Por onde começar a ouvir Clube da Esquina

Por conta do “Top 10 álbuns” lançado pelo Podcast Discoteca Básica, o álbum Clube da Esquina (1972) entra mais uma e outra vez nos debates e ouvidos da população, tendo assumido a primeira posição em uma lista que contou com mais de quatrocentos discos avaliados por especialistas. O resultado dessa avaliação está sendo divulgado aos poucos pelos produtores do podcast citado, mas será disponibilizado, em definitivo, com a publicação do livro Os 500 maiores álbuns brasileiros de todos os tempos.

Mas o que será que faz de Clube da Esquina um disco tão especial? Por onde começar a  a escutá-lo e, mais, quais os motivos de seu destaque entre os melhores álbuns brasileiros já lançados?

Certamente, não há uma resposta única para essas perguntas. Ainda assim, uma breve viagem pela trajetória que leva ao célebre álbum de 1972 pode ajudar a esclarecer um pouco mais sua produção e também sua relevância e impacto enquanto “maior disco brasileiro de todos os tempos”, nas palavras dos produtores do Discoteca Básica.

Foto: Reprodução / O Tempo

O que é o Clube da Esquina?

Essa é uma pergunta importante para começar a entender o projeto musical que envolve o elepê duplo de 72. Isso porque, para alguns especialistas na obra do Clube da Esquina – como Sheila Diniz e Luiz Henrique Garcia – o nome não se refere especificamente a este ou àquele álbum (lembrando aqui também o lançamento de Clube da Esquina 2, de 1978, por Milton Nascimento), mas sim a uma formação cultural ou, ainda, um tipo de movimento musical feito a partir de Minas Gerais.

Nesse sentido, além de grupos e identidades sonoras como a Bossa Nova, a Tropicália, a Canção de Protesto e a Jovem Guarda, por exemplo, todas que ocorrem com certa proximidade e participam de um processo de modernização musical no Brasil, o país teria conhecido também uma inflexão musical encabeçada por um coletivo de músicos e letristas que passaram sua juventude na cidade de Belo Horizonte, e que acabaram ficando conhecidos pelo nome Clube da Esquina, por conta de uma canção e de dois elepês (que os consagraram).

Agora, com toda certeza, se visto enquanto movimento ou formação cultural, esse Clube acaba sendo muito maior do que a produção restrita de um disco, mesmo porque – segundo uma divisão já canônica, proposta por Leandro Garcia – sua trajetória data de 1967 até 1979, isto é, de quando Milton Nascimento lança seu primeiro elepê – Travessia (1967) – até o momento de publicação dos últimos trabalhos coletivos dos artistas envolvidos com o álbum Clube da Esquina, de 1972.

Por onde começar a ouvir?

Vamos voltar à pergunta chave desta publicação: por onde começar a ouvir e a entender Clube da Esquina? Bem, para ela, existem pelo menos duas respostas simples: a primeira delas, um tanto quanto óbvia, é partir diretamente para a escuta do elepê duplo de 1972 – ir direto na raiz. Afinal de contas, ele é certamente uma síntese dos elementos que, aos olhos da crítica e da historiografia musical brasileira, fazem parte não apenas da sonoridade específica do Clube, como também da modernização da canção popular no país. 

Porém, é interessante fazer uma escuta um pouco mais atenta do que de costume, pensando que o Clube da Esquina contém uma multidão e que, como mencionado anteriormente, se estende por cerca de dez anos de produção. Então, coloque o disco para tocar, mas se pergunte também: o que afinal define essa musicalidade?

Aqui vai uma dica, que também é uma redução um tanto quanto brusca: é possível dizer que existem três elementos de destaque na obra “mineira” – a “mineiridade”, a coletividade e a contradição – que são justamente os gatilhos para um experimentalismo de difícil comparação na música popular.

É claro que cada um desses traços poderia ser discutido longamente, mas deixo aqui apenas a sugestão de encontrá-los durante uma audição do disco de 1972. Repare, por exemplo, como “mineiridade” e contradição se manifestam no uso dos muitos signos tradicionais do estado, que são conjugados com elementos chamados “modernos”. Essa mistura entre tradição “regional” e modernização está tanto na musicalidade (com o uso de apitos, coro, órgão e tambores, associados a violão, bateria, guitarra, baixo, teclados eletrônicos e sintetizadores), como também nas letras das canções, que falam de trens, janelas que dão para cemitérios, estradas, ruas de uma capital provinciana etc.

Agora, no que diz respeito à coletividade, é interessante conhecer um pouco mais sobre a obra de cada artista que participou do álbum. Porém, pensando que são dezesseis envolvidos nessa concepção musical, minha sugestão é você restringir sua pesquisa a alguns nomes célebres: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes e o Som Imaginário, que cantam e tocam e dão o tom multifacetado que é encontrado em Clube da Esquina.

Isso nos leva para um caminho um tanto quanto paralelo àquele da primeira resposta, pois aponta para álbuns distintos do elepê duplo de 1972. Esses discos, no entanto, à sua própria maneira dão conta da produção musical mineira belo-horizontina e das tensões entre modernidade e tradição. Trata-se dos álbuns Milton (1970), assinado por Milton Nascimento; Som Imaginário (1970), do grupo de mesmo nome; Lô Borges (1972), do compositor homônimo; e Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelli, Toninho Horta (1973), elepê que recebeu o nome de seus artistas.

Todas essas obras representam uma espécie de gestação musical pela qual os músicos e letristas “mineiros” estavam passando e, nesse ponto, pode-se dizer que são laboratórios. Ainda, repare como são trabalhos muito diferentes se comparados entre si, mas que, quando colocados ao lado de Clube da Esquina, encontram uma estranha sintonia com ele, em canções que funcionam como espelhos ou fragmentos de um mesmo mosaico.

Cada vez mais Clube da Esquina

Como se trata de um álbum duplo, com suas boas 21 canções, é bem comum descobrir novas faces e movimentos a cada vez que voltamos ao Clube, o que fica ainda melhor quando somos orientados a perceber alguns pequenos detalhes e também a colocar o elepê em paralelo com outras produções contemporâneas. Com o tempo, começam a saltar aos ouvidos elementos como os vocais de apoio e a guitarra de Beto Guedes; os momentos épicos e sombrios do piano de Wagner Tiso (em canções como “Cais” e “Um gosto de sol”); o surrealismo das paisagens construídas pelas canções de Lô Borges, que contrastam com o tom político e ritualístico encampado por Milton; etc.

Se realmente é o “melhor disco brasileiro de todos os tempos” é difícil dizer, porque esses juízos são sempre limitados e duvidosos, ainda que embasados em alguma medida. Mas sem dúvida alguma com Clube da Esquina estamos diante de uma obra prima da canção moderna e popular no Brasil, além de ser um dos discos sem os quais minha vida e minhas experiências estéticas estariam mais pobres. Com isso, fica, outra vez, o convite à escuta: escute Clube da Esquina!

https://www.youtube.com/watch?v=WwTf61AZNEo&t=51s
Texto por Gabriel Reis Martins

Violão em harmonia: uma valiosa aula de Paulinho Nogueira

Enquanto escrevia um artigo, deixando a playlist do Youtube Music rodar, eis que de repente escuto uma gravação antiga, o som um tanto quanto sujo, que eu já tinha ouvido não sei nem em qual altura da vida. Parei o teclado e fui ao reprodutor para ver o que estava ouvindo, e foi então que vi Paulinho Nogueira tocando “Samba em prelúdio”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell, em uma versão única e completamente instrumental dessa canção. Esse pequeno fragmento de vídeo me deixou muito interessado, por isso, me lancei na pesquisa de materiais relacionados a ele e finalmente descobri o Violão em harmonia, uma gravação de mais ou menos uma hora, na qual Paulinho Nogueira explica, misturando teoria e prática, alguns conceitos musicais relacionados à harmonização.

Método para violão [clique na imagem]

Não sei quando isso aconteceu – digo, quando assisti pela primeira vez ao Violão em harmonia – e também não sei o quanto aprendi daquilo que Paulinho explicava, porque, além de jovem, eu entendia bulhufas de teoria musical e de violão erudito. (Na verdade, ainda hoje continuo apenas “arranhando”/arriscando o violão e a teoria musical em geral.) Mas essa obra prima em formato de vídeo se tornou muito querida por mim, a ponto de eu adquirir uma cópia sua e decidir disponibilizá-la aqui no Duras Letras, já que sempre existe o risco de o vídeo desaparecer do Youtube.

Não se trata apenas de um material didático para músicos: Violão em harmonia é, antes de tudo, um show de Paulinho Nogueira, feito em formato de conversa, no aconchego de sua casa. Enquanto estamos na plateia, “do outro lado”, tomando um café, ou escrevendo artigos, Paulinho nos conduz pela seara da canção popular, relembrando nomes como Noel Rosa, João Gilberto, Tom Jobim, Cartola e Ernesto Nazareth, tentando enfiar em nossa cabeça distraída qualquer tantinho da especificidade de cada um desses músicos ímpares e de sua importância para uma história nacional do violão.

Então, se você gosta de canção, teoria musical ou de simples simpatia de um senhor muito jeitoso, dê play no vídeo abaixo e confira, em versão integral, o Violão em harmonia.

Violão em harmonia – Paulinho Nogueira [Completo]

Cantando os clássicos da literatura brasileira

Que tal experimentar o resultado sonoro do cruzamento entre literatura e música? No post de hoje, preparamos uma pequena lista com oito canções, compostas a partir de alguns clássicos da literatura brasileira, que reafirmam a beleza das produções que tiveram seu solo fecundado pelo grão literário.

Nós já contamos aqui no Duras sobre a relação histórica, e até crítica, que a literatura brasileira tem com a música popular nacional, especificamente com a MPB. No post O que a MPB tem a ver com Literatura? passamos por algumas perspectivas teóricas que elucidam tanto a formação de uma área de pesquisa no campo da canção, quanto pelas encruzilhadas criadas nessa zona de estudo. Se você ainda não conferiu este post, ele está disponível aqui:

Mas, se você já conferiu, vamos ao que interessa!

Literatura na canção ou canção na literatura? Dividindo as músicas selecionadas entre da poesia e da prosa, tivemos por objetivo mostrar como tanto um gênero quanto o outro são utilizados para a produção de obras maravilhosas de nosso repertório musical nacional.

Da poesia

Comecemos pela poesia, pois sua passagem para a canção parece um pouco mais simples do que quando tratamos do texto literário em prosa. A seguir, você confere quatro musicalizações de poemas escritos por grandes nomes da literatura brasileira e que, a partir de melodias primorosas, têm seu sentido expandido.

Anoitecer, de Drummond e José Miguel Wisnik

Entre as musicalizações feitas sobre poemas brasileiros, a de “Anoitecer”, do livro Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, está entre as minhas favoritas. Wisnik e seu piano abrem a canção mimetizando a delicadeza das badaladas de um sino interiorano, que anuncia a chegada do fim do expediente, do tempo de descanso, o qual, nem na música, nem no poema, está desprovido de melancolia e nostalgia, de uma relação conturbada com o futuro e com o passado.

Funeral de um lavrador, de João Cabral e Chico Buarque

Composta para uma peça que se inspirou em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, “Funeral de um lavrador” é uma musicalização que trás um trecho integral do texto que o inspira. A composição de Chico é de 1966 e está entre seus primeiros trabalhos como artista da canção. Essa juventude do autor, contudo, não corrobora para que sua melodia deixe a desejar em relação à letra; na verdade, a força que o músico empresta para o texto de João Cabral abre novas camadas de sentido, colocando em cena um violão arrastado e um coro que acompanha a voz do cantador como a sombra da miséria, repetindo suas lamúrias.

Motivo, de Cecília Meirelles e Raimundo Fagner

Agora, se as duas canções anteriores nos colocam diante de uma tristeza aguda, com condições sociais muito bem marcadas (o mundo do pós-guerra, no caso de Drummond, e o sertão agressivo, de João Cabral), essa que Fagner interpreta a partir do poema “Motivo”, do livro Viagem, de Cecília Meireles, ombreia melancolia e alegria. A visão deixa as nuvens baixas do trágico mundo moderno para alcançar também uma dimensão sublime, de aceitação e acordo com o fim iminente, recebido sem alegria ou tristeza, mas com poesia e canto.

Dor elegante, de Paulo Leminski e Itamar Assumpção

Algo parecido acontece com o poema de Paulo Leminski, musicado por Itamar Assumpção, “Dor elegante”. A tristeza, ou, mais especificamente, a dor, é colocada como ponto alto da elegância, como troféu/riqueza e como único bem que o sujeito tem de fato. Essa dimensão da dor, tocada por instrumentos pesados e inscrita em Pretobrás, ganha um novo significado, na medida em que passa também a ser uma dor social e estética, o que acontece tanto com a posição de mulher em um país machista – abarcada pela voz de Zélia Duncan – quanto pela de negro e marginalizado, pela qual passou Itamar em relação à sociedade e à tradição musical brasileira.

Da prosa

Já quando tratamos da passagem da prosa para a canção, essa costuma contar com muito mais liberdade interpretativa do que quando a fonte é a poesia, uma vez que a extensão do romance precisa, muitas vezes, ser reduzida a algumas poucas linhas. O compositor procura encontrar os pontos chave do texto, os instrumentos capazes de comunicar sensações causadas pela obra e um acordo entre essas duas instâncias, textual e sonora.

Modinha para Gabriela, de Jorge Amado e Dorival Caymmi

Inspirada pelo brilhante romance de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela, a “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi, capta pelo menos duas das facetas dessa personagem apaixonante: um lado confessional e recluso, carregado de qualquer tom de timidez, próprio ao silêncio do retirante, daquele que precisa dar explicações; e outro despojado, da Gabriela das festas, autêntica e brincalhona, que deixa transparecer toda sua sensualidade e alegria.

A hora da estrela, de Clarice Lispector e Pato Fu

Talvez, alguém que não leu A hora da estrela, de Clarice Lispector, se engane ao escutar essa canção. Na passagem do texto para a letra, os signos trágicos que recheiam a prosa da célebre escritora e antecipam o fim de Macabeia se destilaram em um tom melancólica e sutil, que traz consigo toda a esperança que a própria personagem parece ter para sua jornada. Nesse sentido, é uma composição brilhante, uma vez que assume a perspectiva da protagonista, que se mantém de fato alienada em relação a seu destino e que está pronta para mudar sua vida para sempre, sofrendo um acidente, no mínimo, ridículo.

Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, Milton Nascimento e Caetano Veloso

Essa com toda certeza é uma das mais belas produções já feitas na seara da música brasileira. A forma como Caetano Veloso conseguiu captar as palavras chave de Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, e colocá-las em sua canção homônima, feita em parceria com Milton Nascimento, chega a assustar, de tão impressionante. A língua se mistura com os instrumentos de percussão e corda e com o balanço pelo qual essa canção nos carrega, misturando versos fortes e precisos, nas margens entre a palavra e seu som, entre prosa da palavra e Rosa da palavra.

Capitu, de Machado de Assis e Luiz Tatit

Escrita por Luiz Tatit, musicólogo e teórico da canção brasileira, a letra de “Capitu” lança um novo olhar sobre a divina personagem machadiana, que veleja, desde seu velho mundo do século dezenove, até o litoral contemporâneo da internet. O recurso dos ecos e o tom direcionado e pequeno da voz que canta muito nos lembram das sombras de Bento Santiago, narrador do Dom Casmurro, de Machado, que insiste na infidelidade da esposa: mulher hábil, poderosa, ambígua, atraente, virtualmente – pois Bentinho chega ao delírio – amada e amante.

É claro que poderíamos acrescentar muitas outras canções a esta lista, que apenas tateia o vasto universo da literatura dentro da música popular brasileira. Por esse motivo, criamos uma pequena playlist, que traz algumas outra faixas, para embalar suas memórias literárias das horas vagas.

Para fechar o post, gostaríamos de fazer um breve comentário sobre a relação tão produtiva entre as duas artes, música e literatura. Começamos por lembrar que não existe musicalização que estrague um poema ou uma narrativa (um absurdo que frequentemente aparece no discurso, principalmente quando alguém, por acaso, não gosta de uma versão cantada do texto literário). Assim como na tradução, toda passagem de uma coisa para outra depende da interpretação do artista, interpretação da qual podemos discordar, sem que isso alcance o texto fonte propriamente dito.

Pensando nisso, para você, o que os textos que serviram de inspiração ganharam com suas versões cantadas, citadas acima? Se você considera que houve uma perda, qual foi ela? Conta para gente nos comentários!

O que a Música Popular Brasileira tem a ver com literatura?

Confira nossa série de vídeos sobre Literatura e MPB no YouTube.

Abertura

Qual é a música mais antiga que você conhece? E o poema? Você sabia que o Epitáfio de Seikilos é uma composição grega, gravada em uma lápide construída há mais ou menos 2000 anos atrás? Ele é considerado uma das canções mais antigas do mundo e, curiosamente, é entendido tanto quanto música, bem como literatura.

Essa caracterização só é possível porque música e literatura estão, desde os tempos mais antigos, ligadas entre si. Se pegarmos, por exemplo, o caso dos poemas épicos de Homero ou as cantigas medievais, observamos que a relação entre uma melodia e uma letra é antiga e não exclusiva de nossos tempos modernos e contemporâneos. Na esteira dessa antiga tradição, criada pela soma de duas artes, é que se desenvolveu a muito custo a canção popular, tipo de composição que coloca em interdependência e harmonia a poesia e a música.

A proposta deste texto é apresentar para você três pontos de contato entre a música popular e a literatura. Evidentemente, as produções de canção ao redor do mundo remontam história tão distintas quanto antigas. Mas nos detenhamos no caso específico do Brasil!

Estudo

Primeiro movimento – histórias

Não cabe aqui fazer uma longa introdução à história da canção em terras brasileiras, basta saber que sua criação e desenvolvimento está intimamente ligada ao processo de modernização do país, acompanhando de perto a evolução das redes de comunicação, como o jornal, o rádio e a televisão. Mais importante que a historiografia musical em si, parece ser a convivência íntima entre letristas e poetas ao longo do século XX, alimentando reciprocamente seus campos de produção (lembro aqui o caso de destaque de Vinicius de Moraes, que migrou do poema impresso para a música popular e o poema falado) o que contribuiu para o desenvolvimento de uma história da canção comunicante com a história da literatura.

Eis uma primeira relação entre a Música Popular Brasileira e a literatura: suas histórias e produções interdisciplinares.

Musicalização do soneto São demais os perigos desta vida

Neste texto, ainda que limite a descrição histórica aos dois parágrafos anteriores, deixarei a indicação de alguns trabalhos que não podem faltar em sua biblioteca sobre a canção popular do Brasil.

Caso você procure uma abordagem mais histórico-social, os trabalhos de Franklin Martins (à direita), de Jairo Severiano (Uma história da Música Popular Brasileira, 2008) e de José Ramos Tinhorão são indispensáveis. Eles nos contam, de forma minuciosa, a trajetória e as mutações pelas quais a canção passou, até que encontrasse formas consolidadas: o samba, a canção de protesto, o sertanejo etc.

Para os fãs de análises literárias e de flertes entre teoria da literatura e música popular, temos autores como Affonso Romano de Sant’Anna, com seu livro Música popular e moderna poesia brasileira, de título autoexplicativo, e também temos Augusto de Campos, célebre poeta e crítico brasileiro, que, em seu Balanço da bossa e outras bossas (1974), tece relações muito perspicazes sobre a canção, a literatura e os movimentos de vanguarda.

Evidentemente, existem outras perspectivas tão instigantes como as mencionadas acima. É o caso da abordagem intermidiática, à qual nos apresenta a pesquisadora Solange Ribeiro, no texto Canção: letra x estrutura musical; e da semiótica da canção, que tem Luiz Tatit como seu patrono.

Cada um desses percursos nos oferece uma gama de possibilidades para interpretar a canção brasileira e, pensando que a proposta deste texto é aproximar a MPB e a literatura, eu o incluo na segunda das chaves de pesquisa que mencionei acima: uma abordagem literária da canção.

Segundo movimento – Letra de canção é poema?

Com o constante intercâmbio de leituras entre os letristas e os grandes poetas da literatura moderna no Brasil, as letras de canção passaram a ser analisadas por alguns pensadores a partir de recursos que antes eram utilizados exclusivamente para o estudo literário. Esse tipo de análise pode ou não incluir a melodia da canção, e essa opção é o primeiro passo para responder à pergunta: letra de canção é poema? E aproximar, outra vez, os dois grandes campos de estudos, musical e literário.

Se você considerar a integração entre letra e melodia, a resposta para a pergunta certamente é não. Isso se dá, porque uma nova camada de significados e linguagens entra na análise, tornando necessária a utilização de uma abordagem como a da semiótica da canção, eficaz na construção de sentidos suscitada pela integração entre o que é falado e o que é tocado. No entanto, se optarmos pelo caso contrário, separada a melodia das letras, essa pode muito bem vir a ser chamada de poema. E, abaixo, demonstrarei o porquê.

Em termos de literatura, a crítica construiu, ao longo de muitos anos de tradição e crítica, um repertório de conceitos para análise, em que estão presentes tanto elementos técnicos de composição e classificações de acordo com a estrutura (sonetos e redondilhas, por exemplo); bem como elementos de análise do sentido – os lexemas, as metáforas, as imagens – remoídos e talhados pelas incontáveis poéticas ao longo dos séculos.

A título de confirmar a validade de uma leitura das letras a partir dos procedimentos mencionados acima, vejamos como eles aparecem em um pequeno trecho, retirado da clássica canção Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Trata-se dos versos finais da canção:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

Começando por uma abordagem formal, identificamos já de saída um grupo de rimas – em -ÃO e em -IDA – e uma estrutura fixa, que se repete em todos os versos: decassílabos, construídos com a primazia de um parnasiano, com marcação nas sílabas 3-6-8-10, podendo ser caracterizado como metro martelo, típico de cantigas e cordéis:

mas – a – LU – a – fu – RAN – do – NOS – so – ZIN (co)
sal – pi – CA – va – d’es – TRE – las – NOS – so – CHÃO

Além disso, a letra presenteia o leitor/ouvinte com um enjambement – corte de um verso para o outro – belíssimo nas duas estrofes finais:

sem saber que a ventura dessa vida
é a cabrocha, o luar e o violão.

Já no que diz respeito à semântica do texto, temos a metáfora principal, que inclusive dá seu título, chão de estrelas. É uma imagem extremamente inovadora e muito rica, que, além de propor a equivalência entre o universo popular do morro e o erudito das escolas literárias – no qual uma cena própria à natureza e ao bucolismo irrompe em um barracão –, concede ainda mais força à outra personagem da canção: a mulher. Retratada pela voz principal como pomba-rola que voou, essa antagonista pisa nos astros distraidamente, gesto que inclusive alcança seu admirador, graças à polissemia da palavra “estrela”, que também é utilizada como adjetivo para artistas, sinônimo de “famoso”, “popular” etc.

Tu pisavas nos astros, distraída

A partir de uma análise que leva em conta os dois aspectos – formal e semântico – para a leitura das letras de canção, observamos como os elementos constitutivos das letras são muito similares, para não dizer idênticos, àqueles próprios à poesia impressa. Só que, além dessa aproximação por via das técnicas, temos também um similaridade de tradições e de referências, o que nos leva ao próximo tópico.

Variação

Terceiro movimento – tradição e intertextos

A ideia de apropriação das formas e imagens é comum e natural para os desdobramentos de qualquer arte e, sendo tão próximas na forma e na técnica, as correntes literárias e os ciclos de canção com toda certeza criaram pontos de comunicação.

Um artista que faz frequentemente deslocamentos da tradição literária para a musical em suas canções é Chico Buarque de Holanda. Em vários dos álbuns, e até mesmo em suas composições para o teatro, encontramos letras que são traduções de outros textos e melodias. É o caso da composição de Joe Darion e Mitch Leigh, The imposible dream, para a qual o compositor brasileiro, junto de Ruy Guerra, propõe uma tradução curiosa.

Sendo também escritor e um grande leitor dos poetas modernos, Chico Buarque, para a tradução feita com Ruy Guerra, insere nos versos finais uma imagem que pode ser lida como referência a um célebre poema de Carlos Drummond de Andrade:

E assim, seja lá como for
vai ter fim a infinita aflição
e o mundo vai ver uma flor
brotar do impossível chão.

A imagem da flor que brota do chão entra em sintonia direta com aquela que o poeta itabirano utiliza “A flor e a náusea”, de A Rosa do Povo (1945):

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Encontramos um caso parecido de referência sutil na canção “Disparada”, de Geraldo Vandré. Se trata de uma intertextualidade ou menção velada à umas das passagens mais célebres da peça Hamlet, dita pelo próprio príncipe da Dinamarca.

The time is out of joint. Oh, cursed spite,
that ever i was born to set it right

Muitos tradutores de Shakespeare encararam com dificuldade a complexidade e a dimensão que os versos do dramaturgo inglês suscitam. Na tradução de Millôr Fernandes, por exemplo, temos o seguinte:

Nosso tempo está desnorteado. Maldita a sina
Que me fez nascer um dia pra consertá-lo!

Ele consegue preservar o sentido principal da frase e a rima entre os versos passa a ser interna e toante, entre desnorteado e consertá-lo. No caso da letra de Vandré, a solução aparece de forma distinta e é particularmente encantadora a simplicidade com que ele a constrói:

E a morte, o destino, tudo,
a morte e o destino, tudo
estava fora do lugar,
eu vivo pra consertar

Desdobrado em quatro versos, a rima é rica, como no caso shakespeariano, e está nos dois últimos. Intencional ou não, há claramente uma sintonia com as palavras de Hamlet, recontextualizada e adaptada para a jornada retirante que a canção expressa.

Além dessas referências pontuais, existem ainda aquelas que são diretas, como a canção Lobo bobo, interpretada por João Gilberto em 1959; ou mesmo a Terceira margem do rio, de Milton Nascimento e Caetano Veloso, canções que se apropriam diretamente de um texto literário e lhe concedem nova roupagem.

Nos exemplos acima, observamos com nitidez o alinhamento entre a música popular e a literatura, o que se dá, nesse caso, por vias da referência e da intertextualidade. Gostaria de acrescentar, ainda, que há também a constituição de uma tradição interna na canção, na qual as referências são próprias ao seu universo:

Lembremo-nos rapidamente dos seguintes versos de Chão de estrelas:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão

Agora, vejamos outra composição, Como dois e dois, escrita por Caetano Veloso, e consagrada na voz de Roberto Carlos:

A mesma porta sem trinco
O mesmo teto,
E a mesma lua a furar
Nosso zinco

Fugindo da estrutura fixa de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, e se apoiando em versos escritos com maior liberdade métrica e rítmica, essa repetição da imagem da lua furando o teto de zinco aponta para a formação de um repertório próprio à canção popular. Esse diálogo se intensificou com o avançar do século XX e com a consolidação dos meios de distribuição e gravação das canções.

Cabe lembrar que, se de um lado temos esse movimento no qual a canção vai ao encontro da literatura, do outro a literatura vai ao encontro da canção.

Machado de Assis é um bom exemplo de literato que se interessava pelo meio popular e mais especificamente pelo ritmo e musicalidade populares. O conto Um homem célebre, objeto de estudo de José Miguel Wisnik, no livro Machado Maxixe, está entre as narrativas do autor que apresentam claramente esse interesse. Também, um escritor contemporâneo – Luiz Antônio de Assis Brasil – faz essas aproximações entre música e literatura (apesar de as letras de canção não serem o destaque em seus textos).

É preciso dizer, ainda, que, no Brasil, as duas artes já participaram abertamente de um mesmo movimento estético: o tropicalismo, que muito contribuiu para a criação de um cenário rico tanto teoricamente quanto artisticamente, e isso beneficiou ambas as artes.

Fuga

Por fim, compartilhando os métodos e lançando mão de tantas referências e minúcias, as letras de canção são um objeto instigante para a análise literária e esse olhar analítico (para ler poemas, principalmente) concede a elas uma roupagem nova, um novo olhar, que contribui para a expansão do conceito de literatura e de poesia e para uma melhor compreensão dos traços específicos que separam e aproximam as duas artes.

E que tal curtir uma playlist que conta uma história do Brasil através da música?

“Fazenda”: a canção como metonímia de Minas Gerais

O álbum Geraes, lançado em 1976, aparece em um período em que Milton Nascimento, seu autor, já era consagrado e reconhecido nacional e internacionalmente. Como em muitas das produções de “Bituca”, esse CD apresenta diversas parcerias, seja com músicos mineiros, ou com músicos de outras regiões do Brasil, além de uma parceria internacional, que aparece em Volver a los 17, de Violeta Parra, cantada por Milton e Mercedes Sosa.

As canções se dividem em seis para cada lado da obra em LP, inteirando doze canções ao todo. Essa divisão se baseia em uma separação entre os temas infância e maturidade, que aparecem destilados nas letras pertencentes a cada lado do disco. A divisão é marcada por uma música instrumental, Caldeira, faixa sete do álbum.

A partir dessa separação em temas, a ordem em que as letras são colocadas é importante para a configuração de uma narrativa. Apesar de não haver uma unidade na voz de quem narra, no disco há uma progressão, um amadurecimento, tanto com relação à idade, quanto no que diz respeito a sua visão do mundo. Além disso, todas as vozes que perpassam as canções estão fortemente ligadas às raízes interioranas, ideia que é sugerida já no título do álbum, Geraes, referência direta ao estado de Minas Gerais e ao seu passado, que é recuperado principalmente na última canção, homônima do estado, que retoma todas as outras canções do disco:

Todas as canções inutilmente
Todas as canções eternamente
Jogos de criar sorte e azar

A atmosfera criada a partir dessas imagens, objetos ou maneiras de falar, presentes nas canções e que lembram o ambiente rural, é responsável pelo caráter bucólico da obra como um todo.

https://durasletras.com/wp-content/uploads/2022/07/01-fazenda.mp3

É possível identificar todas essas características citadas acima na primeira faixa de Geraes: “Fazenda”, de Nelson Ângelo e Milton Nascimento. Nela, o sujeito da canção narra um episódio da infância, em que ele vai a uma fazenda, como incitado pelo título; sua memória é dada com tom nostálgico, relacionando a geografia, as pessoas, o tempo e os sentimentos.

A tradição literária reforça a ideia de que no campo o tempo passa mais devagar, e, na canção, esse imaginário aparecerá também. O esquecer é permitido na fazenda, onde o tempo seria o tempo da vida e não o do relógio, que é o tempo da cidade (do mercado, do trabalho):

E o esquecer
Era tão normal
Que o tempo parava

Aliada ao tempo particular expresso na obra, a paisagem campestre é construída com vividez a partir de elementos característicos do interior, como a bica, a varanda, o quintal e as árvores que aparecem na canção. Além disso, a relação familiar, e a sua menção na letra, também são marcas que ajudam a reforçar a paisagem construída e reforçam o caráter memorialístico de uma infância passada.

Por fim, a despedida do sujeito que fecha a canção corrobora o caráter nostálgico e bucólico, pois, apesar da partida e do jipe na estrada, o coração permanece lá. A letra com facilidade consegue descrever todo o ambiente e sintetizar o imaginário que será cantado nas faixas seguintes.

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