei. Acho que viajo muito.
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Leia ainda: posts de Marina Naves no Duras Letras!

Os poemas do “Rubaiyat”, de Omar Caiam

No post de hoje, trazemos para vocês três facetas temáticas que aparecem com frequência nas quadras do livro Rubaiyat, de Omar Caiam – ou Khayyam –, um matemático e astrônomo persa interessado em colecionar e criar pequenos poemas conhecidos como rubai. Os temas são: o xadrez, o vinho e o amor. Além disso, vamos falar um pouco sobre esse tal rubai, poesia antiga feita na Pérsia, diretamente ligado ao nome de Caiam, que foi responsável por por compilar mais de duzentas dessas pequenas pílulas poéticas que compõem os inúmeros Rubaiyat.

Para começo de conversa, rubai pode ser traduzido como “quadra”, tendo seu plural em rubaiyat – quadras –, palavra que dá nome ao livro de Omar Caiam em sua versão traduzida para o inglês, no século XIX, por Edward FitzGerald, que tornou célebre a obra do poeta persa no ocidente. Para aqueles quem não estão familiarizados com esse tipo de texto, uma boa forma de entender o rubai é aproximá-lo de alguns jogos infantis ou cantigas populares que temos na língua portuguesa; assim, apesar de não conhecer quaisquer dos rubaiyat, com toda certeza vocês se lembram daquelas velhas quadrinhas, tantas vezes repetidas na infância:

Batatinha quando nasce
esparrama pelo chão.
Mamãezinha quando dorme
põe a mão no coração.
Borboletinha tá na cozinha
Fazendo chocolates para a madrinha.
Poti-poti, perna de pau,
Olho de vidro e nariz de pica-pau.

Contudo, diferente de “Batatinha quando nasce”, em que as rimas aparecem no segundo e no quarto verso e que a métrica tem sete sílabas poéticas, a forma do rubai implica rimas entre o primeiro, o segundo e o quarto verso ou então entre todos eles. Além disso, os versos costumam ter a mesma medida em sílabas poéticas, variando de acordo com a tradução, uma vez que a contagem das sílabas se modifica bastante na passagem do persa para outras línguas. Para exemplificar como seriam dois rubaiyat, em português, temos:

I
Luz: é chama da vela que morreu,  à medida em que a esperança nasceu. Mas, se a chama da vela nascer e  a esperança morrer: luz, não! É breu.
II
Por que lamentas de maneira ingrata
o pecado que da vida fez amada?
Calma! porque na morte só se acha
ou a grande misericórdia ou Nada.

Essas duas adaptações – feitas por Gabriel Reis Martins, a partir das traduções produzidas por Manuel Bandeira e por Eugênio Amado – procuram preservar tanto o esquema das rimas e a métrica dos versos, quanto a ideia geral dos poemas escritos ou guardados por Caiam.

Agora, quando tratamos das traduções de Manuel Bandeira ou das feitas por Eugênio Amado, observamos quase uma completa liberdade de composição em relação aos paradigmas técnicos. Chegamos ao ponto de poder dizer que a semelhança que guardam com os poemas de Caiam está no uso da quadra para a estrofação e nos temas evocados pelos seus versos. Isso talvez esteja ligado ao fato de que ambos os tradutores se inspiraram não no texto original em persa, mas na versão francesa do Rubaiyat, feita por Franz Toussaint, livro que por si só já é bastante singular, pois traz a obra de Omar Caiam escrita em forma de prosa e sem rimas.

Apesar dessa distância, o tratamento é sublime e a poesia tocante, seja na mão de Bandeira, seja na de Amado. Por isso mesmo, sem mais delongas, fiquemos com alguns de seus versos sobre o xadrez, sobre o vinho e sobre o amor.

Xadrez

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Somos marionetes movidas pelo Céu
(E não me vá pensar que se trate de metáforas).
Atuamos no palco da vida e, logo após,
Somos postos na caixa do atroz esquecimento.
Eis a única verdade:
Somos os peões no xadrez
Que Deus joga. Ele desloca-nos
Para diante, para trás,

Detém-nos, de novo, impele-nos,
Lança-nos um contra outro...
Depois um a um nos mete
Todos na caixa do Nada.

Vinho

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Se desperdiço minha juventude
Sorvendo o vinho, essa bebida amarga,
Não me repreendas, porque minha vida
É tão amarga quanto essa bebida.
Bebe vinho! Receberás
Com ele a vida eterna. Vinho!
Único filtro que te pode
Restituir a mocidade.

Mocidade! A estação divina 
Das rosas e dos vinhos e dos
Amigos sinceros! Desfruta
Esse instante fugaz que é a vida.

Amor

Eugênio Amado

Manuel Bandeira

Não é porque eu seja pobre que não bebo vinho;
Não é por temer vexame que não me embriago;
Bebi para iluminar meu coração – outrora;
Hoje que tenho você, não preciso beber.
Um pedaço de pão, um pouco de água,
Fresca, à sombra de uma árvore e os teus olhos!
Nenhum sultão é mais feliz do que eu.
Nem mendigo nenhum mais melancólico 

Uma última curiosidade sobre o Rubaiyat de Caiam é que ele inspirou muitos dos grandes poetas modernos do ocidente, sendo possível encontrar poemas com a estrutura dos rubai na obra de Fernando Pessoa e também na Robert Frost, poeta que já ganhou um post aqui no Duras Letras. Vamos conferi-lo?

Omar Khayyam

Omar Caiam foi um matemático e astrônomo persa que durante sua vida, vivida aproximadamente entre os anos 1030-1123 dC, demonstrou grande interesse pela poesia e mais especificamente por “rubai”, uma quadra de versos, com estrutura fixa, que circulava na região da Pérsia naquele período. Estima-se que o autor tenha reunido mais duzentas dessas pequenas pílulas poéticas, às quais somou outras de sua própria autoria, tornando o trabalho genético de sua produção uma tarefa infindável e de difícil resolução, como o caso de Gregório de Matos, no Brasil.

Resenha – “A mulher ruiva”, de Orhan Pamuk

Um Édipo em Istambul

Em janeiro deste ano, voltei a assinar a TAG livros, depois de mais de três anos desde que havia encerrado minha assinatura, especialmente por não conseguir conciliar o ritmo das leituras que o clube propunha com as leituras da faculdade de Letras e com as que, me chamando mais atenção, vez por outra eu decidia passar na frente. Mas desde o fim de 2020, apesar de o meu tempo livre não ser muito maior do que era antes, consegui retomar uma frequência mais alta de leituras, de em média um livro por semana, e decidi renovar a assinatura no plano Curadoria. Para minha grata surpresa, o primeiro livro que recebi foi, sem rodeios, um dos melhores e mais impressionantes dentre muitos dos que li nos últimos anos – e olha que não foi pouca coisa. Por isso mesmo, decidi trazer para vocês uma breve apresentação desse livro extraordinário que é A mulher ruiva (2016), de Orhan Pamuk.

Indicado por Milton Hatoum, o livro de Pamuk acompanha a história de Cem Çelik, um jovem turco que vive com os pais em Istambul, em meados dos anos 1980. Quando o rapaz está com dezesseis anos, seu pai, envolvido na militância política, deixa a família sem nenhum aviso, e Cem começa a trabalhar para ajudar nas despesas da casa.

Assim, quando surge a oportunidade, Cem se torna aprendiz de cavador de poços junto a mestre Mahmut, na pequena cidade de Öngören, nos arredores de Istambul. Durante os meses em que estão juntos cavando o poço, a relação entre Cem e Mahmut vai se tornando cada vez mais próxima de uma relação entre pai e filho, e Mahmut passa a ocupar uma posição paterna de afeto, orientação e proteção para Cem. Contudo, à medida que o tempo passa e a água parece cada vez mais distante, o relacionamento entre os dois começa a azedar, e, junto com a admiração, vêm o medo e o rancor de Cem por essa figura paterna.
Nesse meio tempo, o rapaz conhece a mulher ruiva, uma atriz de teatro com o dobro da sua idade, por quem ele fatalmente se apaixona. Mas mestre Mahmut o proíbe de visitar o Teatro de Moralidades onde ela atua, de modo que Cem passa a procurar qualquer desculpa para conseguir vê-la, mesmo que a distância.

Édipo fura os olhos, após descobrir que matou o pai e se casou com a própria mãe

Cem passa a sentir cada vez mais medo e raiva de Mahmut, e a rivalidade entre eles, que à primeira vista parece pouco justificável, passa a se concentrar cada vez mais intensamente em fantasias edípicas. Na verdade, o mito de Édipo é de importância fundamental para a história: não apenas ele é referido e narrado mais de uma vez ao longo do livro, como também os laços entre os personagens de A mulher ruiva tornam-se paralelos – mas de maneira nada óbvia – aos dos personagens da peça de Sófocles, na complexa triangulação entre pai, mãe e filho.
Devido a um incidente durante o trabalho no poço, após o qual ele volta para Istambul e para a casa da mãe, Cem fica obcecado com a história de Édipo Rei, que parece estar muito ligada à sua própria história.

Algum tempo depois, Cem vai para a faculdade e conhece Ayse, com quem se casa, e se tornam donos de uma empreiteira. No entanto, o casal tem dificuldades para conceber, e, mesmo procurando ajuda de diversos médicos, o tempo passa e Ayse não engravida, de modo que passam a tratar a empresa que fundaram juntos como o filho que nunca tiveram.

Rostam reconhece Sohrab

Numa viagem de negócios, Cem vê uma pintura que o impressiona muito: a cena em que o guerreiro Rostam reconhece ser seu filho, Sohrab, quem acabou de matar numa batalha. Cem, então, fica novametne obcecado e passa a procurar pelas histórias do Shahnameh, a Épica dos Reis, do escritor persa Ferdusi, do qual faz parte o ciclo de Rostam e Sohrab.
Ele e Ayse decidem batizar sua empresa com o nome do filho morto pelo pai, e no seu tempo livre estão sempre discutindo as histórias de Édipo e de Sohrab, classificando as pessoas entre as de um tipo ou de outro: os filhos de pais autoritários seriam como Sohrab, enquanto os filhos que se rebelam contra seus pais, como Édipo. E de que tipo seria o próprio Cem?

Para não contar demais, vou parar por aqui. O fato é que, lendo A mulher ruiva, os fatos se sobrepõem e se multiplicam em camada após camada, surpreendendo sempre com as reviravoltas da história e seus paralelos com Édipo, Rostam e Sohrab. É bom lembrar que, para ler o livro de Pamuk, não é preciso ter lido as outras histórias, pois elas nos são apresentadas à medida que aparecem na narrativa (apesar de que, é claro, quem conhece já vai estar mais familiarizado com os acontecimentos em questão). Além destas referências principais, Pamuk também evoca, em dados momentos, Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e Hamlet, magnum shakespeariano, que também se concentram nos embates edipianos entre pais e filhos.


Sem dúvidas quanto a isso, A mulher ruiva é um cinco estrelas que vale cada segundo da leitura. Como escrevi antes, foi um dos melhores livros que li nos últimos anos, então indico sem medo de ser feliz. (Mas quem sou eu para recomendar, se o próprio Milton Hatoum já falou que é bom, né? Obrigada, Hatoum!)

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Clique aqui se quiser ler o spoiler! (Por sua conta e risco, hein?) 🙂 Cem tem um caso de uma noite com a mulher ruiva, mas após o acidente no poço, em que acredita ter matado mestre Mahmut sem querer (o que na realidade não foi o que aconteceu), ele foge de Öngören e passa vários anos sem tornar a vê-la. Um dia, ele recebe uma carta de um filho seu, que é o filho que, sem saber, concebeu com a mulher ruiva, aos dezesseis anos. Sem saber como agir, ele volta até a cidade, e lá ele e o filho, num breve momento de reconhecimento e acusações, lutam. Cem estava armado, mas o filho toma a arma deste e – acidentalmente? – acaba o matando. Além disso, descobrimos que a mulher ruiva, antes de ser amante de Cem, fora amante do pai dele, algo em torno dez anos antes de conhecê-lo. Assim, ela ocupa uma posição materna em relação a ele, além de ser muito próxima de seu próprio filho com Cem. O protagonista, portanto, é tanto Édipo (pensando ter matado o “pai”, Mahmut, e dormido com a “mãe”, a mulher ruiva), como Laio, morto por seu próprio filho. Ufa! Haja sangue, não é?!

Cantando os clássicos da literatura brasileira

Que tal experimentar o resultado sonoro do cruzamento entre literatura e música? No post de hoje, preparamos uma pequena lista com oito canções, compostas a partir de alguns clássicos da literatura brasileira, que reafirmam a beleza das produções que tiveram seu solo fecundado pelo grão literário.

Nós já contamos aqui no Duras sobre a relação histórica, e até crítica, que a literatura brasileira tem com a música popular nacional, especificamente com a MPB. No post O que a MPB tem a ver com Literatura? passamos por algumas perspectivas teóricas que elucidam tanto a formação de uma área de pesquisa no campo da canção, quanto pelas encruzilhadas criadas nessa zona de estudo. Se você ainda não conferiu este post, ele está disponível aqui:

Mas, se você já conferiu, vamos ao que interessa!

Literatura na canção ou canção na literatura? Dividindo as músicas selecionadas entre da poesia e da prosa, tivemos por objetivo mostrar como tanto um gênero quanto o outro são utilizados para a produção de obras maravilhosas de nosso repertório musical nacional.

Da poesia

Comecemos pela poesia, pois sua passagem para a canção parece um pouco mais simples do que quando tratamos do texto literário em prosa. A seguir, você confere quatro musicalizações de poemas escritos por grandes nomes da literatura brasileira e que, a partir de melodias primorosas, têm seu sentido expandido.

Anoitecer, de Drummond e José Miguel Wisnik

Entre as musicalizações feitas sobre poemas brasileiros, a de “Anoitecer”, do livro Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, está entre as minhas favoritas. Wisnik e seu piano abrem a canção mimetizando a delicadeza das badaladas de um sino interiorano, que anuncia a chegada do fim do expediente, do tempo de descanso, o qual, nem na música, nem no poema, está desprovido de melancolia e nostalgia, de uma relação conturbada com o futuro e com o passado.

Funeral de um lavrador, de João Cabral e Chico Buarque

Composta para uma peça que se inspirou em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, “Funeral de um lavrador” é uma musicalização que trás um trecho integral do texto que o inspira. A composição de Chico é de 1966 e está entre seus primeiros trabalhos como artista da canção. Essa juventude do autor, contudo, não corrobora para que sua melodia deixe a desejar em relação à letra; na verdade, a força que o músico empresta para o texto de João Cabral abre novas camadas de sentido, colocando em cena um violão arrastado e um coro que acompanha a voz do cantador como a sombra da miséria, repetindo suas lamúrias.

Motivo, de Cecília Meirelles e Raimundo Fagner

Agora, se as duas canções anteriores nos colocam diante de uma tristeza aguda, com condições sociais muito bem marcadas (o mundo do pós-guerra, no caso de Drummond, e o sertão agressivo, de João Cabral), essa que Fagner interpreta a partir do poema “Motivo”, do livro Viagem, de Cecília Meireles, ombreia melancolia e alegria. A visão deixa as nuvens baixas do trágico mundo moderno para alcançar também uma dimensão sublime, de aceitação e acordo com o fim iminente, recebido sem alegria ou tristeza, mas com poesia e canto.

Dor elegante, de Paulo Leminski e Itamar Assumpção

Algo parecido acontece com o poema de Paulo Leminski, musicado por Itamar Assumpção, “Dor elegante”. A tristeza, ou, mais especificamente, a dor, é colocada como ponto alto da elegância, como troféu/riqueza e como único bem que o sujeito tem de fato. Essa dimensão da dor, tocada por instrumentos pesados e inscrita em Pretobrás, ganha um novo significado, na medida em que passa também a ser uma dor social e estética, o que acontece tanto com a posição de mulher em um país machista – abarcada pela voz de Zélia Duncan – quanto pela de negro e marginalizado, pela qual passou Itamar em relação à sociedade e à tradição musical brasileira.

Da prosa

Já quando tratamos da passagem da prosa para a canção, essa costuma contar com muito mais liberdade interpretativa do que quando a fonte é a poesia, uma vez que a extensão do romance precisa, muitas vezes, ser reduzida a algumas poucas linhas. O compositor procura encontrar os pontos chave do texto, os instrumentos capazes de comunicar sensações causadas pela obra e um acordo entre essas duas instâncias, textual e sonora.

Modinha para Gabriela, de Jorge Amado e Dorival Caymmi

Inspirada pelo brilhante romance de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela, a “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi, capta pelo menos duas das facetas dessa personagem apaixonante: um lado confessional e recluso, carregado de qualquer tom de timidez, próprio ao silêncio do retirante, daquele que precisa dar explicações; e outro despojado, da Gabriela das festas, autêntica e brincalhona, que deixa transparecer toda sua sensualidade e alegria.

A hora da estrela, de Clarice Lispector e Pato Fu

Talvez, alguém que não leu A hora da estrela, de Clarice Lispector, se engane ao escutar essa canção. Na passagem do texto para a letra, os signos trágicos que recheiam a prosa da célebre escritora e antecipam o fim de Macabeia se destilaram em um tom melancólica e sutil, que traz consigo toda a esperança que a própria personagem parece ter para sua jornada. Nesse sentido, é uma composição brilhante, uma vez que assume a perspectiva da protagonista, que se mantém de fato alienada em relação a seu destino e que está pronta para mudar sua vida para sempre, sofrendo um acidente, no mínimo, ridículo.

Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, Milton Nascimento e Caetano Veloso

Essa com toda certeza é uma das mais belas produções já feitas na seara da música brasileira. A forma como Caetano Veloso conseguiu captar as palavras chave de Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, e colocá-las em sua canção homônima, feita em parceria com Milton Nascimento, chega a assustar, de tão impressionante. A língua se mistura com os instrumentos de percussão e corda e com o balanço pelo qual essa canção nos carrega, misturando versos fortes e precisos, nas margens entre a palavra e seu som, entre prosa da palavra e Rosa da palavra.

Capitu, de Machado de Assis e Luiz Tatit

Escrita por Luiz Tatit, musicólogo e teórico da canção brasileira, a letra de “Capitu” lança um novo olhar sobre a divina personagem machadiana, que veleja, desde seu velho mundo do século dezenove, até o litoral contemporâneo da internet. O recurso dos ecos e o tom direcionado e pequeno da voz que canta muito nos lembram das sombras de Bento Santiago, narrador do Dom Casmurro, de Machado, que insiste na infidelidade da esposa: mulher hábil, poderosa, ambígua, atraente, virtualmente – pois Bentinho chega ao delírio – amada e amante.

É claro que poderíamos acrescentar muitas outras canções a esta lista, que apenas tateia o vasto universo da literatura dentro da música popular brasileira. Por esse motivo, criamos uma pequena playlist, que traz algumas outra faixas, para embalar suas memórias literárias das horas vagas.

Para fechar o post, gostaríamos de fazer um breve comentário sobre a relação tão produtiva entre as duas artes, música e literatura. Começamos por lembrar que não existe musicalização que estrague um poema ou uma narrativa (um absurdo que frequentemente aparece no discurso, principalmente quando alguém, por acaso, não gosta de uma versão cantada do texto literário). Assim como na tradução, toda passagem de uma coisa para outra depende da interpretação do artista, interpretação da qual podemos discordar, sem que isso alcance o texto fonte propriamente dito.

Pensando nisso, para você, o que os textos que serviram de inspiração ganharam com suas versões cantadas, citadas acima? Se você considera que houve uma perda, qual foi ela? Conta para gente nos comentários!

“The pasture” de Robert Frost

THE PASTURE
(O pasto)

I’m going out to clean the pasture spring;
I’ll only stop to rake the leaves away
(And wait to watch the water clear, I may):
I sha’n’t be gone long.—You come too.

I’m going out to fetch the little calf
That’s standing by the mother. It’s so young,
It totters when she licks it with her tongue.
I sha’n’t be gone long.—You come too.

Eu vou sair: limpar o novo pasto;
é só varrer, nenhuma folha fica
(e posso ver a água clara e rica):
não vou demorar. — Vem também.

Eu vou sair: pegar o bezerrinho
que fica junto à mãe. Recém-nascido,
tropeça quando seu corpo é lambido.
Não vou demorar. — Vem também.

Tradução: Gabriel Reis Martins


Análise

Publicado pela primeira vez por Robert Frost (1874-1963) no livro North of Boston (1914), “The pasture” é um poema composto por apenas oito versos, que apresentam imagens precisas, sintetizando e demonstrando de maneira clara alguns aspectos temáticos e estilístico utilizados com frequência pelo poeta americano ao longo de sua vasta obra.

Com métrica e estrutura muito bem determinadas e diegeticamente pastoril e sazonal, “The pasture” não propõe uma mistura tão intensa entre as formas literárias lírica, épica e dramática – diferente do que acontece, por exemplo, em “The death of the hired man” e na maior parte dos outros poemas de North of Boston. Além disso, ele é o menor dentre os textos que compõem essa coletânea, atravessada por poemas longos, que chegam a passar as cinco páginas de extensão.

Em síntese, trata-se de um texto pequeno, direto e preciso; de fato, uma entrada muito bem armada para o conjunto poético ao qual pertence. E, já que não acredito na possibilidade de estar à altura do original (abaixo e à esquerda), espero que essa humilde tradução que elaborei seja também uma boa vitrine, para que você corra atrás de outras cabeças que correm soltas pelo pasto de Robert Frost.

Sobre o som

Dividido em duas quadras, o poema foi feito a partir de uma estrutura fixa que se repete, o que sugere um espelhamento dos dois únicos blocos do poema. Essa estrutura é composta por um verso branco, por dois versos rimados e por um refrão (o verso final de cada quadra), que coincide em forma e em sentido em cada uma delas. Enquanto esse se trata de um octossílabo, os outros três primeiros versos de cada quadra foram compostos como decassílabos, montando um esquema simples 10-10-10-8, que acontece duas vezes.

Se por um lado essa estrutura rígida auxilia a tradução, delimitando um espaço adequado à recriação do texto em português; por outro, cria algumas dificuldades, uma vez que o inglês, diferente de nossa língua, apresenta uma maior maleabilidade das sílabas poéticas, com palavras que se aglutinam e preservam uma gama lexical variada, perdida na transição de uma língua à outra.

Outro ponto de difícil tradução são as paronomásias (principalmente, rimas e aliterações) escolhidas por Frost. Observamos, a título de exemplo, uma repetição constante de fonemas e de vogais, como nas plosivas do primeiro verso (t e p); as alveolares do segundo (l e r); do som da vogal w, no terceiro; e da nasal (on), presente em sha’n’t, gone, long e come, do verso refrão. Quanto às rimas, ambas relacionam palavras de classe gramatical diferente e de difícil aproximação em português: a primeira, away (para longe, advérbio) e may (posso, verbo); e a segunda, young (jovem, predicativo) e tongue (língua, adjunto adverbial).

Um detalhe que se soma a esses, e que torna ainda mais interessante a forma desse poema, é o movimento de “versar”, de ir e voltar, presente em quebras de sentido (como na passagem do quinto para o sexto verso), mas também na antecipação dos fonemas principais, feita pela palavra final de cada frase, em relação ao verso seguinte.

Sobre o sentido

Para fazer uma análise mais atenta de cada verso, vou propor uma tradução literal de seu sentido, tentando com isso esclarecer ao mesmo tempo o poema em inglês e a proposta de tradução mostrada antes. Primeiro, vou analisar todos os versos decassílabos do poema, para só então trabalhar com o refrão. “O pasto” (a essa altura já podemos tratá-lo com nome traduzido), como vimos, começa com a seguinte sentença:

I’m going out to clean the pasture spring

Eu estou saindo para limpar o pasto primaveril

Nessa abertura, temos a exposição de uma tarefa a ser cumprida, tendo chegado uma nova estação, a primavera: limpar o pasto. Porém, sob o significado restrito desse trabalho, parece se esconder a ideia do renascimento, da atmosfera cíclica da natureza, expressa sobretudo na palavra spring (primavera/primaveril), uma das chaves de leitura para todo o conjunto de textos de North of Boston. Essa estação, subsequente ao inverno – que é tempo de reclusão, melancolia e descanso – pode ser lida como signo de nova vida, da chegada de outro tempo e de novos trabalhos.

Mas, se você voltar à tradução que propus (a não literal), vai perceber que suprimi essa palavra quase essencial de minha versão do poema. Justifico essa ausência lembrando que, em um país como o Brasil, cujas estações não possuem diferenças tão claras, a palavra primavera ou primaveril, além de tomar um número antipático de sílabas, não causaria o mesmo impacto que possui no texto original, demandando uma nota de rodapé ou algo similar a isso que a justificasse. Tomei a liberdade de usar o adjetivo novo, que não traz a mesma precisão da palavra primavera, mas que deixa o texto mais compatível com um cenário brasileiro.

I’ll only stop to rake the leaves away

Só vou parar para varrer as folhas

Aqui percebo uma guinada mais objetiva, passando para uma explicação precisa do que será feito pelo eu do poema, seu trabalho, agora nomeado. Limpar o pasto significa, principalmente, varrer suas folhas, gesto que é contraposto no verso seguinte, no qual se complementa e expande o sentido do ofício na fazenda a uma dimensão também de descanso e contemplação:

(And wait to watch the water clear, I may):

(E posso esperar para ver a água clara)

Trabalha-se, mas pode-se também desfrutar da beleza da natureza, e o próprio uso dos parênteses reforça esse outro lado dos ofícios campestres, esse bônus para o ônus de varrer as folhas. O mesmo se dá nos três primeiros versos que abrem a segunda quadra:

I’m going out to fetch the little calf
That’s standing by the mother. It’s so young,
It totters when she licks it with her tongue.

Eu estou saindo para pegar o pequeno bezerro
Que está parado perto da mãe. É tão jovem,
Cambaleia quando ela o lambe com a língua

O trabalho de sair para ater o garrote é cortado pela admiração da cena matrimonial animal, interrupção que hoje pode até mesmo ser encarada a partir de uma lógica crítica aos trabalhos do campo e ao carnismo. Anacronismos à parte, essa mudança da instância do trabalho para a do lazer/prazer também acontece de alguma maneira em nível formal, sendo o padrão de rimas um de seus índices, levando de pasture spring e little calf até away/may e young/tongue.

Agora, o último verso, repetido no fim de cada uma das quadras, nos traz/faz um apelo, para que acompanhemos o eu do poema em seu jogo entre trabalho e prazer, entre produzir e desfrutar no pasto. A repetição funciona como sugestão do espelhamento dos dois blocos que compõem o texto e, apesar de parecer um convite despretensioso, é também uma confirmação da companhia, uma vez que a frase não é feita em forma de pergunta, mas de afirmação:

I sha’n’t be gone long.—You come too.

Não ficarei fora por muito tempo. – Você vem também.

A possível agressividade do pedido de companhia se dissolve ao longo dos versos anteriores a ela. Parece não haver dúvidas de que se trata não apenas de um bom companheiro (esse que convida), mas também de que será uma visita agradável ao universo do eu do poema e, metapoeticamente, do autor. A isso, somo o tom coloquial que Frost empresta a seus versos, criando joias a partir das pedras e dos cactos, dos cacos da língua, truncado nossas tentativas de captar ao mesmo tempo o som e o sentido.

Seria possível traduzir com precisão todos os elementos e também a narrativa? Ou estaria Frost certo, ao colocar que a poesia é o que se perde na tradução? Bom, alguma coisa realmente se perdeu em minha tradução (seja a literal, seja a literária), uma vez que a estrutura construída pelo poeta corrobora o contexto apresentado no poema, em uma relação simbiótica difícil de contornar e reproduzir. Porém, onde velhas relações desaparecem, as novas tomam seu lugar, e onde se lia spring, se tem novo, o que, se não servir como correspondente ideal, pelo menos traz um gostinho do molho da baiana, para o prato do Tio Sam.


Como já mencionamos em outro post, Robert Frost (1874-1963) não é um autor com grande circulação editorial no Brasil, tendo sido publicado em apenas uma edição, de 1969: Poemas escolhidos de Robert Frost; além de ter o livro A Boy’s Will (1913), disponibilizado integralmente na internet, sob o título de Ímpeto de menino (2012), traduzido por Ana Cristina Gambarotto, em sua dissertação.

Qual ler primeiro: Ilíada ou Odisseia?

Essa provavelmente é uma das perguntas que todo leitor dos clássicos já se fez ou fez para algum colega ou conhecido que já encarou a Ilíada e a Odisseia, ambas obras primas assinadas pelo grande poeta grego, Homero. O objetivo desse post é responder à questão de forma rápida e precisa, além de explicar, muito brevemente, do que se trata cada uma dessas narrativas épicas.

Por onde começar?

Bom, começo essa conversa dizendo que não existe uma “ordem necessária” para você iniciar a sua leitura: pode pegar tanto a Ilíada, quanto a Odisseia para ler; são clássicos que, mesmo comunicantes entre si, não se prendem um ao outro. Isso se dá de maneira que as narrativas funcionam de forma independente e, ainda que apresentem eventos diretamente relacionados, em vários momentos do texto são trazidas as informações necessárias à compreensão do leitor.

Pelo fator cronológico

I

Contudo, se você procura ler respeitando a cronologia da mitologia à qual pertencem essas duas histórias clássicas, comece pela Ilíada, história que aconteceu antes dos eventos cantados na Odisseia.

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Nessa narrativa, você vai acompanhar, ao longo de vinte e quatro cantos (ou capítulos, se preferir), os dramas vividos pelos gregos – aqueus, ageus ou argivos – e pelos teucros, ou troianos, que se enfrentam durante mais ou menos uma semana, no décimo ano da guerra que a Grécia levou até Troia.

No texto, tudo começa quando Aquiles, o herói mais notável de todo o exército grego, decide deixar a batalha contra os troianos, por conta de um grave desentendimento com Agamenão, anaxandrom, rei sobre os homens, senhor dos senhores. Essa intriga dos dois heróis é um gatilho que desencadeia tanto uma reviravolta no campo de batalha, com as derrotas sucessivas dos gregos, quanto uma viravolta entre os deuses do Olimpo, que participam ativamente da guerra, tomando o partido de uns ou de outros.

Você conhecerá guerreiros apaixonantes, como Heitor e Pátroclo, Diomédes e Odisseu, os dois Ajazes, enfim… mas não se enganem: na Ilíada, você não vai encontrar nenhum cavalo de madeira, nem a queda de Troia e muito menos vai saber como essa história acaba. Para isso, você vai precisar ler a Odisseia, ou as outras narrativas que contam sobre fragmentos diversos desse longo episódio do mundo grego (um desses textos, a título de curiosidade, é a Posthomerica, que ainda não tem tradução para o português e que conta os episódios subsequentes à Ilíada).

Mas vamos ao caso específico da Odisseia!

II

A Odisseia dá seguimento à narrativa da Ilíada, mas sua história nos leva para outros lugares, bem distantes de Troia: vamos dos cenários paradisíacos, conhecidos e enfrentados durante os dez anos de viagem pelos quais passou Odisseu; até a ilha de Ítaca, terra natal do herói que tem papel fundamental na guerra contra os troianos, sendo muito inteligente e engenhoso, inclusive abençoado pela deusa da estratégia, Atena. Na ilha de cenário árido e pedregoso, conheceremos Telêmaco, filho e herdeiro do guerreiro grego, que, junto de Penélope, sua mãe, espera ansioso pelo retorno do pai, Odisseu, que estava na guerra contra os troianos, mas demora mais do que devia em voltar.

A essa altura, inúmeros casos que não aparecem nem na Ilíada e nem na Odisseia já se desenrolaram: Aquiles já foi atingido por Páris no calcanhar; Troia já foi destruída; Eneas já partiu para novas terras; Agamenão já foi morto pelo amante de sua esposa, Clitemnestra, que foi morta por seu filho, Orestes, etc. etc. etc. Com isso, temos o drama da Odisseia centrado nos problemas enfrentados pela família de Odisseu e por ele próprio, nas muitas aventuras que o herói relata para Alcinoo – rei dos feáceos – sobre os deuses e as deusas, o Ciclope, os monstros marítimos e seus tantos fracassos na tentativa de voltar para casa.

É interessante observar como a Ilíada ocorre no tempo de apenas alguns dias, enquanto a Odisseia se estende por anos, o que marca também o estilo adotado nas duas obras, sendo a primeira uma narrativa linear e a segunda de estrutura cíclica. Além disso, se lida depois da Ilíada, as referências da Odisseia se tornam mais claras e prazerosas, pois, finalmente, descobrimos que fim levaram muitos dos heróis gregos que marcharam contra Troia, se encontraram ou não um fim trágico, na guerra ou fora dela.

A questão da leitura

Epero que, com isso, suas dúvidas estejam respondidas e que você já queira velejar por entre Cila, sereias e Calipso; ou guerrear ao lado de Odisseu, Diomédes, Aquiles e Heitor! Nós não prometemos que a viagem será tranquila, porém, com uma boa nau e conhecendo os ventos, qualquer trajeto pode ser cumprido, mesmo que, como o do nosso nobre herói Odisseu, isso demore mais de dez anos.

Sendo bem sincero e fugindo um pouco da pergunta principal, Ilíada e Odisseia são textos complexos, com uma tessitura narrativa densa, cheia de detalhes e pequenas conexões internas, escritas em verso, com vários traços sutis de uma cultura que chegou para nós às migalhas. Isso, muitas vezes, pode assustar os navegantes de primeira viagem. Mas, se você está decidido a encarar a tarefa árdua da leitura, aqui no Duras Letras nós temos um pequeno manual, que pode ajudar com os preparativos da sua embarcação.

Ele trata de uma edição específica dos cantos gregos de Homero, feita por Carlos Alberto Nunes, em uma tradução brilhante, que procura preservar o verso tradicional da língua de Homero. Essa edição dos dois livros foi publicada em box e lançada pela Nova Fronteira. Acrescento que, se for para começar de algum lugar, que seja por uma boa edição e uma boa tradução, pois essas histórias não merecem menos do que isso.

A poesia nonsense além de Alice: desvendando os Limericks de Edward Lear

Quando se trata de poesia nonsense, o primeiro nome que vem à mente é, sem dúvida, Lewis Carroll, com os muitos poemas que recheiam tanto Alice no país das maravilhas como Alice através do espelho. Mas há outro grande e importante autor da poesia nonsense que, sobretudo fora da Inglaterra, por vezes é deixado de lado – ou você já conhece os limericks de Edward Lear?

Conterrâneo e contemporâneo a Carroll, Lear publicou o célebre A book of nonsense (algo como “Um livro de abobrinhas”) em 1846, cujo conteúdo era uma divertida poesia convivial que ganhou grande popularidade entre os ingleses da época, os quais brincavam de fazer versos de improviso e competir na maestria dessa habilidade.
Como os limericks seguem uma forma muito regular, tanto no que diz respeito ao ritmo e às rimas, como no conteúdo que cada verso deveria apresentar (como veremos daqui a pouco), o desafio era não somente criar versos engraçados e mordazes, mas também colocá-los dentro de uma “fôrma” como essa usada nos poemas de Lear.

Vejamos um exemplo de limerick:

Traduzidos muito ao pé da letra, os versos são assim:

"Havia um velho homem de Whitehaven,
Que dançava uma quadrilha com um corvo;
Mas eles disseram 'É absurdo
Encorajar esse pássaro!'
E esmagaram o velho homem de Whitehaven."

A tradução, nesse caso, não permite uma equivalência com o ritmo e com as rimas do original (mea culpa), mas possibilita, pelo menos, apresentar a sequência dos conteúdos que se pode esperar encontrar em um limerick:

  1. O primeiro verso introduz o protagonista: “Havia um(a) velho(a)/jovem fulano de tal lugar”;
  2. O segundo apresenta a situação inicial: “Que fazia (alguma coisa incomum, normalmente)”;
  3. O terceiro e quarto introduzem a ação;
  4. O verso final conclui e/ou comenta o que se sucedeu no fim da breve narrativa.

Como se pode notar, o limerick substitui o discurso coerente e articulado em privilégio da concisão, inclusive por ser uma grande aliada na obtenção do humor (como já havia dito Shakespeare, ‘Brevity is the soul of wit’, ou, “A brevidade é a alma do chiste”). Também é muito em função desse caráter inventivo e bem-humorado que o limerick se apoia em formas muito fixas: a novidade da informação, em rimas muitas vezes inusitadas ou disparatadas, contribui para a “não-sensidade” da historieta, e o desafio de rimas e manter a métrica enquanto se inventa uma narrativa coloca em posição desfavorável a linguagem lógica e coesa da vida cotidiana.

Tomemos mais um limerick como exemplo; neste, tentei fazer uma tradução (na verdade, transcriação) que preservasse mais da sonoridade original. Vejamos:

“Havia uma velha da França,
que ensinava a uns patinhos a dança;
Se ela diz ‘Tique-taque’
– eles fazem ‘Quack!’
Afligindo a velha da França.”

A partir desse poema, podemos exemplificar o esquema de métrica e rimas, que tende a obedecer o seguinte padrão: o primeiro, o segundo e o quinto versos, com três pés (ou três “batidas”); o terceiro e o quarto, mais curtos, com dois pés. Também as rimas aparecem assim: o primeiro, o segundo e o último rimando entre si (França/dança/França), enquanto o terceiro e o quarto possuem outro tipo de rima (Tique-taque/Quack), ou seja, seguindo a ordem AABBA.
Visualmente, podemos esquematizar o formato de um limerick desta forma:

— — — (A)
— — — (A)
♥ ♥ (B)
♥ ♥ (B)
— — — (A)

Quanto aos temas e situações apresentados nos poemas desse tipo, há uma grande recorrência de assuntos ligados à comida e aos animais: as inversões, aqui, são de mão única, uma vez que os humanos, nos limericks, se assemelham a animais (vale prestar atenção também às ilustrações de Lear, que era desenhista!), mas os animais não são antropomorfizados, embora façam coisas típicas de seres humanos (como dançar, nos dois exemplos anteriores).

Também verificamos nos limericks uma desproporção sempre inconsistente entre as ações iniciais e a reação popular: por pouca coisa, às vezes eles espancam, esmagam ou matam (!) uma pessoa; outras vezes, por mais grave que tenha sido seu crime, há uma resposta branda (até irrazoável) da parte ofendida, como no exemplo a seguir:

“Havia um velho de Chester,
a quem várias crianças atormentavam;
Elas jogaram grandes pedras,
que quebraram a maior parte de seus ossos,
E desagradaram o velho de Chester.”

No caso de velho de Chester, é de se espantar que a reação a tamanha violência por parte das crianças tenha sido um mero “desagrado”, enquanto que, no primeiro exemplo, a população esmagou o velho de Whitehaven simplesmente por ele dançar com um corvo (o que, pelo menos num primeiro momento, não apresenta mal algum).
Se há algo de constante, no entanto, com relação a esses comportamentos, é que a fuga da normalidade tende a ser muito mal recebida, de maneira a haver um embate entre o singular e o coletivo, em que o singular geralmente sai perdendo.

Só para não passar batido…

Não se sabe qual é a origem precisa do limerick, porém, a estimativa mais aceita é que tenha vindo da Irlanda (o que se especula pelo tipo de ritmo, comum da música folclórica irlandesa, e pelo nome, que remete ao Condado de Limerick, na região de Munster, ao sul do país).

Além disso, há a informação acerca de dois outros livros muito importantes nessa história – anônimos, History of sixteen wonderful old women (“História de dezesseis maravilhosas velhas”) e Anecdotes and adventures of fifteen gentlemen (“Anedotas e aventuras de quinze cavalheiros”) foram editados entre 1820 e 1822, e serviram de modelo aos limericks do próprio Lear. Por sorte, graças à digitalização e divulgação científica, hoje podemos acessar esses conteúdos sem grandes dificuldades, como este que trago logo abaixo:

“Veio uma senhora da França,
Que ensinava a crianças grandes a dança.
Mas eles eram tão duros,
[Que] ela os mandou para casa irritada;
A alegre senhora da França.”

Para bom entendedor, meia palavra basta – e para quem leu todos os exemplos até aqui, a referência é mais do que clara. Quack! 😉

Para quem acompanha a série The Crown, da Netflix, há na terceira temporada um episódio em que a princesa Margaret e o presidente Johnson iniciam uma disputa de limericks que ganha um caráter bastante pornográfico (como de fato passou a ocorrer, nos meios mais elevados). Assistindo à cena, dá pra perceber bem a estrutura que apontamos aqui – e rir um pouquinho da obscenidade da realeza! Rs.

E para fechar…

É bom lembrar que, por mais que seja uma tradição muito distante da nossa, também nós temos nossas brincadeiras, como os versos improvisados no formato do “Vampiro doidão” e de “Se a Perpétua cheirasse…”, repentes e jogos envolvendo sagacidade, inventividade e humor ácido. Dá até pra brincar de “limeriques” – mas não é bem essa a questão, né?

Para quem se interessou e quer saber mais sobre o tema, a recomendação é o livro que usei como referência para esse post, que é Rima e Solução (1996), de Myriam Ávila. Além disso, é possível encontrar Adeus, ponta do meu nariz (tradução de Marcos Maffei) e Conversando com varejeiras azuis e Viagem numa peneira (traduções de Dirce Waltrick do Amarante), também de Edward Lear, traduzidos para o português e a preços bem acessíveis – pelo menos, até a presente data. Do futuro, yo qué sé? O A book of nonsense, por outro lado, não é nada fácil de se achar em português (eu, pelo menos, não consegui), mas pelo menos em inglês é bem fácil de se encontrar (para quem se vira bem no inglês, uma opção com bom custo-benefício é o The complete nonsense of Edward Lear). Quem sabe algum tradutor bem animado não encontre por aqui um último estímulo que faltava? Rs. Não deixem de me avisar!

Aos queridos e queridas que chegaram até aqui, espero que tenham gostado e que esse material tenha sido fonte de um doce deleite. ♥

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