Resenha – “A mão esquerda da escuridão”, de Ursula K. Le Guin

Resenha do livro "A mão esquerda da escuridão", de Ursula K. Le Guin, escrita por Gabriel Reis Martins.

Ficção científica, política e de gênero

Não sei bem o que me levou a ler o livro A mão esquerda da escuridão, da escritora Ursula K. Le Guin, a não ser o fato de ter sido indicado por minha companheira, que o tinha lido para uma disciplina a respeito da ficção científica produzida nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ela gostara tanto da história de Le Guin que acabou comprando a versão física da obra, publicada em 2019, pela Editora Aleph, com tradução de Susana L. de Alexandria. Estando na estante e sem outras obras pendentes, acabei encarando a leitura e confesso que fiquei bastante impressionado.

Resumindo

Em A mão esquerda da escuridão nós acompanhamos a missão política empreitada por Genry Ai, um homem terráqueo, enviado para o planeta Inverno (ou Gethen), a fim de convencer seus “países” e habitantes a entrarem como planeta para o Ekumen, uma espécie de ONU interplanetária. O interesse do Ekumen em Gethen está ligado ao fato de os gethenianos serem parte de uma “humanidade maior”, apesar de o povo de Gethen não parecer ter qualquer interesse em tecnologias espaciais ou nas conquistas do progresso tecnológico, o que coloca o Sr. Ai, um alienígena entre eles, imerso em um jogo complexo de desconfiança e incredulidade.

Atravessando essa trama política está a maior dificuldade encontrada pelo terráqueo: o fator sexual e seus impactos na sociedade e na psique getheniana, ponto que é uma das cerejas do bolo confeitado por Le Guin. Os gethenianos, diferente dos “outros humanos”, de outros planetas, são ambissexuais, ou seja, têm a capacidade de desenvolver os dois órgãos genitais, o que se dá em períodos específicos de reprodução e/ou afeto: o kemmer. Genry Ai, homem da Terra, é um pervertido aos olhos de Gethen, por sempre estar “no cio” – ou no kemmer –, e ninguém no planeta confia nele, a não ser Therem Hart rem ir Estraven, um político getheniano, que, justamente por conta de seu interesse em Genry e no Ekumen, perde todo seu prestígio, sendo colocado diante de diversas armadilhas armadas por seus conterrâneos.

Os dois personagens, que são também os narradores da história, enfrentam uma odisseia política e social, criada por suas próprias escolhas, se vendo obrigados a enfrentar o povo e a cultura de um planeta que ainda passa por uma de suas eras glaciais e que ainda parece querer permanecer isolado.

Luz é a mão esquerda da escuridão
e escuridão, a mão direita da luz.
Dois são um, vida e morte, unidas
como amantes no kemmer,
como mãos entrelaçadas,
como o fim e a jornada.

Inteligência ficcional

Farei meu relatório como se contasse uma história, pois quando criança aprendi, em meu planeta natal, que a Verdade é uma questão de imaginação.

Em conversas com minha companheira, desde o começo de minha leitura, tenho elogiado a construção do universo de A mão esquerda da escuridão; quando as calotas polares derreterem e o mar cobrir a terra, ou quando o sol se apagar de vez, e não existir mais nada, eu vou continuar elogiando esta obra e a imaginação de sua autora. Isso porque é de uma inteligência invejável, e Ursula K. Le Guin consegue dar substância não só ao planeta glacial Inverno em si, como também à experiência e ao choque cultural vivido pelas duas personagens centrais. Nós, de fato, temos uma “percepção de alienígena”, ou no mínimo estrangeira, com relação a Estraven e aos códigos gethenianos, e temos a mesma impressão de Genry Ai, quando é Estraven quem está narrando, já que o terráqueo não é um homem da nossa terra e tão semelhante a nós, mas de uma Terra de alguns bons anos no futuro. A autora não deixa escapar nada e se vale de mitos, lendas, descrições geológicas e temporais, quase que completamente inventadas, para deixar o cenário mais real, mais palpável para o leitor. E diferente do que acontece com algumas obras, em que as descrições vão ficando enfadonhas e longas demais, em A mão esquerda da escuridão eu sempre queria avançar e descobrir mais um pouco sobre Gethen e sua gente. Acho que isso acontece porque os elementos descritivos estão espalhados por uma trama de acontecimentos bastante envolvente, que traz prisão, traição, assassinato, peregrinação e tudo mais.

A questão de gênero

Apesar da maestria com relação à construção do kemmer enquanto fator biológico e cultura local de Gethen, Ursula K. Le Guin acaba caindo em uma armadilha que ela mesma quer desconstruir nesta história: pelo fato de os gethenianos “não terem sexo definido”, todos os personagens que aparecem de forma central na trama apresentam traços tipicamente tratados como masculinos. É um livro de homens, contado por um homem terráqueo. Estes homens que convivem com Genry Ai são, no geral, tratados com pronomes e artigos masculinos, e o narrador sempre associa a eles a força, a racionalidade, a postura política e impositiva, a violência etc. Agora, quando, em algumas cenas, o Sr. Ai vê que algum personagem getheniano demonstra sensibilidade, fraqueza ou impaciência, ele imediatamente o associa ao feminino, reforçando alguns estereótipos que já não fazem sentido para nós, contemporâneos.

O livro de Le Guin saiu em 1969, ou seja, um ano depois do Maio de 68, o que significa que os debates acerca do gênero e da sexualidade ainda viviam uma espécie de germe de pensamento. O fato de ser antigo não invalida, é claro, as discussões levantadas em A mão esquerda da escuridão, principalmente no que diz respeito à relação entre masculinidade e feminilidade como parte de um sistema binário (e machista, em muitos casos), no qual se opõem: masculino e feminino, como positivo e negativo, ativo e passivo, racional e passional, destrutivo e construtivo etc.

“Yes i Say Yes i will yes”

Se não convenci com a resenha, tento agora com um pedido formal: – Leia A mão esquerda da escuridão.

Depois de eu ler uma série de e-livros, foi muito bom pegar um volume físico para ler, e melhor ainda foi encontrar esta obra prima da ficção, escrita por Ursula K. Le Guin, que, posso dizer com total certeza, foi um dos melhores livros que li em 2021. Assim, aos que querem ler uma boa ficção, não só científica, como também um bom livro, no geral, deixo essa indicação (essa EXIGÊNCIA, na verdade): – Leia A mão esquerda da escuridão.

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