Conto – “O coelho sem pelos de Inaba”, um mito japonês tradicional

O Deus-das-Grandes-Terras tinha muitos irmãos por parte de pai e todos eles resolveram ceder o comando de suas respectivas terras para ele. Essa atitude tinha uma motivação muito forte…

Na verdade, os irmãos pretendiam casar com Yagami, a Princesa-das-Regiões-Prósperas, que morava em Inaba, um local muito distante. Quando se dirigiam em comitiva para lá, obrigaram o Deus-das-Grandes-Terras a carregar sozinho todas as provisões e bagagens.

Assim que os irmãos chegaram ao cabo de Keta, já na região de Inaba, encontraram um coelho completamente sem pelos estirado no chão. Os deuses deram o seguinte conselho a ele:

– Tome um banho de mar e, em seguida, suba até o cume da montanha mais alta. Ao chegar lá, deite-se no chão e deixe que o vento toque seu corpo.

O coelho seguiu todas as recomendações, com a esperança de recuperar seu pelo. Só que, conforme a água do mar evaporava e o corpo dele era tocado pelo vento, a pele rachava. As rachaduras provocavam uma dor tão intensa que o coelho, desesperado, se pôs a chorar.

O Deus-das-Grandes-Terras, que, exausto pelo peso que carregava, caminhava distante dos outros e não vira o que se passara, ao avistar o coelho perguntou:

– Coelhinho, por que você chora?

O coelho respondeu entre lágrimas:

– Eu estava na ilha de Oki e queria muito chegar até aqui, mas não conseguia. Então, resolvi enganar um tubarão e lhe propus uma disputa: “Vamos fazer uma aposta? Qual espécie você acha que é a mais numerosa, a minha ou a sua? Traga todos os da sua espécie e os enfileire desta ilha até o cabo de Keta. Eu saltarei por cima de vocês para contá-los e, assim, ao final, saberemos se há mais tubarões ou coelhos”. Consegui enganar o tubarão! Enquanto os contava, ia atravessando o oceano. Quando estava prestes a chegar desta lado, gritei: “Ei, seus tubarões bobões! Peguei vocês!”. Mal consegui pronunciar a frase e o último da fila me agarrou e arrancou minha pele! Estava eu chorando, lamentando o ocorrido, quando os deuses que acabaram de passar me aconselharam a tomar um banho de mar e ficar deitado aqui em cima até que o vento me secasse. Segui todas as recomendações, mas agora meu corpo está cheio de feridas! – lamentou o coelho.

Após ouvir o relato, o Deus-das-Grandes-Terras, mostrando sabedoria para ajudar os enfermos e conhecimento em plantas medicinais, aconselhou:

– Vá rapidamente a um estuário e tome um banho de água fresca. Em seguida, retire o pólen das flores de taboa, que nascem em abundância por aqui, espalhe-o no chão e role sobre ele Assim você voltará a ter pelos.

Ao seguir os conselho do Deus-das-Grandes-Terras, o corpo do coelho voltou a ser como antes e, assim, ele se popularizou como o Coelho Branco de Inaba. Ainda hoje, é conhecido como Deus-Coelho. Em agradecimento, o coelho profetizou:

– Nenhum dos irmãos do Deus-das-Grandes-Terras desposará a Princesa-das-Regiões-Prósperas. Embora hoje ele carrega a bagagem deles, num gesto humilde e subalterno, certamente é esse Deus que a desposará.

Foi então que o Deus-das-Grandes-Terras ficou conhecido como Oonamudi-no-Kami, o Digno-Deus-das-Terras.


Está é uma das narrativas que fazem parte do ciclo de histórias sobre o Ookuni Nushi no Kami – ou Deus das Grandes Terras –, uma divindade da mitologia japonesa. O texto que reproduzimos aqui está presente no livro A origem do Japão: Mitologia da Era dos Deuses, escrito por Nana Yoshida e Lica Hashimoto, publicado pela antiga Editora Cosac Naify.

Resenha – “Uma vida pequena”, de Hanya Yanagihara

Quando os demônios internos reduzem uma vida inteira a nada

“Setembro Amarelo” é um dos movimentos de saúde mental mais conhecidos no Brasil, que vem se fazendo cada vez mais presente em um contexto no qual, anualmente, vemos os índices de depressão, ansiedade e suicídio aumentarem. Mas apesar de ser muito conhecido e divulgado (e talvez até por isso mesmo) seja também um período que levanta discussões um tanto quanto perigosas. Minha impressão geral é que compartimentamos um tema de extrema complexidade em apenas trinta dias, sendo que, em todos os outros dias do ano, ignoramos o fato de não temos meios definitivos para lidar com pessoas em crise suicida. Nosso país não possui serviços de qualidade destinados às pessoas suicidas e, para piorar, muito leigos abrem suas caixas de mensagem, na tentativa de ajudar essas pessoas em situação de risco, arriscando piorar o quadro que por si só já é grave.

Mas o que isso tem a ver com o livro de Hanya Yanagihara? Bem, Uma vida pequena foi lançado em 2016, e decidi falar sobre essa leitura como uma forma de alertar as pessoas para a complexidade e a gravidade envolvida nos transtornos mentais. Além disso, já deixo o aviso de que não recomendo essa leitura para qualquer pessoa, por se tratar de um livro que detalha “situações-gatilho” para quem se encontra em uma situação de vulnerabilidade emocional, trazendo temas como abuso sexual, uso de drogas, automutilação, tentativas de suicídio e relacionamentos abusivos. Considero, portanto, um livro perigoso, mas, ao mesmo tempo, importante para que possamos compreender a complexidade do ser humano.

Se eu fosse outro tipo de pessoa, poderia dizer que todo esse incidente é uma metáfora da vida em geral: as coisas se quebram, às vezes podem ser consertadas, e, na maioria dos casos, você percebe que independentemente do que é danificado, a vida se rearranja para compensar sua perda, às vezes de forma maravilhosa.

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Uma vida pequena nos conta a história de quatro amigos ao longo de décadas, iniciando quando eles tem aproximadamente dezessete anos, e se estendendo até  aproximadamente os cinquenta e poucos anos. Willem é ator, JB é artista, Malcom é arquiteto e Jude é advogado. Eles são muito diferentes entre si, e todos são movidos pelo ideal social de busca por felicidade, prazer e sucesso. Mas apesar de a história falar dos quatro amigos e de suas relações, o foco da narrativa é em Jude: no início do livro, sabemos dele o mesmo tanto que seus amigos, ou seja, de que não tem pais, de que é um sujeito calado e reservado, e que seu passado é um mistério. E, a medida em que a verdade é revelada a alguns personagens do livro, é apresentada também a nós, leitoras e leitores (e o pensamento em comum entre os personagens e nós mesmos é, muitas vezes: – Eu preferiria não saber).

Jude era um otimista. A cada mês, a cada semana, escolhia abrir os olhos e viver mais um dia no mundo.

O passado de Jude é cruel e, para ele, é ainda muito presente. É algo que frequentemente o impede de assumir sua própria vida, de confiar nas pessoas e de se enxergar como alguém que merece o amor e a felicidade. As marcas que ele carrega em seu corpo são lembretes diários do ser asqueroso que ele acredita ser, mesmo que o mundo lhe diga o contrário. Jude foi presenteado pela vida: tem pessoas que o amam incondicionalmente, uma carreira de sucesso e a chance de se reinventar… Mas sua dor é grande demais, real demais, para que ele se perdoe por um crime que, na realidade, não foi ele quem cometeu. Assim, ao longo do livro, das décadas de vida de Jude e de seus amigos, somos apresentados a um homem vulnerável, ao “pós-homem”, às suas estratégias para sobreviver, às nuances da vida, ao poder da amizade e também à dor, ao sofrimento extremo, às lembranças intrusivas e ao sentimento de impotência.

“Amizade era testemunhar o lento gotejar de tristezas, as longas crises de tédio e os triunfos ocasionais do outro. Era sentir-se honrado pelo privilégio de estar presente durante os momentos mais sombrios de outra pessoa e saber que você também podia ter seus momentos sombrios perto dela.”

PRINCIPAIS IMPRESSÕES

Esta obra de Hanya Yanagihara foi uma das leituras mais difíceis que já tive e, por isso mesmo, uma das melhores. A narrativa é detalhada, os personagens se tornaram reais para mim e o sofrimento deles era tangível. Mas também foi tangível o amor, a amizade, a esperança e a fé que todos depositavam em Jude. Acredito que, apesar de ser um livro que foca muito nos transtornos mentais (temos sinais de depressão, de transtorno do estresse pós traumático (TSPT), de transtorno do pânico (TP) e vemos o abuso de substâncias entorpecentes, por exemplo), é sobretudo um relato de empatia, amor e de força. Jude escolhia, dia após dia, viver; escolhia confiar, amar e ser amado; escolhia, também, abandonar seu passado para seguir em frente. E isso, para mim, é força: esse constante movimento de vida em meio ao desejo intenso de morte.

A vida é tão triste, pensava nesses momentos. É tão triste, e, ainda assim, todos vivemos. Todos nos agarramos a ela; todos procuramos algo que nos console.

O livro me trouxe diversas reflexões – e uma delas é a seguinte: até que ponto podemos ajudar alguém que está tão vulnerável? Até que ponto esse desejo de salvar o outro é “amor” e em que momento se torna um desejo egoísta? Uma possível resposta para essa reflexão foi dada por Harold – um dos personagens que mais amou e lutou por Jude –, no último capítulo do livro.

Esse livro se tornou meu favorito da vida, por conta de toda sua complexidade, pela construção impecável dos personagens, por mesclar sentimentos tão ambíguos com tamanha perfeição e por apresentar a vida de uma forma tão real. Me vi transportada para o universo da obra e senti intensamente, quis a todo momento abraçar Jude e dizer que o amava também (um pouco bobo de minha parte, talvez, mas inevitável). Mas essas conclusões só se fizeram presentes ao final da obra, após desabar com a icônica frase de Harold que tornou a experiência muito real para mim (assustadoramente real):

Por isso tento ser amável com tudo o que vejo, e em tudo que vejo, eu vejo ele.

Por onde começar a ler Freud

A dúvida sobre por onde começar a ler Freud é compartilhada por muitas pessoas e pode, realmente, gerar algum embaraço, especialmente porque sua obra é bastante extensa e volumosa, com dezenas de textos que vão construindo progressivamente a teoria psicanalítica freudiana. Contudo, isso não significa – ou não necessariamente significa – que seja preciso começar “pelo começo”, cronologicamente e fazer uma leitura extensiva, de cabo a rabo. Para quem quer conhecer a obra de Freud, mas não espera examiná-la à exaustão, existem várias opções possíveis, de modo que a resposta à nossa pergunta deve, antes de tudo, levar em conta que não existe um só caminho para começar a ler Freud.

Por esse motivo, outro ponto importante é saber qual é o seu interesse nessa leitura, uma vez que é totalmente válido ler Freud pensando no conhecimento da sua técnica ou teoria psicanalítica, em vista de um ponto de vista filosófico, com um recorte bem específico (por exemplo, usa-se muito os conceitos freudianos de trauma, infamiliar e sintoma em outras áreas que não a própria psicanálise), ou por curiosidade, já que os textos de Freud também possuem uma grande qualidade literária – aliás, sabia que Freud foi laureado no Prêmio Goethe de Literatura, em 1930? Ele também chegou a ser indicado ao Nobel de Literatura em 1936, mas este quem levou foi Eugene O’Neill.

Tendo isso em mente, como analista em formação e entusiasta da teoria e da prática psicanalítica, gostaria de indicar algumas possibilidades para quem ainda não decidiu de onde partir. 🙂

Para quem quer ler Freud como pensador da cultura

Aos que estão procurando um Freud filosófico, com mais atenção ao seu pensamento enquanto um intelectual de seu tempo que como médico e psicanalista, as sugestões de leitura são Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915), A transitoriedade (1916) e O mal estar na civilização (1930), sendo o terceiro deles o mais longo e mais desafiador, enquanto os outros ganham na sua linguagem acessível e na beleza das ideias, além de serem textos bem breves.

Freud para quem quer estudar psicanálise

Como vocês já devem ter desconfiado, nem se eu elencasse aqui uma dúzia de textos seria possível dar conta de passar por tudo que a teoria que Freud produziu. Por isso, considero essas indicações apenas um aperitivo, sem pretensão nenhuma de esgotar o assunto, mas só pra dar aquele gostinho em quem está a fim de conhecer mais do assunto, ok? Então, aí vão as sugestões: para quem quer ler Freud para estudar psicanálise, alguns textos interessantes são O sonho é a realização de um desejo (1900), Os instintos e seus destinos (1915) e A questão da análise leiga (1926). Dica de ouro: se puder, consulte um dicionário de psicanálise quando bater a dúvida sobre o que quer dizer algum conceito. Pessoalmente, gosto muito do Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis, mas existem outros igualmente competentes, como o de Roudinesco e Plon, por exemplo.

Freud para os amantes de literatura e outras artes

Além de um exímio médico e pesquisador, Freud também foi um grande admirador da literatura e de outras artes, tendo usado delas para ajudar a construir sua teoria – não vamos esquecer a importância do mito de Édipo para Freud, por exemplo – e escrito sobre elas em algumas ocasiões. Na verdade, muitos de seus textos têm pinceladas com referências a poetas, dramaturgos e romancistas admirados pelo autor. Se você também se interessa por esses temas, pode gostar de textos como O escritor e a fantasia (1908), O tema da escolha do cofrinho (1913) e O inquietante (1919).

Freud para quem procura histórias reais

Uma última aposta, para os quem ainda estão indecisos, são os casos clínicos de Freud, em que o autor relata em minúcias os encontros com pacientes, suas queixas, a evolução dos seus sintomas, seus sonhos e suas interpretações. Cada caso costuma trazer importantes contribuições à teoria freudiana, pois é a partir deles, ou seja, a partir da experiência clínica, que Freud faz as suas proposições para o campo psicanalítico. Alguns dos casos mais importantes e conhecidos de Freud são O caso Dora (1905), O pequeno Hans (1909), O homem dos ratos (1909), O caso Schreber (1911) e O homem dos lobos (1918), além dos que estão em seus Estudos sobre a histeria (1893-1895), dos quais gosto particularmente do caso sobre Emmy von N., a partir do qual Freud deixa a hipnose e começa a se valer da associação livre na condução dos tratamentos.

Conto – “Nuvens”, de Graciliano Ramos

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, A quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou.

Houve uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi muitas caras, palavras insensatas. Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, andava em dois ou três anos. A recordação de uma hora ou de alguns minutos longínquos não me faz supor que a minha cabeça fosse boa. Não. Era, tanto quanto posso imaginar, bastante ordinária. Creio que se tornou uma péssima cabeça. Mas daquela hora antiga, daqueles minutos, lembro-me perfeitamente.

Achava-me numa vasta sala, de paredes sujas. Com certeza não era vasta, como presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas. Contudo pareceu-me enorme. Defronte alargava-se um pátio, enorme também, e no fim do pátio cresciam árvores enormes, carregadas de pitombas. Alguém mudou as pitombas em laranjas. Não gostei da correção: laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam.

A sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam folhas de papel e esgoelavam-se:

— Um b com um a b, a: ba; um b com um e — b, e: be.

Assim por diante, até u. Em escolas primárias da roça ouvi cantarem a soletração de várias maneiras. Nenhuma como aquela, e a toada única, as letras e as pitombas convencem-me de que a sala, as árvores, transformadas em laranjeiras, os bancos, a mesa, o professor e os alunos existiram. Tudo é bem nítido, muito mais nítido que o vaso. Em pé, junto ao barbado, uma grande moça, que para o futuro adquiriu os traços de minha irmã natural, tinha nas mãos um folheto e gemia:

— A, B, C, D, E.

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos desceram ao quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também. Resisti: o degrau que me separava do terreiro era alto demais para as minhas pernas. Transportaram-me — e adormeci, não cheguei a pisar no barro vermelho. Acordei numa espécie de cozinha, sob um teto baixo, de palha, entre homens que vestiam camisas brancas. Um deles perguntou como se havia de assar o bacalhau e outro respondeu:

— Faz-se um grajau de madeira.

Grajau? Que seria grajau? Tornei a mergulhar no sono, um sono extenso.

Disseram-me depois que a escola nos servira de pouso numa viagem.

Tínhamos deixado a cidadezinha onde vivíamos, em Alagoas, e entrávamos no sertão de Pernambuco, eu, meu pai, minha mãe, duas irmãs. Mas pai e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma natural, mais velha que eu, a outra legítima, direita, dois anos mais nova, eram manchas paradas.

Positivamente havia pitombas e um vaso de louça, esguio, oculto atrás de um móvel a que a experiência deu o nome de porta. Surgiram repentinamente a sala espaçosa, o velho, as crianças, a moça, bancos, mesa, árvores, sujeitos de camisas brancas. E sons estranhos também surgiram: letras, sílabas, palavras misteriosas. Nada mais.

E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro.

Passam através desses rasgões figuras indecisas: Amaro Vaqueiro, caboclo triste, encourado num gibão roto;  Sinha Leopoldina, companheira dele, vistosa na chita cor de sangue; mulheres que fumavam cachimbo. Mais vivo que todos, avulta um rapagão aprumado e forte, de olhos claros, risonho.

Calçava alpercatas, vestia a camisa branca de algodão que usa o sertanejo pobre do Nordeste, áspera, encardida, ordinariamente desabotoada, as pontas das aberturas laterais presas em dois nós. Chamava-se José Baía e tornou-se meu amigo, com barulho, exclamações, onomatopéias e gargalhadas sonoras.

Sentado, escanchava-me nas pernas e sacudia-me, sapateava, imitando o galope de um cavalo; em pé, segurava-me os braços, punha-se a rodopiar, cantando:

Eu nasci de sete meses, 
Fui criado sem mamar. 
Bebi leite de cem vacas 
Na porteira do curral

Quando me soltava, eu cambaleava, zonzo. Um dia, livre dos giros vertiginosos, saí aos tombos, esbarrei com um esteio e ganhei um calombo grosso na testa.

Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou.

Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio. A cabeçada valente que dei, solto das garras de José Baía, firmou o copiar, sustentado por colunas robustas, de aroeira ou sucupira. Ali perto era a sala, de janelas sempre fechadas, armas de fogo e instrumentos agrícolas pelos cantos, arreios suspensos em ganchos, teias de aranha, a rede segura em armadores de pau, grosseiros caixões verdes, depósitos de cereais, se não me engano. No corredor desembocavam camarinhas cheias de treva e a sala de jantar. A cozinha desapareceu, mas o quintal subsiste, duro e nu, sem flores, sem verdura, tendo por único adorno, ao fundo, junto a montes de lixo, um pédeturco, ótimo para a gente se esconder nas perseguições. Desse lado o pédeturco marcava o limite do mundo. Do outro lado a terra se estendia por longas distâncias. A casa, de material rijo, estava completa por dentro. Mas exteriormente havia nela singularidades. O oitão esquerdo era de altura incrível; à direita faltava oitão, não sei como o telhado podia equilibrar-se. Talvez currais e chiqueiros, construídos na vizinhança, ocultassem um dos muros. Chiqueiros e currais esvaíram-se.

Durante um redemoinho brabo notei esquisitices. Nuvens de poeira enrolaram-se em briga feia, escureceu, um rumor diferente dos outros rumores cresceu, espalhou-se, e no meio da terrível desordem um couro de boi espichado quebrou o relho que o amarrava a um galho e voou no turbilhão. Uma senhora magra, minha indistinta mãe, tentou com desespero fechar uma porta balançada pela ventania. Folhas e garranchos entraram na sala, um bicho zangado soprou ou assobiou, a mulher agitou-se pendurada na chave. Findo o despropósito, vi a pessoinha com a mão envolta em panos. Um dedo inchou demais, e foi necessário que lhe cortassem o anel com lima. Em seguida perdi a moça de vista. E a letargia continuou.

O pátio, que se desdobrava diante do copiar, era imenso, julgo que não me atreveria a percorrê-lo. O fim dele tocava o céu. Um dia, entretanto, achei-me além do pátio, além do céu. Como cheguei ali não sei. Homens cavavam o chão, um buraco se abria, medonho, precipício que me encolhia apavorado entre montanhas erguidas nas bordas. Para que estariam fazendo aquela toca profunda? Para que estariam construindo aqueles montes que um pó envolvia como fumaça? Retraí-me na admiração que me causava o extraordinário formigueiro. As formigas suavam, as camisas brancas tingiam-se, enegreciam, ferramentas cravavam-se na terra, outras jogavam para cima o nevoeiro que formava os morros.

Nova solução de continuidade. As sombras me envolveram, quase impenetráveis, cortadas por vagos clarões: os brincos e a cara morena de Sinha Leopoldina, o gibão de Amaro Vaqueiro, os dentes alvos de José Baía, um vulto de menina bonita, minha irmã natural, vozes ásperas, berros de animais ligando-se à fala humana. O moleque José ainda não se tinha revelado. Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as finas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas — e os meus receios esmoreciam. As grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos.

O vozeirão que as comandava perdia a aspereza, um riso cavernoso estrondava — e os perigos ocultos em todos os recantos fugiam, deixavam em sossego os viventes miúdos: alguns cachorros, um casal de moleques, duas meninas e eu.

De repente surgiu a terceira irmã, insignificância, nos braços de Sinha Leopoldina. Não fiz caso disso.

O que então me pasmou foi o açude, maravilha, água infinita onde patos e marrecos nadavam. Surpreenderam-me essas criaturas capazes de viver no líquido. O mundo era complicado. O maior volume de água conhecido antes continha-se no bojo de um pote — e aquele enorme vaso metido no chão, coberto de folhas verdes, flores, aves que mergulhavam de cabeça para baixo, desarranjava-me a ciência. Com dificuldade, estabeleci relação entre o fenômeno singular e a cova fumacenta. Esta, porém, fora aberta numa região distante, e o açude se estirava defronte da casa. Estava ali, mas tinha caprichos, mudava de lugar, não se aquietava, era uma coisa vagabunda.

A vazante das abóboras, por exemplo, ficava longe. Sozinho, não me seria possível atingi-la. Dez ou vinte aboboreiras na terra de aluvião. Amaro havia dito que uma bastava. Se o inverno viesse, aquele despotismo seria estrago; chegando a seca, não se colheria um fruto, ainda que enterrassem na lama todas as sementes. Meu pai desprezou o conselho do caboclo — e o resultado foi uma praga de abóboras. A princípio uns cordõezinhos se torceram na vaza, enfeitaram-se de botões amarelos, de pequenas cabaças. Um homem carrancudo examinava-as, marchando vagaroso. Era um meu tio, hóspede, convidado para ser padrinho da insignificância que berrava nos cueiros.

Ofereceu-me uma caixa de fogos de artifícios, desapareceu — e no ponto onde o conheci as vergônteas floridas engrossaram, tornaram-se cordas robustas, peludas. E as abóboras cresceram, tantas que a gente andava na roça pisando em cima delas. Juntavam-se, enganchavam-se duas, três, num bloco, figuravam bela calçada movediça. Os caçuás enchiam-se. Acomodava-me numa carga e lá nos íamos sacolejando, eu e o animal, em caminhos esburacados. Abarrotaram-se os caixões da sala, fizeram-se tulhas no alpendre, nos quartos. E a produção levantava-se, espalhava-se, desvalorizada. Escancararam-se afinal as porteiras, houve licença para que toda a gente se abastecesse. Franqueza vã: saciada a população escassa, empanzinada a meia dúzia de porcos da fazenda, a safra inútil apodreceu no campo.

Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se. Na harmonia conjugai a voz dele perdia a violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no cocuruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém, ranger de dobradiça ou choro de criança, lhe restituía o azedume e a inquietação.

Zangava-se ouvindo alguém afastar-se da sua prosódia curiosa. Suponho que nunca houve outra igual. A sintaxe e o vocabulário também diferiam bastante do que usamos comumente. Nessa linguagem capenga, D. Maria matracava um longo romance de quatro volumes, lido com apuro, relido, pulverizado, e contos que me pareciam absurdos. De um deles ressurgem vagas expressões: tributo, papa-rato, maluquices que vêm, fogem, tornam a voltar.

Tento arredá-las, pensar no açude, nos mergulhões, nas cantigas de José Baía, mas os disparates me perseguem. Lentamente adquirem sentido e uma historieta se esboça:

Acorde, seu papa. ..

Papa quê? Julgo a princípio que se trata de papa-figo, vejo que me engano, lembro-me de papa-rato e finalmente de papa-hóstia. É papa-hóstia, sem dúvida:

Acorde, seu Papa-hóstia, 
Nos braços de...

Nova pausa. Três ou quatro sílabas manhosas dissimulam-se obstinadas.

Despontam algumas, que experimento e abandono, imprestáveis. Enquanto procuro desviar as idéias, a impertinência se insinua no meu espírito, arrasta-me para a sala escura, cheia de abóboras. Subitamente as fugitivas aparecem e com elas o início da narrativa:

Acorde, seu Papa-hóstia, 
Nos braços de Folgazona.

Aí temos uma alteração:

Levante, seu Papa-hóstia, 
Dos braços de Folgazona.

Outra emenda. O hábito de corrigir a língua falada instiga-me a consertar o primeiro verso:

Levante-se, Papa-hóstia.

Vacilo um minuto, buscando cá por dentro a forma exata da composição.

Persuado-me enfim de que minha mãe dizia:

Levante, seu Papa-hóstia.

E repete-se a aventura seguinte, que D. Maria recitava embalando-se na rede, perto dos caixões verdes. Um menino pobre foi recebido caridosamente em casa de certo Vigário amancebado. Temendo ver na rua os seus podres, o Reverendo ensinou ao pequeno uma gíria extravagante que baldaria qualquer indiscrição possível. Afirmou que se chamava Papa-hóstia e à amante deu o nome de Folgazona; gato era papa-rato, fogo era tributo. Esqueci o resto, e não consigo adivinhar por que razão tributo serviu para designar fogo. Seguros de que o rapaz não os denunciaria, o padre e a rapariga começaram a maltratá-lo.

Não se mencionou o gênero dos maus tratos, mas calculei que deviam assemelhar-se aos que meus pais me infligiam: bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas. Acostumaram-me a isto muito cedo — e em consequência admirei o menino pobre, que, depois de numerosos padecimentos, realizou feito notável: prendeu no rabo de um gato um pano embebido em querosene, acendeu-o, escapuliu-se gritando:

Levante, seu Papa-hóstia, 
Dos braços de Folgazona. 
Venha ver o papa-rato 
Com um tributo no rabo.

Falta meia dúzia de linhas, não chego a reconstituí-las. Sei que, tendo-se queimado roupas e móveis, a história finda assim, furiosamente:

Acuda com todos os diabos.

Esta obra de arte popular até hoje se conservou inédita, creio eu. Foi uma dificuldade lembrar-me dela, porque a façanha do garoto me envergonhava talvez e precisei extingui-la. Ouvindo a modesta epopéia, com certeza desejei exibir energia e ferocidade. Infelizmente não tenho jeito para violência.

Encolhido e silencioso, aguentando cascudos, limitei-me a aprovar a coragem do menino vingativo. Mais tarde, entrando na vida, continuei a venerar a decisão e o heroísmo, quando isto se grava no papel e os gatos se transformam em paparatos. De perto, os indivíduos capazes de amarrar fachos nos rabos dos gatos nunca me causaram admiração. Realmente são espantosos, mas é necessário vê-los à distância, modificados.


“Nuvens” é uma das narrativas que compõem o livro Infância, escrito e publicado por Graciliano Ramos, em 1945. A versão que reproduzimos aqui foi tirada da edição da editora Record, em sua 11ª edição, de 1976. O livro já recebeu uma análise especializada aqui no blog, escrita pelo autor Alexandre Fonseca, que discorre sobre o tema da narrativa memorialística.

Violão em harmonia: uma valiosa aula de Paulinho Nogueira

Enquanto escrevia um artigo, deixando a playlist do Youtube Music rodar, eis que de repente escuto uma gravação antiga, o som um tanto quanto sujo, que eu já tinha ouvido não sei nem em qual altura da vida. Parei o teclado e fui ao reprodutor para ver o que estava ouvindo, e foi então que vi Paulinho Nogueira tocando “Samba em prelúdio”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell, em uma versão única e completamente instrumental dessa canção. Esse pequeno fragmento de vídeo me deixou muito interessado, por isso, me lancei na pesquisa de materiais relacionados a ele e finalmente descobri o Violão em harmonia, uma gravação de mais ou menos uma hora, na qual Paulinho Nogueira explica, misturando teoria e prática, alguns conceitos musicais relacionados à harmonização.

Método para violão [clique na imagem]

Não sei quando isso aconteceu – digo, quando assisti pela primeira vez ao Violão em harmonia – e também não sei o quanto aprendi daquilo que Paulinho explicava, porque, além de jovem, eu entendia bulhufas de teoria musical e de violão erudito. (Na verdade, ainda hoje continuo apenas “arranhando”/arriscando o violão e a teoria musical em geral.) Mas essa obra prima em formato de vídeo se tornou muito querida por mim, a ponto de eu adquirir uma cópia sua e decidir disponibilizá-la aqui no Duras Letras, já que sempre existe o risco de o vídeo desaparecer do Youtube.

Não se trata apenas de um material didático para músicos: Violão em harmonia é, antes de tudo, um show de Paulinho Nogueira, feito em formato de conversa, no aconchego de sua casa. Enquanto estamos na plateia, “do outro lado”, tomando um café, ou escrevendo artigos, Paulinho nos conduz pela seara da canção popular, relembrando nomes como Noel Rosa, João Gilberto, Tom Jobim, Cartola e Ernesto Nazareth, tentando enfiar em nossa cabeça distraída qualquer tantinho da especificidade de cada um desses músicos ímpares e de sua importância para uma história nacional do violão.

Então, se você gosta de canção, teoria musical ou de simples simpatia de um senhor muito jeitoso, dê play no vídeo abaixo e confira, em versão integral, o Violão em harmonia.

Violão em harmonia – Paulinho Nogueira [Completo]

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