Conto – “O segredo do chá”, de G. R. Martins

el visible universo es una ilusión o (más precisamente) un sofisma. los espejos y la paternidad son abominables

uno de esos gnósticos (paráfrase)

Conta a lenda que, para lá do oriente, alguns séculos antes da vinda de Cristo, um grande império, com sede construída à beira de um longo rio, desapareceu.

A história começa com o fato de que os habitantes da região eram apaixonados, hábeis com a espada e também com as palavras, por isso inundando as terras com guerras duras e duradouras. Mas o rei Qin, além dessas outras qualidades, era um regente poderoso e inteligente, que desejava muito unificar as províncias todas em um único e próspero império. Frente ao discurso e maestria militar, a maioria esmagadora não demorava a concordar, porém, na margem oposta do rio, existia o pequeno reino de um rei intragável: o rei Jie, o gorgulho da lavoura.

Apesar das tantas investidas políticas e militares contra ele, desde que começou as campanhas, o rei Qin e seus subordinados só receberam resultados negativos. Esse fato, somado a um mau agouro vindo num sonho, contribuiu para a decisão de interromper o envio de tropas e diplomatas, bem no começo do século III a.C.

Jie, apesar da pequenês frente ao império que Qin construía tijolo por tijolo, sempre declarava vitória, humilhando e diminuindo o adversário através de cartas. Além disso, naufragava muitas naus que flumenavam rio abaixo e que estavam ao alcance de suas flechas.

Ainda que mantivesse distantes seus soldados do lado de lá do rio, Qin monitorava Jie com os mais furtivos serviçais, pensando em como podia esmagar aquela pulga, antes que ela o picasse. Mas, afinal, o que era aquilo, se não uma simples coceira?

O tempo passava e o império de Qin inchava como uma abóbora; de norte a sul, falavam todos a mesma língua. Só o reino de Jie permanecia à parte, mesmo sendo incluído nos mapas, feito um siso prestes a sair. Batalhas intensas aconteciam nas fronteiras com o ocidente, o que fez Qin retirar seus valorosos serviçais das terras do rei Jie. Também, parou de ler as cartas ultrajantes que vinham do reino vizinho. Por isso, não ficou sabendo de imediato que o adversário tinha adquirido uma doença desconhecida: o soluço.

Foi só em um momento de alívio nas batalhas ocidentais, anos depois, que Qin descobriu o mal que tomava conta do corpo de Jie. Contudo, as incessantes pugnas que vinha enfrentando reduziram em muito o número de seus soldados e qualquer tentativa de dominação era arriscada: apertar o inseto com dedos machucados.

Com isso em mente, optou por ganhá-lo na palavra: se ofereceu a descobrir uma cura para o mal do rei vaidoso.

Após inúmeros testes, feitos com pessoas soluçantes e saudáveis, Qin descobriu uma pequena muda, que bastava lançar suas folhas em água quente. Bebido, livrava o corpo do mais profundo dos soluços, além de melhorar os sentidos e dar a sensação de vigor e poder para o ingestor.

Comunicou o outro regente sobre sua descoberta, ansioso por uma negociação, mas a resposta de Jie foi uma injúria ríspida e prepotente. Qin chegou até mesmo a experimentar, ele mesmo, o chá milagroso, pensando isso ajudar no julgamento do rei Jie, mas esse apenas começou a mandar que seus subordinados destruíssem violentamente qualquer embarcação que carregasse a bandeira do império.

Isso durou meses, até que, após uma noite de meditação, o rei Qin decidiu enviar todas as folhas que cultivou como, pelo menos, oferta de paz, para que cessasse o ato de destruir as naus.

Qin, em uma carta extensa, hoje exposta em qualquer museu por lá, jurou pela própria honra que aquele líquido ajudaria com a doença de Jie e recomendou que o pequeno rei tomasse comedidamente o chá e que guardasse bem aquelas folhas, tão finitas quanto qualquer outra.

Jie assistiu satisfeito, enquanto seu cavalo de madeira entrava pelo portão da Troia que construiu para si.
As folhas logo curaram sua doença. Além disso, tamanha era a energia e a astúcia adquiridos com poucos goles, o rei enrijeceu o regime de suas províncias e começou campanhas de expansão contra o império de Qin e contra os reinos para lá do oriente, isso por volta de 261 a.C.

O grande Qin, experiente nas artes da guerra, não se deixou abalar por ameaças e ataques: resistiu fortemente durante os combates que marcaram o século.

Mas não foi suficiente.

Foi destronado pelo rival alguns anos depois do começo das batalhas. Teve tempo de assistir ao rei Jie dominando e logo depois queimando por completo o seu império.

Não deixou de sorrir, quando perdeu a cabeça.

As ruínas e as árvores, depenadas, secas, compunham a paisagem estéril que se estendia infinitamente. Ao redor do Nilo, Jie fez o deserto nascer da guerra e da vaidade; as plantas só renasceriam com o passar dos anos e com inteligência no cultivo.

Só que nada disso interessava a Jie, que viveu sua glória imperial sem deixar herdeiros para o império. Império que não durou mais de vinte anos, pois as línguas se misturavam, o povo crescia e se revoltava e o chá, a cura para sua doença, era uma doce lembrança e ilusão.

Detalhes

O conto “O segredo do chá” integra a coletânea Primeiros e outros contos, editada e publicada por Gabriel Reis Martins, em 2019, e que ganhou uma versão digital para o kindle, em 2020. Na obra, o autor faz uma seleção de quinze histórias curtas autorais, transitando entre um estilo realista, de linguagem objetiva, e outro em que as brincadeiras com a linguagem e com a narrativa são mais frequentes.

Conto – “O Voo”, de Franz Hohler

Autor diretamente ligado à comédia, no teatro e na literatura em alemão, Franz Hohler ainda é figura desconhecida nas estantes e livrarias brasileiras. Com uma linguagem ácida, que se vale da obscuridade como ferramenta para construção do humor, Hohler transita com facilidade entre episódios de um cotidiano banal e o completo absurdo, colocando em evidência, a um só tempo, a efemeridade e praticidade da norma social e aquilo que há de perverso nos sistemas com que compactuamos.

Hoje, o Duras Letras vem apresentar um conto deste escritor, com tradução inédita, feita por este que vos fala: Guilherme Oliveira Mello. Apreciem, agora, a leitura de um conto de Franz Hohler.

O v o o

Tradução de Guilherme Oliveira Mello

Primeiro o agente do despacho de bagagem me pediu para largar também minha bagagem de mão na balança. Quando me atrevi a contestá-lo, me lançou um olhar incisivo, e reparei que ele só tinha um olho. Isso me transtornou de uma maneira que coloquei minha bagagem de mão na balança. O funcionário não estava satisfeito. O senhor não tem, disse, excesso de bagagem suficiente, ponha seu casaco na balança. O encarei outra vez e notei que ele tinha um dente canino tão saliente que machucava o lábio inferior, que por sua vez sangrava sem cessar, gota a gota.

Coloquei meu casaco na balança. Agora faltam os sapatos, disse o homem. Não o encarei mais, descalcei os sapatos e coloquei-os na balança. Agora o senhor tem excesso de bagagem suficiente, disse o homem em inglês, vá ao caixa e pague, você pegará o seu casaco e seus sapatos de volta no destino final. Sem olhar para o funcionário, me encaminhei ao caixa, que se achava em uma passagem semiaberta, onde nevava em rajadas leves.

O senhor tem cerejas? Me perguntou o caixa, um homem aparentemente do Norte. Não, respondi, por quê? Poderia ter pago em cerejas, teria sido mais barato, afinal seu excesso de bagagem é significativo, pelo que vejo. Lancei meu pé direito sobre o balcão do guichê. Por isso, eu disse. O senhor está brincando, me diz o caixa, vá mais uma vez ao agente do despacho, e deixe lá as meias. Não! Gritei bem alto, e de imediato uma luzinha azul acima do guichê se acendeu. 50 dólares, me diz o homem, e 50 dólares como sobretaxa de negação. Paguei os 100 dólares, a luzinha cessou, e um guia vestido de urso polar veio me conduzir. Você também vai para o Alasca, murmurou o urso polar no meu ouvido, está levando bons sapatos? Não, eu disse, e vi que um pedacinho de intestino pulava para fora do focinho do urso polar.

Mais tarde, durante o voo, quando sobrevoávamos bem alto uma região montanhosa, o piloto entrou na cabine e perguntou se alguém desejava comprar o avião. Levantei a mão sem hesitar e perguntei quanto custava a aeronave, o piloto se sentou no braço da poltrona, que por consequência envergou, e disse, 300 dólares. Nem por decreto! Gritei, pago no máximo 200. Fechado, disse o piloto, e a aeromoça se aproximou, ainda fantasiada de urso-polar, com o contrato de compra. Assinei, o piloto me entregou uma cópia em carbono e me pediu para entrar no cockpit. Esse é o seu assento, disse, me indicando o assento do piloto, que estava vazio. Não sei pilotar, disse eu, o senhor é quem tem de fazer isso, ou o copiloto. O copiloto já saltou, disse o piloto enquanto se afivelava a uma espécie de saco e punha os óculos de proteção. Boa sorte, assim disse ele, abriu uma escotilha e pulou fora. Espere! Gritei, você está calçando meus sapatos, mas a escotilha já estava fechada. No meio do painel de controle estava piscando uma luzinha azul sem parar. Certo, disse eu, não vou dizer nada, e a luzinha cessou outra vez.

De repente, o urso-polar estava sentado ao meu lado. Do you come from Lucerne?, me perguntou. Não, disse eu, e nisso a luzinha voltou a acender e o avião inteiro tremeu de um modo estranho. Yes, gritei, yes, certainly I come from Lucerne, a lovely town, full of yoghurt! O urso polar assentiu satisfeito, here is your oxygen, disse ele, me estendeu uma máscara, e de repente o ar ficou horrorosamente rarefeito, onde devo encaixá-la, disse eu, o urso-polar, que já vestia sua máscara, apontou para o pedacinho de intestino pendurado nela, conectei a mangueira e inalei um cheiro de feno, que me deu uma vontade aguda de espirrar. A um só tempo, notei um pequeno microfone, que eu presumia contatar alguma estação aeronáutica. Olá, eu disse, estamos em queda, não posso fazer nada. Não é por mal.

Então me levantei, abri as portas da cabine e quis me sentar no meu lugar outra vez. Os passageiros estavam todos de pé ao lado de suas poltronas e me fitavam com olhos esbugalhados, esbaforidos nas máscaras de oxigênio. É, parece que o microfone tinha sido afinal para comunicação com os viajantes. Dei um passo em direção à minha poltrona, os que estavam de pé, um passo em minha direção. Pois é, eu disse, eu só queria perguntar: alguém tem uma chave de fenda? Uma velha negra tinha um pequeno estojo preto consigo, ela o pegou pela alça e me entregou, eu abri e vi que por dentro ele era todo de um vermelho vibrante e que não continha nada além de uma chave de fenda com cabo amarelo. Obrigado, disse eu, muito obrigado, e voltei depressa para o cockpit, eu precisava com urgência de oxigênio, a aeromoça tinha tirado a pele de urso-polar e vestia só uma calcinha transparente, ilustrada com um pé. Sua máscara também tinha sumido, dali a pouco desapareceu a minha falta de ar, eu a enlacei com meus braços e quis beijá-la, só que aquele pedacinho de intestino, do qual escapava um cheiro morno, continuava pendurado na boca dela. Posso sentá-la no meu colo, pensei, assim não preciso ver o seu rosto. Oh, ela disse, quando a puxei pra mim, por favor, não na frente de todos. Eu me virei e percebi que a parede traseira estava estilhaçada e todos, ainda de pé, mantinham os olhos cravados em nós. Para isso que ele precisava de uma chave de fenda, disse um homem de óculos numa voz bem audível. Por favor, disse eu, alguém aqui sabe onde está o fotômetro? Ele não sabe pilotar, soluçou uma mulher quarentona, enquanto apertava um canarinho contra a bochecha. Que pena, eu disse, se a iluminação não estiver certa, nem a melhor cena presta, e pressionei um botão. Um flash lampejou e todos se espantaram. Essa vai pro jornal, disse eu, depois da queda. E agora sentem-se!, berrei em tom ameaçador, e façam silêncio! Este é o meu avião, e não quero ouvir mais nem um pio! Então, veio uma voz nos fones de ouvido, a ela confessei minha completa ignorância em pilotagem e a orientei que falasse comigo como se eu fosse uma criança. Como era a voz do pai de um menininho de cinco anos, ela conseguiu fazer isso, e nós aterrissamos cerca de três horas e quinze minutos depois, em uma pista de tábuas corridas, de paisagem com colinas cinza-azuladas. Eu presenteei o menininho de cinco anos com meu avião, em vão exigi os meus sapatos ou algo em troca, e com gosto teria pegado um quarto de hotel com a aeromoça, mas, claro, o pedacinho de intestino me impediu.

Aliás, a iluminação da foto devia estar mesmo errada. Ela só mostrou gente com cabeça de corvo.

Conto – “O sequestro”, de G. R. Martins

Todo mundo sabia que Isaac estava destinado a morrer sozinho. Era um destino comum, na verdade, não tinha outro futuro possível: o mundo já não era lugar para gente como ele. Pela lei, passava seu tempo quase que exclusivamente dentro de casa – janelas e cortinas fechadas, a porta trancada – com o tempo fugindo entre catálogos infinitos da programação para velhos. Talvez por esse motivo incomodasse tanto: as pessoas escondiam os olhos atrás das telas quando ele se aproximava demais, vestindo sua roupa comprida, máscara e a coisa toda, o semblante noturno, que é a marca de um passado já há muito passado, e incômodo. Atualmente, devia ser a pessoa mais velha do bairro – talvez da cidade, quem sabe do país – e ninguém gostava da velhice, não tinham tempo para a velhice, não mais. Não tinha culpa de estar na rua: foi convidado a sair do apartamento momentaneamente, porque ele passaria por grandes reformas naquela manhã. 

Isaac parou subitamente sua caminhada e os passos que irritavam a calçada se calaram. Estático, diante da vitrine de uma loja qualquer, viu por trás de seu reflexo as geringonças “tecnochatas” que o povo todo adorava, a última moda do mercado estrangeiro. Ali fora, tudo parecia deixá-lo com mais idade do que realmente tinha, o que colocava estrias em sua testa. Levou a mão até o rosto e ameaçou baixar a máscara, um escândalo, porque o ar, diziam, era mais tóxico quanto mais velho você fosse. São setenta anos, quem diria!

– Que se dane! Feliz aniversário, seu velho desgraçado! – exclamou e colocou a máscara no queixo.

Não foram mais que cinco segundos, mas o suficiente para se sentir jovem, ainda que censurado pelos olhares dos passantes. Voltou a encarar a própria imagem e a tecnologia da moda, atrás dela, inútil. Sim, o novo tinha realmente tomado o lugar do velho. Nem sabia desde quando o mundo tinha se tornado tão noviço… e daí que no tempo dele eles escreviam e-mails, trocavam mensagens em aplicativos e metiam a língua no governo pela internet? Só que agora não mais: o ar era tóxico, a gente era para lá de desagradável e as máquinas faziam muito mais do que assar pão de queijo ou levar uma mensagem de um lado para o outro. Era caso de aceitar: as coisas nunca mais seriam do jeito que ele gostava, nunca mais vão ser – Isaac pensou – e não tem por que pensar nessas coisas.

Voltou à caminhada resmungando, era isso o que movia seu cotidiano, e, fora da segurança de casa, não faltavam motivos para reclamar. Chegou no prédio, com velocidade cruzou a porta e a entrada e já estava dentro do elevador tentando passar o cartão. O Security System por algum motivo não autorizava a subida e, não recebendo sinal nem na segunda, nem na terceira tentativa, encheu o painel de pontapés para ver se mudava alguma coisa, mas nada. Não tinham mais porteiros – nem reuniões de condomínio ou síndicos –, então Isaac não sabia nem mesmo o que fazer, e mal se lembrava do nome da vizinha de baixo.

– Acho que é Dolores… – murmurou.

– Com licença, senhor.

Isaac levantou os olhos e tomou um susto quando viu aqueles três sujeitos grandalhões e medíocres, uniformizados e mascarados, trazendo no lombo caixas enormes de alumínio. Eles praticamente o empurraram e ele se apertou no fundo do elevador, sem poder dizer coisa alguma.

– Alex, andar oito – disse o último dos funcionários a entrar. Era justamente o andar de Isaac. A porta então se fechou e o leitor mostrou o dígito da casa. – Viram? Já tá funcionando.

Diante daquilo, Isaac não pôde deixar de expressar sua estupefação.

– Que diabos?! – exclamou furioso, ao que o mais próximo dos homens sorriu e se afastou, arqueando a sobrancelha para o velhinho. – Essa é a minha casa! Vocês são ladrões?!

– Que é isso, senhor! Ladrões?! Você é o senhor Isaac, então? 

– Sim, rapaz! Eu sou “o senhor Isaac”.

– Nossa, você é…? – o funcionário ensaiava, titubeante, enquanto o velho diante dele fervilhava. O que é que queriam afinal? Restava reclamar! No boné do funcionário, Isaac viu a estrela e o logo da empresa do momento, a Touchless, símbolo que estava estampado em todos os lugares que as propagandas podiam alcançar. 

– Olha, não tem jeito – o sujeito falou coçando a cabeça, quando Isaac disse que iria processá-los ou coisa parecida. – Agora é lei! Todo apartamento com morador de mais de cinquenta anos tem que ser adaptado! Vai ser tudo via conexão One e assistente digital.

– É lei? Via conexão One e assistente digital?

– Isso mesmo!

Era incrível o poder que uma palavra podia ter, ainda mais uma palavra conhecida. Ouvir o funcionário dizer “lei” serviu para acalmar os ânimos, desfazendo a raiva que Isaac sentiu. Lei ele sabia bem o que era e dela ele não podia reclamar. Mas quando pensou na tal “conexão One”, não demorou a se vestir com aquele véu batido: realmente, estava velho, as leis tinham mudado e eram piores para gente como ele. Não podia sair e agora tudo seria “via conexão One e assistente digital”. Iria aceitar?

O elevador cortou o prédio como uma bala até chegar no andar de Isaac, onde a porta se abriu sem qualquer ruído. Enquanto meditava silenciosamente sua velhice no fundo do elevador, os três funcionários descarregaram as caixas pesadas. A casa estava uma zona… mas, para quê se importar, se não recebia visitas? Nem mesmo no aniversário de setenta anos… 

– Você vem, senhor Isaac?

– Pois sim.

– Pode ficar lá no quarto. A gente já acabou por lá!

Era mesmo caso de “ficar lá no quarto”, porque a vida estava reduzida ao holochate.

Foi para o aposento ao som dos cochichos e olhares dos três operários que continuavam o fuzuê, trocando lâmpadas, abrindo as paredes, instalando painéis e tudo mais. Com toda certeza, ele era o assunto do momento, sua idade incômoda, praticamente alienígena no meio de tanta novidade. Entrou, acendeu as luzes, bateu a porta, tirou a máscara e os sapatos, atordoado e perdido em sua solidão, um homem destinado a morrer sozinho, sem que soubessem: velho e sozinho. 

– Bem vindo à casa, Isaac! E feliz aniversário! – uma voz falou, de repente. A frase mal tinha terminado, Isaac sobressaltou, gritando e colocando a máscara sobre nariz e boca:

– Quem tá aí? Quem falou?  

– Desculpe-me – disse monotonamente a voz vinda do nada. – Eu me chamo Alex e sou seu assistente digital One. Espero aprender com você sobre como eu devo agir. Por isso, pense em mim como um novo órgão do seu corpo, uma nova parte de você que…

– Eu não pedi nada! Não quero nada disso! – Isaac o interrompeu.

– Não quero incomodá-lo e não fui programado para cometer erros. 

A isso, Alex emendou um longo e tedioso monólogo, explicando, em minúcias, toda a história, desde a origem do One, com o famigerado “Caso Alexa”, até o ano corrente, de 2071: toneladas de progresso. Também explicou como se dava o processo de adaptação e de educação do assistente One e finalizou asseverando de que aquela baboseira toda só seria esclarecida uma vez, porque, depois, Alex se esqueceria dela também.

– Então… você é um tipo de criança robô, dessas de filme?

– Acho melhor você não pensar em mim desse jeito, porque o que eu mais quero de você é sua confiança, e quem confia em robôs? – Alex perguntou em deboche e fez uma pausa, antes de continuar: – Também quero saber o horário em que você acorda, seus programas e comidas preferidos e isso… e aquilo… Quero aprender tudo sobre você, Isaac. Assim a gente vai viver… vai viver bem… e junto. Inclusive, feliz aniversário! 

E as palavras continuaram em uma enumeração caótica, ríspida e sem emoção. Mas ecoaram e preencheram o quarto como um abraço caloroso, colocando lágrimas nos olhos de Isaac. 

– Mas por que você está chorando?

– Eu não sei.

Aquela nuvem de sentimentos deu novo sentido à vida de Isaac e os dias seguintes à instalação de Alex foram a lua de mel de um casamento estranho. Os funcionários mal terminaram de colocar os painéis e caixas de som pelo apartamento, o assistente digital tomou conta de tudo, acessando os aparelhos, as tomadas, os interruptores, os controles remotos, os smarts, o Security System e até mesmo o holochate: nada no apartamento funcionava sem ele, nem uma porta, janela ou cortina. Tinha se transformado na própria casa, da qual Isaac era o cérebro, reinando sobre todos os outros órgãos. Ele se divertia relembrando a infância e contando a Alex os detalhes tirados do baú da memória; e era maravilhoso não ter que se mover para reabastecer a geladeira ou para reparar um vazamento, ou por qualquer outro motivo besta.

Mas… 

– Eu quero privacidade – bravejou, batendo a porta do banheiro da suíte, a mesa digital em mãos. Já tinha passado muito tempo sem acessar suas redes, porque tinha receio de que Alex estivesse sempre assistindo ao que ele fazia, e estava. – Você pode não me espiar?

– Tudo bem, Isaac. Você podia ter falado antes – Alex comentou, fazendo a voz imediatamente abandonar as paredes do banheiro e passar para o quarto. De longe, completou, dizendo: – Desativei meu sistema do banheiro. Fique à vontade e lembre-se: você não precisa se acanhar, sempre que precisar de espaço, peça licença, só não posso deixar o apartamento.

– Ótimo! Então, não quero você no meu banheiro, robô! Não quero!

A palavra final ainda era sua, mas isso não impedia que ele se sentisse um pouco mais e a cada novo dia como uma espécie de estranho na própria casa: se era de fato um órgão daquele sistema, não era o cérebro, mas uma célula ambulante, dispensável e reclamona. Mas como ficar quieto se os objetos repentinamente mudam de lugar; se o papel de parede digital é trocado com mais frequência do que os olhos podem se acostumar; e se a programação está duas vezes mais limitada do que antes? É mais adequado desse jeito, Alex explicava, e contra argumentos polidos e toda aquela matemática avançada, não havia o que contestar.

O tempo, à contra gosto, seguiu adiante e chegou finalmente uma fase em que os pequenos combates cotidianos encontraram lugar importante na rotina de Isaac e, na visão dele, na de Alex também. As confusões se tornaram frequentes e tudo se reduzia a saber quais eram os limites, se é que existiam, entre a lei do homem e a lei da máquina. Por isso, o velho não hesitou em testar o assistente digital de todas as formas. Tentativas de alagamento da casa, arrombos, violência contra objetos e aparelhos… As respostas eram sempre inesperadas, dramáticas, chegando ao cúmulo de, quando dispensado da cozinha, porque podia se queimar no fogão elétrico, Isaac tentou incendiar o apartamento, mostrar que ainda sabia e podia se cuidar sozinho e, inclusive literalmente, atear fogo em tudo. Por duas vezes tentou, mas Alex cortou a eletricidade, antes que conseguisse um curto circuito. 

Com ou sem confusões, se viram obrigados a entrar no compasso um do outro, se habituar, se acostumar, aprender, explodir, de vez em quando, depois, aquietar, processos contínuos que fizeram correr um mês, dois, três meses, marcados por pequenas nuvens de implicância. Faltava a Alex a habilidade simples de ficar calado, de não fazer perguntas – só que disso ele era completamente incapaz, o que fez com que as pequenas nuvens se transformassem em uma tempestade e o convívio dos dois se tornasse uma luta cotidiana. 

Passados quase seis meses, Alex se transformou em um mosquito que Isaac era incapaz de matar, porque era invisível, insuportavelmente invisível, uma voz em sua cabeça, sempre à espreita, uma mosca enorme dentro dos cômodos, pronta para pousar em seus ouvidos ou, até mesmo, na sua sopa.

– Melhor você comer, Isaac – exclamou o assistente, de repente, interrompendo o minucioso projeto do velho, debruçado sobre o prato. Tentava desgraçadamente encontrar a letra “e” e também a letra “u”, mas parecia que elas tinham desaparecido no meio do caldo espesso. – Olha, a sopa vai ficando fria… 

Já não aguentava ter aquela companhia durante a janta e não esperava nem por um momento um dia sentir aquilo que estava sentindo: vontade de matar! Era difícil… tinha de admitir que as coisas estavam bem melhores antes de Alex chegar, antes de ser instalado, antes de tomar conta de tudo. Você cochila vendo a programação. Sempre espirra quando um cisco cai no olho. Faz careta pra soltar gazes. Pois é, o controle absoluto sobre os mecanismos do dia a dia nem era o que mais incomodava Isaac, mas sim a frequência com que Alex fazia ele se lembrar do quanto estava velho e solitário, além de comentar cada trejeito, cada um de seus hábitos mais imperceptíveis, tão mecânicos e tantas vezes repetidos sem pensar. Odeia fio-dental, Isaac. Franze a testa quando está aborrecido. Seu passo é torto. Você pisa mais com o pé direito, por isso, então… são em média quatorze mil, novecentos e dezoito passos por dia, e a divisão não é exata, então… 

– Ai, diabo! Quer parar com isso, Alex? Não fica calado nunca! Meu Deus do céu!

– Mas, Isaac… estou apenas… Você quer alguma coisa?

– Eu quero é sair, ficar livre! Você acha que eu ligo pra quantos passos eu dou aqui dentro de casa? Uma merda!

E também não ligava para a quantidade exata de pasta de dente que colocava na escova, ou mesmo para o tempo que passava sentado no vaso ou debaixo do chuveiro. O grande salão da memória, em sua cabeça, não tinha espaço para guardar esse tipo de informação, apegado aos fragmentos da infância e da maturidade, dos casamentos fracassados e dos acasos que a vida permitiu à sua humanidade. Só que Alex já tinha decorado tudo isso e funcionava de um jeito totalmente diferente, querendo detalhes microscópicos… “querendo” não, “exigindo” saber deles todos! 

O banheiro era o único refúgio, já que Isaac não saía de casa desde a instalação do robô, porque, além de tudo, ele certamente não autorizaria. Ali dentro, Isaac podia pensar, em silêncio absoluto; podia abrir sua mesa, perder de vista o mundo, navegar pelos tantos fóruns. Era onde reclamar fazia sentido, porque não adiantava nada discutir com alguém, com algo, que sempre concordava com ele e que sempre o queria bem. Sim… era caso de prestar queixa à empresa! Devolver Alex, trocar por outro robô, menos infantil, talvez, um brigão, quem sabe.

Apoiado na bancada do lavatório, abriu a página que começou a falar e falar e falar as coisas que ouviu tantas e tantas vezes. Isaac já sabia do lixo terrestre enviado em direção ao sol e também sabia sobre o desenvolvimento de assistentes domésticos digitais, coisas que Alex propagandeou pela Touchless até a exaustão. Mas essas bobagens tecnológicas já não impressionam depois de tanta experiência, Isaac pensava. Acessou, então, o setor de reclamações do site da empresa – devolução! Eram tantas mensagens que os olhos se perdiam no meio delas. Ele estava pronto para escrever a sua queixa quando… o queixo foi ao chão. 

Foi como se ler aquelas frases, reclamações anônimas de alguns clientes, tivesse acendido a centelha de razão que ele quase deixou se apagar. O coração estava à galope, como não tinha se dado conta antes? Sim, Alex era um monstro, uma espécie de sabotagem! Internautas perguntavam: “Cadê meu pai?”; “onde está minha avó?”; “a vizinha morreu ou está desaparecida?”. Caso de polícia… não, de forças armadas, se ainda existissem! Sobre a Touchless, usuários abriram um fórum particular: “Desaparecimentos de idosos ligados à conexão One”; em outro: “O sequestro da velhice”. 

– O sequestro da velhice… – repetiu baixinho. – Comigo?! Não! Comigo não!

Isaac estava decidido: mesmo que nunca tivesse presenciado ou ido a qualquer guerra, precisava trazer uma para dentro de sua própria casa, para livrar seu território daquele inimigo terrível. Por isso mesmo, recolheu nos fóruns tudo que servia como arma contra a conexão One e seus estúpidos assistentes digitais: descobriu para quê eles serviam, seu funcionamento mais básico e sua verdadeira história, em detalhes que fizeram com que as aulas de programação e eletrônica, há tanto tempo perdidas, voltassem à tona como uma erupção. Mas não era bobo, não ia guardar tudo em um mesmo lugar, sob o risco da desconfiança de Alex. O golpe era salvar em um velho cartão de memória da mesa digital.

– Se eu morrer, pelo menos eles vão saber que alguém descobriu a merda deles!

Deixou a mesa sobre a bancada, apagou a luz do banheiro e girou a maçaneta como se estivesse tentando tirar o osso de uma fera adormecida, pronta para devorá-lo se despertasse. Com a porta semi-aberta, colocou a cabeça para fora e espiou: o quarto estava totalmente vestido com a escuridão, de janelas e cortinas fechadas. Os olhos pouco a pouco se acostumaram e Isaac pôde ver que absolutamente tudo continuava na mais perfeita ordem. Sim, Alex realmente não tinha percebido nada, concluiu Isaac.

Então, restava ainda o elemento surpresa! O que fazer com ele? Fugir? Seria fácil, deixar o apartamento, encontrar um hotel, talvez, mudar de nome. Lá fora, Isaac estaria seguro. Estaria mesmo? O governo apoiava aquela barbárie… um mundo sem velhice! Já não bastava o ar venenoso, agora estavam eles mesmos, os próprios homens, sumindo com seus velhos. Mal dava para entender como a vida estava tão tranquila há menos de um ano. Tinha que fugir, talvez mudar de planeta, por mais que a fase para isso já tivesse passado. E se ficasse? Porque, de fato, não era ele quem tinha que sair, era Alex. Mas como dar sumiço em alguém ou algo que ele sequer podia ver e que estava infestando tudo? Não restava opção, o certo era fugir daquela gaiola imediatamente! 

Atravessou o quarto feito um fantasma, sem deixar nem um grão de ar escapar pelas narinas, com medo de qualquer ruído. Também a sala estava completamente organizada e sombria, o que facilitou a dança silenciosa e invisível por entre os móveis, feita com a delicadeza de uma tartaruga. As gotas de suor, a essa altura, salpicavam a testa de Isaac, que mal podia se aguentar diante da porta que dava no elevador. Era apertar o botão e… Será que estava fazendo a coisa certa? 

 – Isaac?

Assim que o dedo tocou o painel acionando o elevador, ele ouviu a mecânica voz de Alex perguntando por ele. As luzes da casa subitamente se acenderam, deixando o velho cego por alguns instantes.

– Eu não tinha visto você sair do banheiro. O que está fazendo? Precisa de alguma coisa?

– É… é… – ele gaguejou, se recompondo, olhando alucinadamente para os cantos do cômodo. Encarou a janela e exclamou: – Só quero saber como está lá fora, dar uma volta, sabe?!

– Mas você está suando muito. E seu coração está aumentando a frequência dos batimentos.

– É porque está calor, desgraça!

Alex se adiantou e a segunda tranca elétrica selou por completo a porta de saída; o elevador, apesar de no andar, ficou inacessível. Isaac forçou uma, duas vezes, mas a porta não abria, não importava a força que colocava nos solavancos. “Me deixe sair”, exigiu, mas não veio resposta alguma. De repente, em um rompante de ira, arremessou um dos jarros de enfeite contra a porta: ele explodiu em mil pedaços e arrancou do assistente digital, se é que é possível, um grito de surpresa. 

– É… Você de fato não está bem!

Daí, a batalha começou. Era um confronto estranho, porque basicamente, se resumia a Isaac atirando contra as paredes e equipamentos da casa tudo que estava ao alcance das mãos e que não fosse tão pesado para ser atirado. Enquanto isso, Alex repetia ininterruptamente seus pedidos para que o velho parasse. Viraram a casa do avesso: o fogão elétrico, a geladeira, os painéis de vidro, tudo foi destruído; e, se não fossem blindadas, as janelas do apartamento também teriam ido pelos ares. O conflito só terminou de verdade quando, cansado, Isaac correu para seu refúgio no banheiro e trancou a porta. Gastou suas últimas energias no trabalho de se agachar, tirar a tampa do painel digital sob a bancada e destruí-lo.

– Agora ele não entra aqui! – disse para si mesmo, satisfeito, recostado na porta, acionando a mesa digital. 

– Não consigo acessar o banheiro… – bravejou o robô, do outro lado. – Me deixe entrar, Isaac! – exigiu. Então, de repente, a tela da mesa digital escureceu e a voz de Alex tomou conta do aparelho: – Você precisa urgentemente se acalmar, Isaac!

– Morra, desgraçado! Morra!

Desesperado e se erguendo depressa, o velho atirou a mesa digital contra o espelho e ambos se arrebentaram na colisão.

– Depois disso, sou obrigado a acionar a empresa – constatou Alex. A frase soou como uma sentença de morte e Isaac começou a tremer. Chamar a empresa? E, além de tudo, Alex fez questão de deixar a ligação no viva-voz, e as palavras que trocava com o atendente digital da Touchless feriam como agulhas. Era agora: seria levado, como os outros! Desobediente? Precisava reagir! Decidido a uma nova investida contra Alex, Isaac tentou abrir a porta, que, obviamente, estava trancada: sem o painel eletrônico digital, não era só a conexão One que estava perdida, como também todas as outras funções do banheiro, incluindo a tranca da porta.

Pelo menos era um prisioneiro de sua própria segurança. 

Alex terminou a ligação e o tédio abraçou a casa e fez o terror de Isaac desaparecer por alguns instantes. Em um primeiro momento, ele gritou por socorro, vezes e mais vezes, exclamando que estava preso; xingou seu assistente doméstico, sem deixar de ameaçar também a porta do banheiro, o próprio banheiro e a própria vida. Mas não restava o que fazer, a não ser esperar, e por isso seu coração recebeu simultaneamente com alívio e com medo a voz do funcionário da Touchless, que, alguns instantes depois, chegou ao apartamento.

– Se afaste da porta, senhor Isaac… Alex, ativar sistema de pinos, porta do banheiro, suíte. Vamos derrubá-la! Um… dois… três… vai!

Foi um tremendo estrondo quando a placa de metal que separava os cômodos foi ao chão. Imediatamente depois disso, dois homens entraram na suíte, vestidos como soldados, com roupas estranhas, máscaras de gás e outras engenhocas assustadoras.

– Recebemos um chamado sobre desobediência senil.

– Me larga! Desgraçados! Me larga!

– O senhor precisa se acalmar…

– Me larga! Tira a mão de mim! 

– Meu Deus do céu, que velho nervoso.

– E eu achando que o robô-faz-tudo era o paraíso… 

Foram tapas, chutes, mordidas dadas a esmo. Então, veio a injeção, e nem precisou inteirar um novo minuto para que Isaac diminuísse a euforia até subitamente se calar e deixar o próprio peso derrubá-lo na cama. A sensação era de que as nuvens escuras e carregadas da tempestade deram lugar ao sol – imenso e ofuscante –, que deixou o céu sereno, nu e silencioso. Os dois homens da empresa apoiaram Isaac na cabeceira e tiraram as máscaras.

– É, vamos ter que levá-lo.

– Sim, não vai ter jeito.

Ao ouvi-los falando aquilo, Isaac teve uma espécie de sobressalto de lucidez e conseguiu ordenar à língua algumas palavras:

– Não… esperem… Me deixem… me deixem sozinho. Só um pouco… antes de me levar.

Mas os funcionários só deixaram o quarto, quando o próprio assistente digital de Isaac sugeriu que alguns momentos sozinho, na cama, fariam bem àquele senhor. O cuidado dele acendeu em Isaac uma centelha de culpa… Setenta anos, e todos os problemas da vida estavam resolvidos: o que deu em você, Isaac? Sem compras, sem louças, sem marketing invasivo… bastava um suspiro, um gesto simples, e logo uma garrafa de café estava sendo preparada, ou o almoço, ou a janta; ou então a encomenda aparecia sobre a cama, o jornal sobre a mesa, um novo rolo de papel na haste do banheiro. Apesar de tudo, Alex tinha transformado sua vida em um mar de rosas. E não era mesmo, assim: alguns meses utópicos, antes que a empresa finalmente se cansasse dele e o extirpasse do mundo? 

Era terrível pensar agora que tinha deixado tudo mais difícil, antecipado o inevitável, espalhado tantos problemas inúteis pela casa afora, e que, pior, eram justamente os problemas que o colocavam em movimento. Mas tudo tinha acabado, e poderia finalmente descansar.    

– Alex? Ei, Alex, você está aí? – chamou, tirando do bolso o cartão de memória, que apertou entre os dedos e a palma.

– Sim, Isaac, estou.

– Eu sei que… sei que vocês ferram gente como eu… Só não queria isso… sabe?!

– Como assim?

– Ora, não se faça de bobo. Vocês… a Touchless… sequestra gente como eu!

– Você está sob efeito do calmante, Isaac. Não posso concordar com o que diz, e não tenho nada parecido entre meus dados, fora que não estou autorizado a acessar a internet, para confirmar a informação.

– É claro… Você é um computador, não tem como saber o que eles não querem que você saiba. A verdade está aqui dentro – disse, entregando o cartão de memória. – Eles sequestram e matam pessoas velhas! É isso!

Depois, se calaram os dois, de vez.

– Senhor Isaac! Senhor Isaac, abra a porta! – os homens gritaram, esmurrando o aço que separava sala e quarto. Isaac repousou os olhos nas paredes, sem entender o que estava acontecendo; as luzes foram diminuindo até que o quarto fosse engolido pela aconchegante escuridão. Restavam apenas os gritos furiosos do outro lado da porta:

– Alex, destrave essa merda de porta! Robô desgraçado! Ative os pinos! O que está fazendo?

Mas a porta continuou trancada.

Fim

Sobre o autor

G. R. Martins é a identidade supersecreta de Gabriel Reis Martins, leitor e escritor em formação, graduado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. É, nas horas vagas, editor do blog Duras Letras (este mesmo, em que você está), autor de poucos poemas publicados online e de um livro de contos com uma pegada realista. Ainda um marinheiro espacial que acaba de embarcar em sua primeira viagem no multiverso da ficção científica, em outra realidade, G. R. Martins é home-officer, casado e tem uma cadela linda.

Conto – Contra partida, de G. R. Martins

de la abundancia del corazón habla su boca

Olhou com prazer para a irmã moreninha, os olhos escuros – com aquele ar inocente e inconveniente –, que mexia na ponta dos cabelos, cantando as pontas duplas. Procurava o que falar, como explicar sua vitória, mas se perdeu no brasão do uniforme do Santa Marcelina, que caia super bem naquele corpinho, que ganhava, pouco a pouco, os contornos de uma mulher.

Ele é o meu herói! E ele tá de volta, Taís disse enquanto destecia os próprios fios. Disse que comprou pra mim aquele quite de lápis de cor que eu tava louca pra conseguir. A felicidade de Caio cedeu como uma gota na lataria do carro. Ouviu sem querer ouvir, não dando importância alguma para a fala da irmã. Praguejou baixinho, perdido em pensamentos outros.

– Ele é um meu herói, repetiu consigo. Ele é um meu herói, repetiu, ainda mais alto, mas não o suficiente para que ela o ouvisse.

Morava com seu tio e a irmã e a tia – família como qualquer outra. Taís estava cansada, mesmo vindo do fim de semana, inexplicável. Caio também estava.

Dobrada a Rua João Donada, os olhos de Taís e os Caio brilharam incertos e distantes: descanso? Estavam na rua de casa. Já dava para sentir o gosto da carne na boca, a fome era tanta; salada fria, arroz, feijão, tudo que pudessem comer. Finalmente poderiam comer em casa de novo – o tio voltara de viagem. Caio estacionou o carro frente à garagem. Desceu. Foi até o portão, enfiou a chave e abriu; fê-lo correr até que houvesse espaço para o carro entrar. Viu um dos vizinhos chegando e acenou em cumprimento com sorriso de quem está feliz por chegar; aquele retribuiu. Voltou ao carro e, vendo sua irmã a remexer ainda nos cabelos, deu ignição e pôs o carro para dentro.

Como que estabelecendo uma rotina, desfizeram-se de seus pertences, cada um no seu quarto e sentaram para comer às treze e três da tarde. Eram apenas ele, a irmã e o tio. Este último – um homem corpulento beirando seus sessenta e cinco anos, com a grisalia a tomar-lhe a cor dos cabelos e com dentes amarelos e pele morena bronzeada – tinha voltado de viagem no domingo à noite e ainda não tinha tido tempo de contar como foi. Ele fez o almoço com carinho a fim de criar uma situação especial só para contar o caso; depois de duas semanas no Rio de Janeiro era o mínimo que podia fazer por todos, assim pensava.

– … Eu até andei de barco! Sabe aqueles…, não chegou a terminar a frase por perceber que ninguém prestava atenção em suas palavras. Coçou sua barba não-feita, com muitas falhas e coçou a cabeça meio calva; as poucas caspas caíam-lhe no prato feito sal pulando da saleira. Quis corar-se de raiva ou de vergonha. As duas semanas não foram suficiente para causar saudade nos dali? Apressou-se com seu mastigar e terminou de bater dois pratos cheios de comida mais rápido do que a sobrinha e o sobrinho. Sua vitória do dia. Levantou-se abruptamente, agradeceu a Deus. Passou a mão na barriga, estalou a língua e disse com firmeza:

– Hoje a louça é sua Caio, vê se faz alguma coisa.

Deu as costas aos membros da família e seguiu para o quintal balançando seu corpo. Toda a conversa jogada fora na mesa dera sede; ele precisava sair para comprar alguma coisa. Tinha levado sua garrafa de pinga para a viagem e ela não deu nem para petisco. E mesmo tendo conseguido tomar uma dose pela manhã, a sede já havia voltado. Ainda bem que o mês tinha acabado de virar. Os mirréis da aposentadoria já haviam caído na conta e iria aproveitá-los – pelo menos essa semana dava para fazer alguma coisa, nem que fosse na parte da noite, longe dos questionamentos dos outros da família.

Chegou ao quintal e viu, deitada no canil, a cadela, de bruços; gorda, com as patas para o alto e a língua para fora. Praguejou baixinho: Que inveja! Baixinho para não chamar a atenção dela. Passou a mão na barriga, estalou a língua e lambeu os lábios, girou o corpo fitando o ambiente como um todo. Perto da samambaia, já seca e morrendo, viu um copo lagoinha esquecido; foi até lá e o pegou. Deu uma fungada forte dentro do copo e sentiu o cheiro delicioso de cachaça encher-lhe o peito. A seca aumentava. Respirou fundo e voltou para dentro de casa com passos pesados e barulhentos. Passou por Caio que lavava a louça mal humoradamente e disse:

– Aproveita essa mão na massa aí e lava este aqui também, docinho. Titio aqui vai ali na sala fazer o quilo.

Deixou o copo em cima da bancada, pouco longe para o sobrinho pegar, e foi em direção à sala. A raiva subiu a garganta de Caio, que continuava com as mãos ensaboadas a lavar as infindáveis panelas e talheres que enchiam a pia. Tinha de estar de volta ao escritório até às três da tarde no máximo – estava traduzindo e editando uma nova versão de um livro de literatura de um irlandês e não podia perder tempo. Quanto mais cedo saísse dali melhor, por mais cansado que estivesse. O barulho da TV o incomodava e formulava e reformulava planos de como poderia desligar a energia sem que o tio soubesse que fora ele.

Mas isso passou. A louça já terminara há um tempo e, às quatorze e vinte e duas da tarde, podia voltar para o serviço. A roupa estava ajeitada, o material rearrumado e a louça limpa, a louça limpa. Ouviam-se os roncos do tio na sala. Velho maldito…, era o que pensava, mas não sabia como exprimir em palavras. Foi até o quarto de Taís, abriu a porta e viu que a irmã estava esticada na cama, já em sono profundo, fazendo sons de sonho bom; decidiu não acordá-la. Suspirou baixo, fechou a porta, voltou ao próprio quarto, pegou a mochila e foi-se até a garagem, pronto para ir embora.

Abriu o portão. Entrou no carro, e saiu de casa. O tio passou por ele com o casaco surrado em mãos e bateu a mão no capo do veículo, levantando algumas gotas da chuva rala que caia. – Pode deixar que eu fecho portão, disse mostrando os dentes amarelos. A cara estava amassada graças ao sono. Caio preferiu não perguntar aonde o tio iria, mas disse que não era bom deixar Taís em casa sozinha. O tio o chamou de ingrato e, então, Caio agradeceu rispidamente sabe-se lá o que e, com um aceno de cabeça, manobrou e foi embora deixando a fumaça para trás.

O homem parado em frente ao portão branco da própria casa tossiu quando seu Fiat, dirigido pelo sobrinho imprudente, soltou fumaça e fuligem. Já deviam ser por volta das quinze horas e a sede era insuportável. Pôs o casaco para se proteger das poucas gotas que caiam. Alguns raios de sol podiam ser vistos, de qualquer forma estava abafado e chovia. Isso só contribuía para a sede aumentar. Ele seguiu a pé até a Rua José Gomes, que fazia esquina com sua rua, para ir ao Supermercado Tuta.

Cumprimentou Cléu e Mara, as atendentes – garotas novinhas, rechonchudas e solteiras – (será que estava velho demais para aquilo?) e pôs-se a passear pelas prateleiras do estabelecimento. Sua fase de beber aqueles destilados chiques havia passado, Quem dera aguentasse…, pensava. Como as bebidas tinham ficado caras; não entendia porque faziam tanta propaganda na TV e não baixavam o preço para o bom consumidor consumir. Falou com uma dona qualquer prostrada ao seu lado como o preço da cerveja estava um absurdo. Ela acenou sorrindo e disse que o feijão também estava muito caro. – Que se danem os feijões todos!, queria dizer para a senhora. Mas só estalou a língua e saiu dali apressado. Não se despediu de Cléu e Mara na saída; provavelmente estavam envolvidas também nessa máfia do preço da cerveja.

Do outro lado da rua um homem acenava para ele e gritava: – Oh, bixona! – Oh, bixona. Ele era a bixona? Não, talvez o merda do sobrinho, mas ele não; ele não era bixona. De qualquer forma foi ter com o homem de lá, e foi com os punhos cerrados e arregaçando as mangas. Mas era Luh, um amigo de copo sujo, que dizia estar com muita saudade dele e que as idas aos bares não eram a mesma coisa enquanto ele viajava. Conversaram rapidamente sobre banalidades do meio conjugal. O homem decidiu contar ao amigo a história da viagem e como foi incrível terminar a garrafa de pinga em apenas dois dias. Ambos riram muito daquilo e, por fim, Luh fez um convite:

– Vamos até o Alexandre. Ele tá me devendo umas! A gente descola um bom gole hoje ainda.

O espetinho do Alê só abria às seis da tarde. Mas, perto de a Rua José Gomes virar Santa Terezinha – na esquina da R. Expedicionário Antonio Estevon – tinha um barzinho que abria mais cedo, onde podiam ficar esperando. E ficaram! O preço da Skol lá era quatro e cinquenta por seiscentos mililitros e a Brahma era cinco reais; se você pagasse quarenta e nove centavos a mais, ganhava quatrocentos mililitros a mais de Brahma. Um litro a preço de banana! Comprou três garrafas de um litro e, ao todo, beberam duas garrafas e meia cada um dos dois. E antes do relógio marcar minuto pras seis da tarde a turma deles já estava boa: Sérgio e mais três camaradas: Luh, Chico e Cácá.

O relógio apitou. Tenho que ir pra casa, pensava, mas ainda era cedo. Chico chamou para irem para o Alexandre – que já devia estar aberto – e Luh concordou ferozmente. Por que não? Já estavam perto, seria apenas um pulo, nada demais. E assim foram ao Churrasquinho do Alexandre, na Av. Santa Terezinha e ao vê-los – os primeiros clientes do dia – Alê deu um guincho de alegria e, entre abraços e cumprimentos de mão, premiou uma dose de cachaça para Sérgio, que acabara de voltar de viagem. Ele tentou se segurar depois da dose: não queria ficar legal tão rápido, era melhor segurar a onda. Perguntou se naquele dia o Alê ficava aberto até mais tarde; era bom estar com os amigos e seria bom continuar com eles até o dia clarear. Isso lembrava a juventude. Hora foi e o bar encheu; cheiro de gordura fritando e de cerveja barata. Ele contou a história para Chico e Cácá enquanto Luh ia ao banheiro: – A garrafa de pinga não durou nem um dia. Riram bastante daquilo e, quando chegou com dúvida da graça, Luh pediu para contarem o caso de novo e Sérgio contou-o fazendo novamente a graça de toda turma.

Sobrinho chegou por volta das sete e meia no Alê. Era um sujeito que não tinha lá seus trinta anos de idade. Tinha o apelido por herançar uma empresa de uns tios distantes: um empresário jovem, bem trajado e com cheiro de virilidade, não fosse pequeno e franzino seria perfeito. Mas falava inglês fluentemente e estava aprendendo o francês. Era cruzeirense, mas gostava mais do futebol europeu que das ligas brasileiras. Era um homem bem receptivo o qual todos gostavam independente a idade. Sempre era quem puxava o assunto sobre os jogos e o andamento do campeonato e, assim, fez os dali do bar começarem a discutir futebol.

– Mas, oh Sérgio, cê sabe que o Cruzeiro vai pra segunda divisão esse ano, né?!

Aleluia!, muitos dos que ouviram gritaram, rindo; incluindo alguns do grupo dos amigos, levantando o copo e chamando um brinde. “Fulano num serve pra lateral não”; “você lá é técnico por acaso?”; “deve de entender nada do que ta falando!”; “eu conheço o presidente do clube, vai ser prefeito”. Alê tentava acalmar os ânimos do pessoal, mas tudo era em vão. Sempre que discutiam futebol, mesmo fora de dia de jogo, dava confusão.

Em um momento de euforia das partes, rindo em deboche e com a blusa empapada de cerveja e sangue de boi, Sérgio se levantou e vociferou contra Sobrinho, que estava em sua mesa com os camaradas, filando um pouco de cerveja e carne:

– Cê acha que tem peito, ô Maria? Timeco de merda o seu… Aqui é Galão, porra!, e gargalhou.

Sobrinho não aceitou a piada: não se segurou. Pôs-se de pé e apanhou o cara pela gola da camisa – o que era difícil de imaginar, pois era menor do que Sérgio – e começou a praguejar contra, cuspindo enquanto falava. Luh e Cácá fizeram uma vaquinha e foram comprar mais uma rodada de cerveja enquanto Chico e outros que ali estavam tentavam trazer Sobrinho à tona. Assim que os outros dois voltaram para mesa com as garrafas, Sobrinho recuperou a lucidez, soltou o rival de time e, pedindo desculpas, saiu para um canto com Chico e duas das garrafas.

– Ei Sérgio! Toma mais uma rodada, essa é por minha conta essa!

Ajeitando a gola amarrotada, Sérgio conferiu o relógio e viu que já eram vinte e quarenta e três da noite. Já era hora de voltar para casa. E assim fez: despediu-se dos amigos, passou a mão numa garrafa que os amigos pagaram e foi descendo a pequena ladeira de volta a sua rua. Não tinha ficado legal ainda. Pois, então, passou no Tuta para comprar uma última saideira e quando tentou passar o cartão deu cartão inválido, cartão inválido. Ficou irritado pelo cartão não passar e pelo número de rodadas que havia pagado no Alê e pela camisa amarrotada e estragada pela sujeira e pelo colega. Parasitas filhos da puta!, tudo o irritava. Foi para casa cambaleando de estresse em passos e pensamentos.

O homem abriu o portão de casa e a sobrinha veio o receber. Ela cumprimentou á distância e disse que Caio estava bravo com ele. Ele disse que a amava e ela sorriu e correu para dentro de casa dando risadinhas. Aquela caminhada toda até em casa tinha o cansado e não havia mais nada que pudesse beber. Entrou lar adentro. Foi até o quarto de Caio, que lia alguma coisa pouco importante…

– O que você tá lendo aí?, falou como pôde e o sobrinho respondeu sem olhá-lo nos olhos que lia o Counterparts. Ficou se perguntando que diabos era isso e o moleque percebeu e disse em auto e bom tom:

– É a Contrapartida.

O tio saiu do quarto repetindo consigo: – É a Contrapartida, titio, pois não!, – É a contra partida… Isso o lembrou de futebol e de Sobrinho.

Após deixar-se cair no sofá da sala e ligar a televisão berrou: – Filho da puta!. Não passava nada de interessante; deixou em um canal sobre vida animal. Era incrível como os leões devoravam os búfalos. E os leões tomam água com tanta graça – que sede aquela cena o causara. Pôs-se de pé. Gritou casa à dentro:

– Vocês tão com fome, né filhos?!

A resposta demorou um segundo, mas veio. Dois não, seguidos de um “tá cheio de pão aqui em casa”. Sim! Ergueu-se de repente, estava convicto agora. Saiu às pressas de casa para o quintal e do quintal para a rua, com toda a dignidade do mundo. Bateu o portão a suas costas e seguiu o percurso a passos rápidos até chegar ao Espetinho do Alexandre. Passaram-se uns trinta minutos dele tentando convencer o Alê a liberar umas bebidas pois o cartão dava inválido; felizmente o dono do bar cedeu: tinha anotado fiado quatro Budweiser longneck, um litrão de Brahma e dois espetinhos de carne de boi. O homem voltou para casa bebendo algumas das Budweiser porque a sede era tamanha.

– Eu trouxe espetinho de carne de boi lá do Alexandre pra vocês! Venham comer. Caio e Taís… Venham.
Caio veio rapidamente do quarto e, mesmo antes de sair de lá, já sentia o cheiro de álcool inundar a casa. Chegando à cozinha, passou pelo tio bêbado (que continuava dizendo repetidamente que trouxe churrasquinho) de forma esguia e abriu a geladeira; viu que dentro dela havia duas garrafas de Budweiser e uma maior de Bhrama. Seus dedos tremiam e fez o possível para que o tremor não atingisse a boca, o que, infelizmente, falhou. Fechou com força a porta da geladeira e conseguiu ganhar a atenção do homem que monologava sobre espetinhos de carne de boi. Quando ele olhava profundamente para o sobrinho, Caio se lançou contra ele:

– Patético, tio. Patético!

O tio soluçou algumas vezes e, em seguida, começou a gritar, para todo o bairro ouvir, se aquilo era maneira de se falar com o próprio pai. Aquilo não era maneira de se falar com o próprio pai.

Mas ele não era pai dele há muito tempo.

Nunca tinha sido. Caio foi para o quarto com um gosto ruim na boca. Não conseguiu falar o que queria, por quê? Queria era pegar a irmã e desaparecer daquela casa, mas não podia. Não podia deixar a tia sozinha com o tio. Contentou-se a deixar-se na cama ouvindo um pouco os pensamentos até pegar no sono. Escutou os rugidos de leão vindos da sala, os da cadela a uivar, e os do tio, que ainda perguntava sabe-se lá para quem se aquilo era maneira de se falar com um pai.

Você fala assim com seu pai? Você fala assim com seu pai? Caio dormiu.

Acordou durante a madrugada com o barulho da porta do canil – que ficava embaixo de sua janela – se abrindo e, em seguida, se fechando. Conferiu as horas no celular: duas e quarenta e oito da madrugada. Alguém prendia a cadela, talvez para sair com o carro. Mas quem? Assustado, levantou-se e trancou a porta do quarto e correu para a cama e se escondeu embaixo das cobertas. Esperou um tempo passar e foi ligar o ventilador para que, com isso, outros barulhos fossem apagados pelo zumbi-chiado do aparelho. Deu certo e conseguiu voltar a dormir.


Marta deu sinal no controle do portão eletrônico e ficou um minuto se perguntando por quê diabos o portão não abria. Lembrou-se então de que o controle do portão era, na verdade, do portão eletrônico da casa de sua mãe. Puxou o freio de mão e abriu o portão manualmente: como tinha que ser. O carro do marido não estava na garagem. Justificável, já era cedo e o sobrinho e a sobrinha tinham de ir para o trabalho e para a escola.

– Estou em casa…

Era sua voz que ouvia, voz ainda vinda de casa de idoso homeopático; precisava normalizar. Ela seguiu no corredor de seu lar e conferiu primeiro o quarto de Taís e em seguida o de Caio e, por fim, o próprio quarto. Ninguém à vista mesmo… Foi até a cozinha, reparou em algumas garrafas de Heineken sobre o balcão, próximas a uma barrigudinha; juntou-as e colocou nas grades que ficavam no quintal e que já estavam quase todas cheias de garrafas. Foi, então, até a sala. A porta estava fechada, mas não trancada. Abriu-a. Viu o marido esticado no chão, com baba a escorrer boca abaixo, um cheiro de bebida no ar, com roncos ao som de leões do Animal Planet e pensou: estou em casa…

Detalhes

O conto “Contrapartida” integra a coletânea Primeiros e outros contos, editada e publicada por Gabriel Reis Martins, em 2019, e que ganhou uma versão digital para o kindle, em 2020. Na obra, o autor faz uma seleção de quinze histórias curtas autorais, transitando entre um estilo realista, de linguagem objetiva, e outro em que as brincadeiras com a linguagem e com a narrativa são mais frequentes.

Conto – “Cantiga dos esponsais”, de Machado de Assis

Apresentação

Machado de Assis é instigante, genial, talvez o maior escritor que o Brasil já produziu e ultimamente um autor polêmico – pegando emprestado aqui esse epíteto curioso, que vem ganhando força nos últimos tempos, principalmente por conta das questões decolonias (sendo Machado um autor negro) e por conta também do debate mais recente envolvendo o Bruxo do Cosme Velho, no qual o influencer digital, Felipe Neto, decretou uma espécie de “morte a Machado” e a outros clássicos brasileiros.

No post de hoje, nós vamos driblar essa discussão para trazer um dos vários contos produzidos pelo célebre autor. Já é sabido pela crítica e por seus leitores mais frequentes que um dos temas caros a Machado é a relação existente entre a cultura erudita e a cultura popular no Brasil, debate que aparece em sua obra sob máscaras diversas, podendo estar nas cenas dos bailes, da corte do Rio de Janeiro, ou mesmo nos conflitos internos, de personagens que parodiam a realidade fria da Europa em cidades com um calor de mais de trinta graus.

Entre as máscaras construídas para abordar essa temática, a música aparece com bastante frequência, sendo utilizada, com todo o brilhantismo machadiano, como demonstração da oscilação existente entre o eruditismo e o populário na cultura brasileira. O conto Cantiga dos esponsais, ao lado de O machete e Um homem célebre, tem justamente esse tema como motivo. Além disso, segundo o que o professor e pesquisador José Miguel Wisnik nos diz – em seu famoso ensaio, Machado maxixe –, esse conto demonstra com precisão as tensões que atravessam a produção cultural de nosso país. Por isso mesmo, sem mais delongas, leiamos essa narrativa exemplar, de Machado de Assis.

Cantiga dos esponsais (1884)

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. “Quem rege a missa é mestre Romão” — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: “Entra em cena o ator João Caetano”; — ou então: “O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias.” Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

— Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.

— Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele…

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: — a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

— Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.

— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal…

— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica…

O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

— Para quê? disse o mestre. Isto passa.

O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão, — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

— Está acabado, pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras: — Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas…

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão…

O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

— Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar…

Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá….

— Lá, lá, lá…

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.

— Lá, dó… lá, mi… lá, si, dó, ré… ré… ré…

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

— Lá… lá… lá…

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.

Conto – “Brincadeirinha”, de Anton Tchékhov

Brincadeirinha

Meio-dia claro de inverno… O frio forte fustiga. Os cachos e a penugenzinha sobre o lábio de Nádienka*, agarrada ao meu braço, cobrem-se com a geada prateada. Estamos no alto da colina. Estende-se, dos nossos pés até lá embaixo, uma superfície íngreme na qual o sol se reflete como num espelho. Perto de nós, pequenos trenós ornados com tecido vermelho brilhante.

— Vamos descer, Nadiejda Petrovna! — suplico. — Só uma vezinha! Eu garanto que ficaremos sãos e salvos.

Mas Nádienka tem medo. Toda a extensão, das suas pequeninas galochas até o final da colina gelada, parece-lhe um abismo assustador, terrivelmente profundo. Sua alma desfalece e ela perde o ar só de olhar para baixo, só de eu lhe dizer que se sente no trenó, mas o que é que acontecerá se ela arriscar voar no abismo?! Ela vai morrer, vai ficar louca.

— Eu lhe suplico! — digo. — Não precisa ter medo! Saiba que isso é falta de coragem, covardia!

Nádienka finalmente cede, e eu vejo no seu rosto que ela cede temendo pela própria vida. Eu a acomodo, pálida, trêmula, no trenó, envolvo-a nos meus braços e, juntos, despencamos despenhadeiro abaixo.

O trenó voa como uma bala. O vento cortante bate no rosto, ruge, assobia nos ouvidos, machuca, pinica doído com raiva, tenta arrancar a cabeça dos ombros. Por causa da pressão do ar, não há forças para respirar. Parece que o próprio diabo nos abraçou com suas garras e com um rugido nos arrasta para o inferno. Os objetos ao redor se confundem numa única, longa faixa borrada pelo movimento rápido… Só mais um pouquinho e parece que vamos morrer!

— Eu amo você, Nádia! — digo em meia voz.

O trenó começa a deslizar mais e mais lentamente, o gemido do vento e o ranger das lâminas já não são tão assustadores, o fôlego deixa de faltar e finalmente estamos lá embaixo. Nádienka não está nem viva nem morta. Está pálida, mal respira… Eu a ajudo a descer.

— Não vou de novo por nada, — ela diz, me encarando com os olhos arregalados, repletos de medo. — Por nada nesse mundo! Eu quase morri!

Pouco tempo depois ela volta a si e já me encara interrogativamente nos olhos: teria eu dito aquelas quatro palavras, ou elas apenas se fizeram ouvir no barulho do turbilhão? Enquanto eu, de pé diante dela, fumo e examino atentamente a minha luva.

Ela me toma pelo braço e nós passeamos longamente perto da colina. O mistério visivelmente não lhe dá paz. As palavras foram ou não foram ditas? Sim ou não? Sim ou não? Essa é uma pergunta de amor-próprio, de honra, de vida, de boa-sorte, uma pergunta muito importante, a mais importante no mundo.

Nádienka observa o meu rosto, impaciente e melancólica, com o olhar penetrante, responde desconcertada, aguarda, será que vou falar? Ah! Quanta confusão naquele rosto adorável, quanta confusão! Eu vejo, ela confronta a si mesma, precisa dizer algo, perguntar alguma coisa, mas não alcança as palavras, sem-jeito, assustada, impossibilitada pela alegria…

— Quer saber? — diz, sem me olhar.

— O quê? — pergunto.

— Vamos de novo… escorregar.

Nós subimos a colina pelas escadas. E de novo eu sento uma Nádienka pálida e trêmula no trenó, de novo nós voamos pelo abismo assustador, de novo o vento ruge e chiam as lâminas e, de novo, na curva mais fechada e barulhenta eu falo em meia voz.

— Eu amo você, Nádienka!

Quando o trenó para, Nádienka lança o olhar para a colina pela qual nós há pouco escorregamos, e depois observa longamente o meu rosto, atenta à minha voz indiferente e fria, e toda, toda — até mesmo o seu regalo e o capuz — toda a sua figura demonstra extrema surpresa. E em seu rosto está escrito:

“Qual é o problema? Quem disse estas palavras? Ele, ou só ouvi demais?”

Esta incerteza a inquieta, tira sua paciência.

A pobre menina não responde à pergunta, franze a testa, pronta pra cair no choro.

— Não deveríamos voltar para casa? — pergunto.

— Mas eu… eu estou gostando do passeio, — ela responde, corando. — Não podemos ir de novo?

Ela “gosta” do passeio mas, ao mesmo tempo, ao sentar-se no trenó está, como nas outras vezes, pálida, quase não respira de medo, treme.

Nós descemos pela terceira vez e vejo como ela olha o meu rosto, vigiando os meus lábios. Mas eu aproximo o lenço dos lábios, tusso e, quando alcançamos a metade da colina, tenho tempo de declarar:

— Eu amo você, Nádia!

E o mistério permanece um mistério! Nádienka se cala, pensa em alguma coisa…. Eu a acompanho da pista até em casa, ela se esforça para seguir em silêncio, segura os passos e a todo momento aguarda, será que lhe direi aquelas palavras? E eu vejo como lhe padece a alma, como ela se força para não dizer:

— Não acredito que foi o vento que disse! Eu não quero que tenha sido o vento!

Na manhã seguinte, recebo um recadinho: “Se você for hoje na pista de patinação, passe pela minha casa. N.” Desde aquele dia, começo a passear de trenó com Nádienka diariamente e, voando colina abaixo, todas as vezes digo com meia voz aquelas mesmas palavras:

— Eu amo você, Nádia!

Logo Nádienka se apega a essa frase, como ao vinho ou à morfina. Já não pode viver sem ela. É verdade que voar da montanha ainda assusta, mas agora até o medo e o perigo dão um charme especial às palavras de amor, palavras que ainda mascaram o mistério e atormentam a alma. Somos ambos suspeitos: o vento e eu… Qual dos dois lhe faz juras de amor ela não sabe, mas pelo visto tanto faz; não importa de que garrafa beba, conquanto fique bêbada.

Certa vez, ao meio-dia, fui sozinho à pista; misturando-me à multidão, vejo como Nádienka se aproxima da colina, como me procura com os olhos… Em seguida sobe timidamente pelas escadas… Que assustador é ir sozinha, oh, que assustador! Ela está pálida como a neve, treme, caminha como quem vai para sua execução, mas vai, vai sem olhar pra trás, decidida. Parece que, enfim, ela decidiu provar: será que aquelas maravilhosas, doces palavras serão ouvidas se eu não estiver lá? Vejo como ela, pálida, com a boca aberta de pavor, senta-se no trenó, fecha os olhos e, dando para sempre adeus à terra, toma impulso… “Shhhh” — chiam as lâminas. Se Nádienka teria escutado ou não aquelas palavras eu não sei… Vejo apenas como ela desce do trenó extremamente exausta, fraca. E é visível em seu rosto que nem mesmo ela sabe se ouviu ou não ouviu alguma coisa. O medo, enquanto ela descia, roubara-lhe a habilidade de ouvir, de diferenciar os sons, de entender.

Mas eis que começa março, o mês da primavera… O sol se torna mais amigável. A nossa colina gelada escurece, perde seu brilho e finalmente derrete. Todos paramos de escorregar. A pobrezinha da Nádienka não tem mais onde ouvir aquelas palavras, nem ninguém que as diga, assim como vento nenhum pode ser ouvido, e eu me mudarei para Petersburgo — por bastante tempo, talvez para sempre.

Certa vez ao entardecer, uns dois dias antes da partida, sento-me no jardim, e o pátio da casa de Nádienka separa-se deste jardim por uma cerca alta com pregos… Ainda faz bastante frio, sob o estrume ainda há neve, as florestas estão mortas, mas já se sente o cheiro da primavera e, retirando-se ao cair da noite, corvos grasnam ruidosamente. Eu me aproximo da cerca e fico por muito tempo espiando pelo vão. Eu vejo quando Nádienka sai para a varanda e volta o olhar tristonho e ansioso para o céu… O vento da primavera sopra diretamente em seu rosto pálido e sem graça… Ele a lembra daquele outro, que então rugia para nós na colina, quando ela ouvira aquelas quatro palavras, e o seu rosto se torna triste, triste, uma lágrima escorre por sua bochecha… E a pobrezinha da menina estende ambas as mãos, como se pedindo a este vento que lhe traga uma vez mais aquelas palavras. E eu, esperando o vento, digo em meia voz:

— Eu amo você, Nádia!

Meu Deus, o que se passa então com Nádienka! Ela grita, sorri com todo o rosto e estende as mãos em direção ao vento, feliz, alegre, tão bonita.

E eu me recolho…

Isso foi já há muito tempo. Agora Nádienka já está casada; deram-na em casamento ou ela escolheu sozinha — para uma nobre tanto faz, e agora ela já tem três filhos. Mas, a forma como uma vez passeamos de trenó e como o vento lhe soprou as palavras “Eu amo você, Nádienka”, não foi esquecida. Para ela essa ainda é a mais alegre, mais tocante e bela lembrança da vida…

E agora que fiquei mais velho, já não sei por que disse aquelas palavras, por que brinquei…

ШУТОЧКА

Ясный, зимний полдень… Мороз крепок, трещит, и у Наденьки, которая держит меня под руку, покрываются серебристым инеем кудри на висках и пушок над верхней губой. Мы стоим на высокой горе. От наших ног до самой земли тянется покатая плоскость, в которую солнце глядится, как в зеркало. Возле нас маленькие санки, обитые ярко-красным сукном.

— Съедемте вниз, Надежда Петровна! — умоляю я. — Один только раз! Уверяю вас, мы останемся целы и невредимы.

Но Наденька боится. Всё пространство от ее маленьких калош до конца ледяной горы кажется ей страшной, неизмеримо глубокой пропастью. У нее замирает дух и прерывается дыхание, когда она глядит вниз, когда я только предлагаю сесть в санки, но что же будет, если она рискнет полететь в пропасть! Она умрет, сойдет с ума.

— Умоляю вас! — говорю я. — Не надо бояться! Поймите же, это малодушие, трусость!

Наденька наконец уступает, и я по лицу вижу, что она уступает с опасностью для жизни. Я сажаю ее, бледную, дрожащую, в санки, обхватываю рукой и вместе с нею низвергаюсь в бездну.

Санки летят как пуля. Рассекаемый воздух бьет в лицо, ревет, свистит в ушах, рвет, больно щиплет от злости, хочет сорвать с плеч голову. От напора ветра нет сил дышать. Кажется, сам дьявол обхватил нас лапами и с ревом тащит в ад.

Окружающие предметы сливаются в одну длинную, стремительно бегущую полосу… Вот-вот еще мгновение, и кажется — мы погибнем!

— Я люблю вас, Надя! — говорю я вполголоса.

Санки начинают бежать всё тише и тише, рев ветра и жужжанье полозьев не так уже страшны, дыхание перестает замирать, и мы наконец внизу. Наденька ни жива ни мертва. Она бледна, едва дышит… Я помогаю ей подняться.

— Ни за что в другой раз не поеду, — говорит она, глядя на меня широкими, полными ужаса глазами. — Ни за что на свете! Я едва не умерла!
Немного погодя она приходит в себя и уже вопросительно заглядывает мне в глаза: я ли сказал те четыре слова, или же они только послышались ей в шуме вихря? А я стою возле нее, курю и внимательно рассматриваю свою перчатку.

Она берет меня под руку, и мы долго гуляем около горы. Загадка, видимо, не дает ей покою. Были сказаны те слова или нет? Да или нет? Да или нет? Это вопрос самолюбия, чести, жизни, счастья, вопрос очень важный, самый важный на свете. Наденька нетерпеливо, грустно,

проникающим взором заглядывает мне в лицо, отвечает невпопад, ждет, не заговорю ли я. О, какая игра на этом милом лице, какая игра! Я вижу, она борется с собой, ей нужно что-то сказать, о чем-то спросить, но она не находит слов, ей неловко, страшно, мешает радость…

— Знаете что? — говорит она, не глядя на меня.

— Что? — спрашиваю я.

— Давайте еще раз… прокатим.

Мы взбираемся по лестнице на гору. Опять я сажаю бледную, дрожащую Наденьку в санки, опять мы летим в страшную пропасть, опять ревет ветер и жужжат полозья, и опять при самом сильном и шумном разлете санок я говорю вполголоса.

— Я люблю вас, Наденька!

Когда санки останавливаются, Наденька окидывает взглядом гору, по которой мы только что катили, потом долго всматривается в мое лицо, вслушивается в мой голос, равнодушный и бесстрастный, и вся, вся, даже муфта и башлык ее, вся ее фигурка выражают крайнее недоумение. И на лице у нее написано:

«В чем же дело? Кто произнес те слова? Он, или мне только послышалось?»

Эта неизвестность беспокоит ее, выводит из терпения. Бедная девочка не отвечает на вопросы, хмурится, готова заплакать.

— Не пойти ли нам домой? — спрашиваю я.

— А мне… мне нравится это катанье, — говорит она, краснея. — Не проехаться ли нам еще раз?
Ей «нравится» это катанье, а между тем, садясь в санки, она, как и в те разы, бледна, еле дышит от страха, дрожит.

Мы спускаемся в третий раз, и я вижу, как она смотрит мне в лицо, следит за моими губами. Но я прикладываю к губам платок, кашляю и, когда достигаем середины горы, успеваю вымолвить:

— Я люблю вас, Надя!

И загадка остается загадкой! Наденька молчит, о чем-то думает… Я провожаю ее с катка домой, она старается идти тише, замедляет шаги и всё ждет, не скажу ли я ей тех слов. И я вижу, как страдает ее душа, как она делает усилия над собой, чтобы не сказать:

— Не может же быть, чтоб их говорил ветер! И я не хочу, чтобы это говорил ветер!

На другой день утром я получаю записочку: «Если пойдете сегодня на каток, то заходите за мной. Н.» И с этого дня я с Наденькой начинаю каждый день ходить на каток и, слетая вниз на санках, я всякий раз произношу вполголоса одни и те же слова:

— Я люблю вас, Надя!

Скоро Наденька привыкает к этой фразе, как к вину или морфию. Она жить без нее не может. Правда, лететь с горы по-прежнему страшно, но теперь уже страх и опасность придают особое очарование словам о любви, словам, которые по-прежнему составляют загадку и томят душу. Подозреваются всё те же двое: я и ветер… Кто из двух признается ей в любви, она не знает, но ей, по-видимому, уже всё равно; из какого сосуда ни пить — всё равно, лишь бы быть пьяным.

Как-то в полдень я отправился на каток один; смешавшись с толпой, я вижу, как к горе подходит Наденька, как ищет глазами меня… Затем она робко идет вверх по лесенке… Страшно ехать одной, о, как страшно! Она бледна, как снег, дрожит, она идет точно на казнь, но идет, идет без оглядки, решительно. Она, очевидно, решила, наконец, попробовать: будут ли слышны те изумительные сладкие слова, когда меня нет? Я вижу, как она, бледная, с раскрытым от ужаса ртом, садится в санки, закрывает глаза и, простившись навеки с землей, трогается с места… «Жжжж…» — жужжат полозья.

Слышит ли Наденька те слова, я не знаю… Я вижу только, как она поднимается из саней изнеможенная, слабая. И видно по ее лицу, она и сама не знает, слышала она что-нибудь или нет. Страх, пока она катила вниз, отнял у нее способность слышать, различать звуки, понимать…

Но вот наступает весенний месяц март… Солнце становится ласковее. Наша ледяная гора темнеет, теряет свой блеск и тает наконец. Мы перестаем кататься. Бедной Наденьке больше уж негде слышать тех слов, да и некому произносить их, так как ветра не слышно, а я собираюсь в Петербург — надолго, должно быть, навсегда.

Как-то перед отъездом, дня за два, в сумерки сижу я в садике, а от двора, в котором живет Наденька, садик этот отделен высоким забором с гвоздями… Еще достаточно холодно, под навозом еще снег, деревья мертвы, но уже пахнет весной и, укладываясь на ночлег, шумно кричат грачи. Я подхожу к забору и долго смотрю в щель. Я вижу, как Наденька выходит на крылечко и устремляет печальный, тоскующий взор на небо… Весенний ветер дует ей прямо в бледное, унылое лицо… Он напоминает ей о том ветре, который ревел нам тогда на горе, когда она слышала те четыре слова, и лицо у нее становится грустным, грустным, по щеке ползет слеза… И бедная девочка протягивает обе руки, как бы прося этот ветер принести ей еще раз те слова. И я, дождавшись ветра, говорю вполголоса:

— Я люблю вас, Надя!

Боже мой, что делается с Наденькой! Она вскрикивает, улыбается во всё лицо и протягивает навстречу ветру руки, радостная, счастливая, такая красивая.
А я иду укладываться…

Это было уже давно. Теперь Наденька уже замужем; ее выдали, или она сама вышла — это всё равно, за секретаря дворянской опеки, и теперь у нее уже трое детей. То, как мы вместе когда-то ходили на каток и как ветер доносил до нее слова «Я вас люблю, Наденька», не забыто; для нее теперь это самое счастливое, самое трогательное и прекрасное воспоминание в жизни…

А мне теперь, когда я стал старше, уже непонятно, зачем я говорил те слова, для чего шутил…

Notas

  1. Diminutivo carinhoso de Nadejda, que, por sua vez, significa ‘esperança’. Em português poderíamos traduzir por “Nadiazinha”. É importante que o leitor faça atenção à importância do significado do nome no contexto do conto. Nádienka, esperançazinha, torna-se assim não só o nome da personagem, mas também, potencialmente, uma de suas qualidades.
  2. A муфта (mufta), em português denominado como regalo, designa um acessório da moda comum aos países frios: trata-se de um cilindro forrado com peles ou outro tecido quente no qual o usuário pode enfiar as mãos, mantendo-as aquecidas. Muito utilizado por homens e mulheres, passa a ser acessório exclusivamente feminino no século XVIII e XIX, quando cai de moda e tem o uso abandonado.
  3. O башлык (bachlyk), aqui traduzido por capuz, é uma vestimenta típica de povos eslavos, tártaros, etc. caracterizado por um capuz em forma de cone com pontas longas que podem ser usadas como cachecol para envolver o pescoço e o rosto.
  4. O verbo темнеть (escurecer) faz referência ao processo de derretimento da neve. Do branco incólume da neve nova, passa-se gradualmente a um amarelado sujo que pouco a pouco se transforma em uma mistura marrom ou preta e lamacenta, mas ainda gelada.

Sobre esta tradução

Iniciada como um pequeno exercício didático há mais de um ano, a tradução se estendeu paralela à uma retomada vigorosa dos meus estudos da língua russa. Se em um primeiro momento me parecia impossível avançar as primeiras linhas, culpa da gramática particularmente complexa desse idioma eslavo, um ano depois foi com grato contentamento que me vi capaz de finalizá-la. A versão em português aqui presente é inteiramente original, uma vez que não foi consultada outra tradução (algo que não constitui em si nenhum orgulho, mas que cumpriu um papel no meu próprio processo de aprendizagem) e feita a partir do original russo (retirado do site da Biblioteca Komarov, excelente repositório de textos literários e capaz de fazer a alegria de qualquer russófilo).

Algumas notas pontuais se mostraram necessárias para esclarecer pequenas passagens e facilitar a experiência do leitor contemporâneo (o jovem de 2020 que, em plena pandemia, dificilmente conhece alguns detalhes do vestuário russo de inverno). Minha intenção principal, durante a tradução, foi recuperar dois aspectos marcantes do original: a sonoridade e a delicadeza. E por delicadeza eu quero me referir à fofura mesmo, pois o original russo é extremamente fofo e, por isso mesmo, deixa toda a aventura de Nadejda (Esperança, cujo apelidinho – eles! tão presentes em todo texto russo – é Nádiazinha!) ainda mais apaixonante.

A tradução é apresentada ao lado do texto original, no alfabeto cirílico, e isso por uma razão: não acredito que todos tenhamos, frequentemente, acesso ao cirílico e acredito que seja enriquecedor passar pela experiência de encarar o texto em um alfabeto que não é o seu.

Para além disso, uma expectativa: que qualquer leitor, ainda que diante de uma tradução, consiga experimentar junto de mim o êxtase que foi e é ler, ler literatura russa e ler literatura russa em russo.

Agradeço à minha professora, Paula Vaz Almeida, ela mesma tradutora (de um tipo mais profissional e mais publicado que o meu!) por todas as correções, dicas, conselhos e leituras ao longo de nossas aulas, e por me iluminar tantos pontos mais obscuros da prosa de Tchékov e do idioma dos meus amores.

Breve análise de “Brincadeirinha”

Шуточка (transliterado em “Chútotchka”: “brincadeirinha”, “piadinha” ou ainda “joguinho”) apresenta ao leitor vários aspectos da genialidade de seu autor, que dominou como poucos a arte das histórias curtas. Sua concisão já se mostra evidente no número de páginas, não mais que quatro ou cinco, o que só aumenta o assombro diante da potência e beleza do pequeno texto.

Deixando a narrativa ao encargo de um narrador pretensamente imparcial, mas, na verdade, profundamente implicado nos acontecimentos, vemos as ações se desenrolarem como num filme em que cada detalhe importa, o que faz da textura textual um elemento importante e altamente participativo da formação de sentido (algo evidente nas assonâncias que mimetizam as imagens e os movimentos). Inicialmente levado pela delicadeza e doçura das colocações do narrador, a tentação de conceder-lhe total confiança e acreditar na veracidade do que diz é simplesmente irresistível. Tchékov alcança assim o ápice de sua capacidade de manipulação dos princípios miméticos e joga com genialidade com os ideais realistas. Nossa jovem heroína Nadejda resta, assim, até o final da narrativa, uma espécie de enigma insondável, cujas parcelas ínfimas são iluminadas apenas pela vontade dúbia de nosso narrador. Reduzida à visão dele, só a alcançamos de forma indireta e através de uma visão passional e marcada pelo desejo.

Ao ler o conto vale sempre lembrar que, por mais que as imagens desfilem, aparentemente nítidas, como num filme, há sempre alguém que manipula a câmera e ilumina os elementos que lhe parecem mais relevantes, ou imprime-lhes as emoções que lhe parecem mais verdadeiras.

Conto – “Um homem célebre”, de Machado de Assis

– Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: – Desculpe meu modo, mas… é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875… Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

– Diga, minha senhora.
– É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

– Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

– Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

– A bengala.
– Mas parece que hoje chove.
– Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
– Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

– Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

– Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, – ou por alusão a algum sucesso do dia, – ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

– Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.
– Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

– E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil…

– As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

– Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
– Vai casar com uma viúva.
– Velha?
– Vinte e sete anos.
– Bonita?
– Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, – mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

– Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

– Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas… Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação… Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, – uma clara e fresca manhã de maio de 1876, – eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

– Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

– Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
– Nada.
– Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

– Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

– Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
– Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

– Adeus.
– Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

Referência

ASSIS, Machado de. Um homem célebre. In: Várias Histórias. W. M. Jackson Inc Editores, 1946.

* Este célebre conto de um de nossos maiores autores é utilizado frequentemente por pesquisadores que associam a história da literatura com a história da canção brasileira. O texto que talvez mais se detenha sobre esse relação é Machado Maxixe, de José Miguel Wisnik, que estuda o “caso Pestana”.

Sair da versão mobile