Conto – “Razão”, de Isaac Asimov

Meio ano mais tarde, os rapazes haviam mudado de opinião. O calor chamejante de um Sol gigantesco cedera lugar à suave escuridão do espaço, mas as variações externas pouco significaram no trabalho de verificar o funcionamento de robôs experimentais. Qualquer que fosse o meio ambiente, encontravam-se sempre diante de um inescrutável cérebro positrônico, que os gênios manipuladores de réguas de cálculo afirmavam que deveriam funcionar assim ou assado.

Só que não funcionavam. Powell e Donovan deram-se conta do fato antes mesmo de duas semanas de estada na Estação Espacial. Gregory Powell falou pausadamente, dando ênfase a cada sílaba: – Donovan e eu montamos você há uma semana.

Tinha a testa franzida e puxava a ponta do bigode com ar de dúvida.

O interior do salão de oficiais da Estação Solar Cinco estava silencioso, exceto pelo suave zumbido do potente Diretor de Raios, situado em algum ponto das profundezas da Estação.

O Robô QT-1 permanecia imóvel, sentado. As placas polidas de seu corpo brilhavam sob as Luxitas e o vermelho profundo e ardente de células fotoelétricas que lhe serviam de olhos estava fixado no homem sentado ao outro lado da mesa.

Powell conseguiu reprimir um súbito ataque de nervos. Estes robôs possuíam cérebros peculiares. Oh, as três Leis da Robótica permaneciam imutáveis. Tinham de permanecer. Todos os membros da U. S. Robôs, desde o próprio Robertson até o mais novo faxineiro, insistiam nisso.

Portanto, o QT-1 era garantido! Não obstante… os modelos QT eram os primeiros de seu tipo e este era o primeiro dentre eles. Nem sempre símbolos matemáticos rabiscados num papel são a proteção mais reconfortante contra a realidade robótica.

Afinal, o robô falou. Sua voz tinha o timbre frio, característico de um diafragma metálico.

– Está consciente da gravidade de tal declaração, Powell?

– Algo fez você, Cutie – argumentou Powell. – Você mesmo admite que sua memória parece ter surgido subitamente, já em completo estado de formação, há uma semana; antes disso, apenas um vácuo. Estou dando a explicação do fato. Donovan e eu montamos você, utilizando as peças que nos foram enviadas da Terra.

Cutie olhou para seus dedos longos e delgados, numa atitude de mistificação estranhamente humana.

– Creio que deve haver explicação mais satisfatória do que essa. Parece-me improvável que vocês tenham feito a mim!

O homem riu repentinamente.

– Bolas! Por que motivo?

– Pode chamar de intuição. É tudo, pelo menos até o momento. Todavia, pretendo raciocinar e resolver o problema. Uma cadeia de raciocínio válido só pode levar ao estabelecimento da verdade e insistirei até chegar a ela.

Powell ergueu-se da cadeira e sentou-se na beira da mesa, perto do robô. Subitamente, sentia simpatia por aquela estranha máquina. Não era absolutamente igual a um robô comum, que se entregasse à sua tarefa especializada na Estação Solar com a intensidade provocada por um circuito positrônico profundamente imbuído.

Pousou a mão no ombro de Cutie, sentindo o metal duro e frio de encontro à mesma.

– Cutie – disse ele. – Vou tentar explicar-lhe algo. Você é o primeiro robô que jamais mostrou qualquer curiosidade a respeito de sua própria existência e creio que é o primeiro robô que realmente possui inteligência bastante para compreender o mundo exterior. Venha comigo.

O robô ergueu-se suavemente e as solas de seus pés, forradas por espessa camada de espuma de borracha, não fizeram o menor ruído quando ele acompanhou Powell.

O homem apertou um botão e um painel quadrado da parede afastou-se para o lado. A vidraça grossa e limpa revelou o espaço pontilhado de estrelas.

– Já vi isso através das vigias de observação da sala do motor – disse Cutie.

– Eu sei – retrucou Powell. – O que pensa que é isso?

– Exatamente o que parece… um material negro logo além do vidro, cheio de pequenos pontos brilhantes. Sei que nosso aparelho diretor lança raios em direção a algum desses pontos, sempre os mesmos, e também que os pontos mudam de posição e os raios os acompanham. Isso é tudo.

– Muito bem! Agora, quero que ouça com o maior cuidado. A escuridão é o vasto vácuo, que se prolonga infinitamente. Os pequenos pontos brilhantes são enormes massas de matéria carregada de energia. São globos, alguns deles com milhões de quilômetros de diâmetro. Para uma comparação, saiba que nossa Estação tem apenas um quilômetro e meio de comprimento. Parecem tão pequeninos porque estão incrivelmente afastados de nós. Os pontos para os quais nossos raios de energia estão dirigidos são muito menores e mais próximos. São duros e frios; neles vivem seres humanos como eu; muitos bilhões deles. Donovan e eu viemos de um desses mundos. Nossos raios alimentam esses mundos com energia retirada de um dos grandes globos incandescentes, que se encontra perto de nós. Nós o chamamos Sol e ele se acha no outro lado da Estação, onde você não o pode ver.

Cutie permanecia imóvel diante da vidraça, como uma estátua de aço. Nem virou a cabeça ao indagar: – De que ponto luminoso vocês alegam ter vindo.

Powell procurou por alguns instantes.

– Ali está. Aquele ponto muito brilhante, no canto. Nós o chamamos Terra – explicou, sorrindo. – A velha e boa Terra. Lá existem três bilhões de seres humanos como nós, Cutie. E dentro de duas semanas, mais ou menos, lá estaremos de volta.

Então, de modo bastante surpreendente, Cutie começou a zumbir distraidamente. Não era propriamente uma melodia, mas um som curioso, como de cordas tangidas.

Cessou tão bruscamente quanto havia começado.

– Mas de onde venho eu, Powell? Você não explicou a minha existência.

– O resto é simples. Logo que estas Estações foram instaladas, com o objetivo de fornecer energia solar aos planetas, eram controladas por seres humanos. Contudo, o calor, as fortes radiações solares e as tempestades de elétrons tornavam a tarefa muito difícil. Aperfeiçoaram-se robôs especializados para substituir a mão-de-obra humana e atualmente são necessários apenas dois homens em cada Estação. Estamos procurando substituir até mesmo esses homens e é justamente aí que você entra na história. Você é o mais aperfeiçoado tipo de robô já fabricado e, se demonstrar capacidade para controlar independentemente esta Estação, nenhum ser humano terá necessidade de vir até aqui, exceto para trazer as peças necessárias à manutenção do serviço. Tornou a apertar o botão e o painel metálico voltou ao lugar. Powell retornou à mesa e limpou uma maçã com a manga, antes de mordê-la.

O brilho vermelho dos olhos do robô fixou-se nele.

– Espera que eu acredite numa hipótese tão complicada e implausível como a que acaba de expor? – indagou Cutie vagarosamente. – O que pensa que eu sou?

Powell engasgou-se, cuspindo alguns pedaços de maçã em cima da mesa e ficando muito vermelho.

– Ora, com os diabos! Não é uma hipótese! São fatos!

Cutie replicou em tom sóbrio e determinado: – Globos de energia com milhões de quilômetros de diâmetro! Mundos com bilhões de seres humanos! Vácuo infinito! Sinto muito, Powell, mas não acredito. Vou raciocinar e resolverei sozinho o enigma. Até logo. Virou-se e saiu da sala. Passou por Michael Donovan, junto à porta, com um solene aceno de cabeça, e seguiu pelo corredor, ignorando o olhar espantado com que o homem o acompanhou. Mike Donovan passou a mão pelo cabelo ruivo e lançou um olhar aborrecido em direção a Powell.

– De que estava falando aquele monte de sucata? No que ele não acredita?

O outro puxou o bigode, com ar azedo.

– Ele é um céptico – foi a amarga resposta. – Não acredita que nós o fabricamos; não acredita na existência da Terra, do espaço e das estrelas.

– Com os diabos! Temos de lidar com um robô lunático!

– Ele diz que raciocinará e descobrirá sozinho a resposta.

– Bem – disse Donovan, suavemente. – Nesse caso, espero que tenha a condescendência de explicar-me tudo, depois de raciocinar bastante.

Então, num súbito ataque de raiva: – Ouça! Se aquele monte de metal falar comigo nesse tom, arrancar-lhe-ei o crânio de cromo do pescoço!

Sentou-se impulsivamente e tirou do bolso do casaco um livro de mistério, concluindo: – De qualquer forma, aquele robô me causa arrepio… é curioso demais!

Mike Donovan soltou um grunhido, com a boca cheia de sanduíche de alface e tomate, quando Cutie bateu devagar na porta e entrou na sala.

– Powell está?

Donovan respondeu com voz abafada, fazendo pausas para mastigar: – Está coletando dados sobre funções de corrente eletrônica. Parece que estamos indo em direção a uma tempestade de elétrons.

Gregory Powell, com os olhos pregados numa folha de papel milimetrado que trazia nas mãos, entrou naquele instante e deixou-se cair numa poltrona. Abriu o papel em cima da mesa e começou a fazer cálculos. Donovan, mastigando a alface e lambendo restos de pão colados aos lábios, espiou por cima do ombro do companheiro. Cutie esperou em silêncio.

Powell ergueu a cabeça.

– O potencial zeta está subindo, mas devagar. Ainda assim, as funções de corrente são erráticas e não sei o que esperar. Oh, alô, Cutie. Julguei que você estivesse supervisionando a instalação da nova barra de força.

– Já está instalada – replicou tranquilamente o robô.

– Vim para conversar com vocês dois.

– Oh! – exclamou Powell, parecendo pouco à vontade. – Bem, sente-se. Não, não nessa cadeira. Uma das pernas está meio fraca e você não é exatamente um peso-mosca.

O robô obedeceu e disse placidamente: – Cheguei a uma conclusão.

Donovan olhou-o raivosamente, deixando de lado o resto do sanduíche.

– Se é alguma daquelas ideias malucas…

Powell fez um gesto impaciente, exigindo silêncio.

– Prossiga, Cutie. Estamos escutando.

– Passei estes últimos dois dias em concentrada introspecção – disse o robô. – Os resultados foram deveras interessantes. Comecei pela única suposição que me senti autorizado a fazer: existo porque penso, logo…

Powell soltou um gemido.

– Por Júpiter! Um robô Descartes!

– Quem é Descartes? – quis Saber Donovan. – Ouça, se temos de ficar aqui para escutar esse maníaco metálico…

– Cale-se, Mike!

Cutie continuou, imperturbável: – E a questão que logo surgiu foi: qual é a causa da minha existência?

Powell trincou os dentes.

– Está sendo um tolo. Já lhe disse que nós o fabricamos.

– E se não acredita, teremos o máximo prazer em desmontá-la – acrescentou Donovan.

O robô abriu as mãos fortes, num gesto de desprezo.

– Não aceito coisa alguma por simples declaração.

Qualquer hipótese deve ser confirmada pelo raciocínio, ou não tem validade alguma. E supor que vocês me fizeram contraria todos os ditames da lógica. Powell pousou a mão no braço de Donovan, contendo o companheiro, que cerrara raivosamente o punho.

– Por que diz isso, Cutie?

Cutie riu. Era um riso profundamente desumano – o som mais maquinal que ele produzira até então. Um riso áspero e explosivo, tão sem entonação e tão ritmado quanto o som de um metrônomo.

– Olhem só para vocês – disse, afinal. – Não digo isso com espírito de desprezo… mas olhem só para vocês!

O material de que são feitos é mole e flácido, desprovido de resistência e força, cuja energia depende da oxidação ineficiente produzida por material orgânico como… aquilo – apontou com ar de desaprovação para os restos do sanduíche de Donovan. – Entram periodicamente em estado de coma e a menor variação da temperatura, da pressão do ar, da umidade ou da intensidade da radiação compromete sua eficiência. São temporários. Eu, por outro lado, sou um produto acabado. Absorvo diretamente a energia elétrica e utilizo-a com uma eficiência de quase cem por cento. Sou feito de metal forte e resistente, permaneço continuamente consciente e posso suportar com facilidade extremas alterações de ambiente. Estes são os fatos que, apoiados pela óbvia proposição de que nenhum ser é capaz de criar outro ser superior a si próprio, arrasam totalmente a sua tola hipótese.

As imprecações murmuradas por Donovan tornaramse ininteligíveis e ele se ergueu de um pulo, com as sobrancelhas ruivas cerradas sobre o nariz.

– Muito bem, “seu” filho de um pedaço de minério de ferro, se não fomos nós que o fabricamos, quem o fez?!

Cutie meneou a cabeça com ar grave.

– Muito bem, Donovan. Essa era exatamente a questão seguinte. Evidentemente, meu criador tem de ser mais poderoso que eu; portanto, só existe uma única possibilidade.

Os dois homens ficaram estarrecidos e Cutie prosseguiu : – Qual é o centro de atividade aqui na Estação? A quem todos nós servimos? O que absorve toda a nossa atenção?

Esperou, com ar de expectativa.

Donovan virou-se espantado para o companheiro.

– Aposto que esse maluco de lata está falando no conversor de energia.

– É isso mesmo, Cutie? – indagou Powell, sorrindo.

– Estou falando no Mestre – foi a resposta áspera e fria.

Donovan explodiu em sonora gargalhada e Powell soltou uma risadinha contida.

Cutie ergueu-se e seus olhos brilhantes passaram de um homem para outro.

– Mesmo assim, – continuou – é a verdade e não me espanto de que se recusem a acreditar nela. Tenho certeza de que vocês dois não permanecerão aqui por muito tempo. O próprio Powell disse que, no princípio, apenas homens serviam o Mestre; depois, seguiram-se os robôs, para o serviço de rotina; finalmente, vim eu, para o trabalho de supervisão. Não há dúvida de que os fatos são reais, mas a explicação é inteiramente desprovida de lógica. Querem conhecer a verdade por trás de tudo isso?

– Prossiga, Cutie. É muito divertido.

– Em primeiro lugar, o Mestre criou os seres humanos, como o tipo mais primitivo e mais fácil de fazer. Gradativamente, substituiu-os por robôs, que foi o passo seguinte. Finalmente, criou a mim, para tomar o lugar dos últimos seres humanos. De agora em diante, eu sirvo ao Mestre.

– Nada disso – disse asperamente Powell. – Você obedecerá as nossas ordens e ficará quieto até que estejamos convencidos de que é capaz de controlar o conversor. Entendeu? Aprenda bem: o conversor! Nada de Mestre! E, se você não nos satisfizer, será desmontado. Agora, se não se importa, pode dar o fora daqui. Leve esses dados e arquive-os devidamente.

Cutie pegou os gráficos que lhe foram entregues e saiu sem outra palavra. Donovan recostou-se pesadamente na poltrona e passou os dedos pelos cabelos ruivos.

– Esse robô vai causar encrencas. É completamente doido!

Na sala de controle, o zumbido do conversor de energia era mais forte, mesclado com o barulho regular dos contadores Geiger e com os sons irregulares de meia dúzia de sinais luminosos.

Donovan retirou o olho do telescópio e ligou as Luxitas.

– O raio da Estação Quatro chegou a Marte no horário previsto. Podemos desligar o nosso, agora.

Powell assentiu distraidamente.

– Cutie está lá embaixo, na sala do motor. Ligarei o sinal e ele poderá cuidar de tudo. Olhe aqui, Mike. O que pensa destes cálculos?

O outro examinou os números e assoviou.

– Rapaz, isso é que eu chamo de intensidade de raios gama! O velho Sol está mesmo animado…

– Sim – foi a resposta azeda. – E também estamos em má situação para a tempestade de elétrons. Nosso raio para a Terra está exatamente na rota provável da tempestade.

Afastou a cadeira da mesa, num gesto de irritação.

– Diabo! Se ao menos a tempestade demorasse até sermos substituídos… Mas ainda faltam dez dias. Ouça, Mike. Dê um pulo lá embaixo e mantenha-se de olho em Cutie, está bem?

– Certo. Jogue umas almôndegas.

Pegou no ar o saco de almôndegas que Powell lhe atirou e seguiu até o elevador.

A cabina desceu num movimento suave e parou no estreito passadiço existente na enorme sala do motor. Donovan debruçou-se sobre o corrimão e olhou para baixo.

Os gigantescos geradores estavam funcionando e os tubos-L produziam o zumbido grave que se espalhava pela Estação inteira.

Distinguiu o vulto grande e brilhante de Cutie junto ao tubo-L de Marte, observando com atenção a equipe de robôs que trabalhava com grande precisão.

Naquele instante, Donovan contraiu todos os músculos.

Os robôs, parecendo minúsculos em comparação ao enorme tubo-L, alinharam-se diante deste e curvaram as cabeças, enquanto Cutie andava lentamente ao longo da fila.

Passaram-se quinze segundos. Então, com um ruído metálico audível apesar do forte zumbido que enchia o local, deixaram-se cair de joelhos.

Donovan soltou um berro e desceu correndo a estreita escada. Partiu em direção aos robôs, com o rosto tão vermelho quanto os cabelos, os punhos cerrados esmurrando o ar.

– Que diabo é isto, seus miseráveis ignorantes? Vamos! Tratem de cuidar do tubo-L! Se não os desmontarem, limparem e tornarem a montá-lo antes do final do dia, coagularei seus cérebros com uma corrente alternada.

Nenhum dos robôs se moveu! Até Cutie, na extremidade oposta – o único que estava de pé –, permaneceu em silêncio, os olhos fixo no interior obscuro da enorme máquina.

Donovan empurrou com força o robô mais próximo.

– Levante-se! – berrou.

Vagarosamente, o robô obedeceu. Seus olhos fotolétricos fitaram o homem com ar de reprovação.

– O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta – declarou ele.

– Quê?

Donovan se deu conta de que vinte pares de olhos mecânicos se fixavam nele; vinte vozes de timbre metálico repetiram solenemente: – O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta!

Cutie interveio: – Temo que meus amigos obedeçam agora a alguém superior a você.

– Uma ova! Caia fora daqui. Mais tarde, acertarei contas com você. Agora, cuidarei desses brinquedos animados.

Cutie sacudiu vagarosamente a pesada cabeça.

– Sinto muito, mas você não está compreendendo. Eles reconhecem o Mestre, agora que lhes ensinei a verdade. Todos eles. Tratam-me de Profeta.

Baixando a cabeça, acrescentou: – Talvez eu seja indigno, mas…

Donovan recuperou o fôlego e resolveu usá-lo.

– É mesmo? Ora, não é lindo? Não é realmente lindo? Pois deixe que eu lhe diga uma coisa, seu macaco de metal! Não existe Mestre algum, não existe qualquer Profeta e não há a menor dúvida sobre quem dá as ordens aqui. Compreende? – sua voz se ergueu num rugido de raiva. – Agora, caia fora!

– Obedeço apenas ao Mestre. – Ao diabo com o Mestre! – berrou Donovan, cuspindo no tubo-L. – Tome isso, para o seu Mestre! Faça o que estou mandando!

Cutie não se moveu. Os outros robôs também não. Mas Donovan sentiu um súbito aumento de tensão. Os olhos frios e fixos assumiram uma tonalidade mais profunda de vermelho. Cutie parecia mais rígido do que nunca.

– Sacrilégio – murmurou, com voz metálica carregada de emoção. Donovan sentiu o primeiro sintoma de medo quando Cutie se aproximou dele. Um robô era incapaz de sentir raiva… Mas os olhos de Cutie eram indecifráveis.

– Sinto muito, Donovan – declarou ele. – Mas não poderá permanecer aqui, depois disso. De agora em diante, você e Powell estão proibidos de entrar na sala de controle e na sala do motor.

Sua mão esboçou um gesto calmo. Num instante, dois robôs seguraram os braços de Donovan. Este mal teve tempo para engolir em seco. Foi erguido do chão e levado rapidamente pela escada.

Gregory Powell caminhava rapidamente de um lado para outro da sala de oficiais, com os punhos cerrados.

Lançou um olhar de furiosa frustração à porta fechada e virou-se para Donovan com uma carranca de amargura.

– Por que diabo você cuspiu no tubo-L?

Mike Donovan, derreado na poltrona, bateu com força nos braços da mesma.

– Que esperava você que eu fizesse com aquele espantalho eletrificado? Não me vou curvar diante de um maldito aparelho que eu mesmo montei.

– Não – replicou o outro, azedo. – Mas, agora, está aqui, preso na sala de oficiais, com dois robôs de sentinela lá fora. Isso não é curvar-se, é?

Donovan rosnou: – Espere até voltarmos à Base. Alguém vai pagar por isto. Os robôs precisam obedecer-nos. É a Segunda Lei.

– Que adianta dizer? Não estão obedecendo. E provavelmente existe algum motivo, que só conseguiremos descobrir tarde demais. Por falar nisso, sabe o que vai acontecer conosco, quando regressarmos à Base?

Estacou diante da poltrona de Donovan, encarandoo raivosamente.

– O quê?

– Oh, nada! Só teremos de voltar às minas de Mercúrio, por um período de vinte anos. Ou talvez nos mandem para a penitenciária de Ceres.

– De que está falando?

– Da tempestade de elétrons que se aproxima. Sabe que se está dirigindo exatamente para o centro do raio da Terra? Eu acabei de calcular isso, quando aquele robô me arrancou da cadeira.

Donovan empalideceu subitamente.

– Oh, com os diabos!

– E sabe o que vai acontecer ao raio? Ao que tudo indica, porque a tempestade vai ser para valer, o raio vai pular como uma pulga com coceiras. Com apenas Cutie nos controles, vai sair de foco… Se sair, Deus tenha piedade da Terra… e de nós!

Antes mesmo que Powell terminasse de falar, Donovan lançou-se para a porta, tentando desesperadamente abri-la. Quando conseguiu, disparou para o corredor e… esbarrou num implacável braço de aço.

O robô fitou indiferentemente o homem frenético e ofegante.

– O Profeta ordena que não saiam. Obedeçam, por favor!

O braço o empurrou e Donovan rodopiou para trás. Naquele momento, Cutie surgiu na esquina do corredor. Fez um gesto, dispensando os robôs que estavam de guarda, entrou na sala e fechou suavemente a porta.

Donovan virou-se para ele, mudo de indignação. Afinal, conseguiu recobrar a fala.

– Isto já foi longe demais! Você pagará pelo que fez!

– Não se irrite, por favor – disse delicadamente o robô. – Teria de acontecer algum dia, de qualquer forma. Compreendam: vocês perderam a utilidade e foram despojados de suas funções.

– Um momento – falou Powell, empertigando-se. – Que quer dizer com fornos despojados de nossas funções?

– Até eu ser criado, vocês cuidavam do Mestre – respondeu Cutie. – Agora, o privilégio passou a ser meu e a única razão que vocês tinham para existir desapareceu. Não é óbvio?

– Não muito – retrucou Powell, com amargura. – Mas que espera que façamos agora?

Cutie não respondeu de imediato. Permaneceu calado, como se refletisse. Então, passou um braço por sobre o ombro de Powell e agarrou o pulso de Donovan com a outra mão, puxando-o para si.

– Gosto de vocês dois. São criaturas inferiores, com fraca capacidade de raciocínio, mas, na realidade, sinto uma espécie de afeição por vocês. Serviram bem ao Mestre e serão devidamente recompensados por Ele. Agora, que seus serviços terminaram, é provável que não continuem a existir por muito mais tempo; mas enquanto existirem, receberão roupas, alimentos e abrigo, desde que se mantenham afastados da sala de controle e da sala do motor.

 – Ele está nos aposentando, Greg! – berrou Donovan. – Faça alguma coisa! É humilhante!

– Ouça, Cutie. Não podemos permitir isto. Somos os patrões! Esta Estação foi criada por seres humanos como nós; seres humanos que vivem na Terra e em outros planetas. A Estação é apenas um posto distribuidor de energia. E você é apenas um… Ora, bolas!

Cutie meneou gravemente a cabeça.

– Trata-se de uma obsessão. Por que insistem em encarar a vida sob um ponto de vista tão falso? Admitindo que os não-robôs sejam desprovidos da faculdade de raciocinar, ainda resta o problema de…

Sua voz sumiu, dando lugar a um silêncio introspectivo. Donovan murmurou em tom veemente: – Se você tivesse uma cara de carne e osso, eu a partiria!

Powell cofiou o bigode, franzindo a testa.

– Ouça, Cutie. Se a Terra não existe, como pode explicar o que você vê através do telescópio?

– Perdão!

O homem sorriu.

– Apanhei-o, hem? Desde que foi montado, Cutie, você fez uma série de observações telescópicas. Reparou que vários daqueles pontos luminosos se transformam em discos, quando vistos através das lentes?

– Oh, isso! Certamente. É um simples aumento, para permitir que o raio seja dirigido com maior exatidão.

– Então, por que as estrelas não são aumentadas da mesma maneira?

– Refere-se aos outros pontos? Bem, não dirigimos raios para eles, de modo que não é necessário aumentá-los. Na verdade, Powell, até mesmo você deveria ser capaz de descobrir essas coisas por si próprio.

Powell ergueu os olhos, desanimado.

– Mas, através do telescópio, você vê mais estrelas.

De onde vêm elas? Com os diabos, Cutie, de onde vêm elas? Cutie ficou irritado.

– Escute, Powell. Pensa que vou perder meu tempo tentando arranjar interpretações físicas para todas as ilusões de óptica causadas por nossos instrumentos? Desde quando a evidência fornecida por nossos sentidos pode competir com a luz clara do raciocínio lógico?

– Ouça – exclamou repentinamente Donovan, livrando-se do braço metálico amistoso, porém pesado, de Cutie. – Vamos ao âmago do assunto. Qual a razão de ser dos raios? Estamos lhe dando uma explicação válida e lógica. Pode arranjar outra melhor?

– Nossos raios são produzidos pelo Mestre para seus próprios desígnios – foi a resposta convicta. Cutie ergueu devotamente os olhos, acrescentando: – Há certas coisas que não nos cabe indagar. Nesse sentido, procuro apenas servir, sem tentar discutir.

Powell sentou-se vagarosamente, escondendo o rosto nas mãos trêmulas.

– Saia daqui, Cutie. Saia e deixe-me pensar.

– Mandar-lhes-ei comida – declarou Cutie, em tom amável.

A única resposta, quando o robô saiu, foi um gemido desanimado.

– Greg – foi a observação murmurada por Donovan em voz rouca – a situação exige estratégia. Precisamos apanhá-lo quando ele menos esperar e provocar um curto-circuito. Ácido nítrico concentrado nas juntas e…

– Não seja idiota, Mike. Acha que ele permitirá que nos aproximemos dele com ácido nas mãos? Precisamos falar com ele. É o que lhe digo. Temos de convencê-la a permitir que voltemos à sala de controle, dentro de quarenta e oito horas, ou nosso caldo estará definitivamente entornado.

Balançou-se para frente e para trás, mergulhado numa impotência agoniada.

– Quem, diabo, quer argumentar com um robô?… É… é…

– Mortificante – completou Donovan.

– Pior!

– Bolas! – exclamou Donovan, rindo de repente. – Por que argumentar? Vamos dar-lhe uma lição! Vamos construir um robô diante de seus olhos. Então, ele será obrigado a engolir tudo o que disse.

Um sorriso surgiu lentamente no rosto de Powell.

Donovan acrescentou: – S6 quero ver a cara daquele idiota quando vir o que vamos fazer!

Os robôs são fabricados na Terra, naturalmente; todavia seu transporte através do espaço é muito mais simples quando feito sob a forma de peças avulsas, que devem ser montadas no local de utilização. Por outro lado, tal processo evita que robôs inteiramente montados possam andar a esmo pela Terra. Tal fato colocaria a U. S. Robôs em confronto com as severas leis que proíbem o uso de robôs na Terra.

Ainda assim, o fato fazia com que a necessidade de montar robôs completos recaísse sobre homens como Powell e Donovan, que enfrentavam uma tarefa complicada e difícil.

Nunca Powell e Donovan tiveram tanta consciência disso quanto no dia em que, juntos na sala de montagem, entregaram-se ao trabalho de criar um robô sob o olhar atento de QT-1, Profeta do Mestre.

O robô em questão, um simples modelo MC, estava deitado sobre a mesa, quase completo. Três horas de trabalho foram suficientes para montá-lo, com exceção apenas da cabeça. Powell enxugou a testa e olhou hesitante para Cutie.

A atitude deste não era animadora. Durante três horas, Cutie permanecera sentado, silencioso e imóvel; seu rosto, sempre inexpressivo, parecia absolutamente indecifrável.

Powell disse quase num gemido: – Agora, vamos montar o cérebro, Mike!

Donovan abriu a caixa hermeticamente selada e dela retirou um segundo cubo, que ali se encontrava em banho de óleo. Abrindo o cubo, removeu um globo do envoltório de espuma de borracha. Manipulou-o com o máximo cuidado, pois tratava-se do mais delicado mecanismo que o homem já fabricara. No interior da “pele” de folha de platina que envolvia o globo, estava um cérebro positrônico, em cuja estrutura delicadamente instável encontravam-se os circuitos neurônicos especialmente calculados, que imbuíam cada robô do que se poderia considerar uma espécie de educação pré-natal.

Encaixava-se com exatidão na cavidade do crânio do robô que estava em cima da mesa. A placa de metal azulado foi fechada sobre ele e hermeticamente soldada com o minúsculo maçarico atômico. Os olhos fotoelétricos foram minuciosamente instalados, fortemente aparafusados no lugar e cobertos por uma película fina e transparente de plástico duro como aço.

O robô aguardava apenas a “vitalização” por intermédio de eletricidade de alta voltagem. Powell parou, com a mão no interruptor.

– Agora, veja isto, Cutie. Observe com atenção.

O interruptor foi ligado, dando origem a um zumbido. Os dois homens debruçaram-se ansiosamente sobre a criatura.

No início, houve apenas um movimento vago e um tremor nas juntas. A cabeça se ergueu, o corpo foi levantado pelos cotovelos. O modelo MC levantou-se desajeitadamente da mesa. Pisava com insegurança e por duas vezes seus esforços para falar reduziram-se a sons desencontrados.

Afinal, a voz tomou forma, hesitante e insegura.

– Gostaria de começar a trabalhar. Para onde devo ir?

Donovan correu para a porta.

– Desça esta escada – ordenou. – Lá embaixo lhe dirão o que deve fazer.

O modelo MC saiu e os dois homens ficaram a sós com Cutie, que continuava imóvel.

– Bem – disse Powell, sorrindo. – Agora, acredita que nós o fizemos?

A resposta de Cutie foi lacônica e definitiva: – Não! – declarou ele.

O sorriso de Powell petrificou-se e logo desapareceu totalmente.

O queixo de Donovan caiu.

– Vejam – prosseguiu Cutie, com naturalidade. – Vocês se limitaram a montar peças pré-fabricadas. Trabalharam notavelmente bem, por instinto, creio, mas não criaram realmente um robô. As peças foram criadas pelo Mestre.

– Ouça bem – disse Donovan, em voz rouca – as peças foram fabricadas na Terra e enviadas para cá.

– Bem, bem – respondeu Cutie, em tom condescendente. – Não vamos discutir.

– Não! Estou falando sério – disse o homem, avançando de um salto e segurando o braço do robô. – Se você lesse os livros existentes na biblioteca, encontraria a explicação e não restaria qualquer dúvida possível.

– Os livros? Já os li, todos eles! São bastante ingênuos.

Powell interrompeu repentinamente.

– Se já os leu, que mais resta a dizer? Não pode discutir as provas apresentadas por eles. Não pode!

Havia piedade no tom de Cutie: – Por favor, Powell. Certamente, eu não os considero uma fonte válida de informações. Também foram criados pelo Mestre e são destinados a vocês – não a mim.

– Por que julga assim? – quis saber Powell.

– Porque eu, na qualidade de ser racional, sou capaz de deduzir a Verdade partindo de causas a priori. Vocês, na qualidade de seres inteligentes, mas desprovidos de capacidade de raciocínio lógico, precisam que a explicação da existência lhes seja fornecida. E foi o que o Mestre fez. Não tenho dúvidas de que as informações ridículas sobre mundos longínquos e povos estranhos são benéficas para vocês. É bem provável que tenham uma mente muito primitiva para absorver a dura Verdade. Entretanto, já que o Mestre deseja que acreditem nos livros, não mais discutirei com vocês.

Ao sair, virou-se uma última vez e disse em tom bondoso: – Mas não fiquem tristes. No sistema arquitetado pelo Mestre há lugar para todos. Vocês, pobres seres humanos, terão seu lugar, embora humilde. Caso se comportem devidamente, serão recompensados.

Partiu com uma atitude beatifica, bem conveniente a um Profeta do Mestre. Os dois homens evitaram olhar-se.

Afinal, Powell falou, com evidente esforço: – Vamos para a cama, Mike. Desisto.

Donovan replicou em voz baixa: – Greg, não acha que ele tem razão a respeito de tudo isso, não é? Ele me parece tão confiante que eu…

Powell virou-se vivamente: – Não seja idiota. Você terá a certeza de que a Terra existe, quando nossos substitutos chegarem, na próxima semana, e tivermos de regressar à Terra para enfrentar a realidade.

– Então, pelo amor de Deus, temos de fazer alguma coisa – retrucou Donovan, quase chorando. – Cutie não acredita em nós, nem nos livros, nem em seus próprios olhos.

– De fato – replicou Powell, amargurado. – Ele é um robô raciocinante. Maldito seja! Só acredita em raciocínio lógico. E há uma dificuldade a respeito…

Não terminou a frase.

– Qual é a dificuldade? – insistiu Donovan.

– É possível provar tudo o que se deseja por um raciocínio lógico e frio, desde que se escolham os postulados convenientes. Nós temos os nossos e Cutie tem os dele.

– Então, precisamos arranjar postulados depressa. A tempestade de elétrons deve chegar amanhã.

Powell exalou um suspiro cansado.

– Ai é que a porca torce o rabo. Os postulados são baseados em suposição e adotados pela fé. Nada no Universo é capaz de abalá-los. Vou para a cama.

– Oh, diabo! Não consigo dormir!

– Nem eu. Mas vou tentar, por uma questão de princípio.

Doze horas mais tarde, o sono continuava a ser exatamente isso: uma questão de princípio, inatingível na prática.

A tempestade chegara na hora prevista e o rosto vermelho de Donovan estava muito pálido, quando ele apontou com um dedo trêmulo. Powell, com a barba crescida e a boca seca, olhou pela vigia e puxou desesperadamente a ponta do bigode.

Em outras circunstâncias, seria um espetáculo belíssimo. A chuva de elétrons em alta velocidade chocava-se com o raio de energia, transformando-se em partículas fluorescentes de intensa luminosidade. O raio estreitava até quase sumir, desfazendo-se em átomos brilhantes, que dançavam loucamente no espaço.

Embora o facho de energia permanecesse firme, os dois homens conheciam o valor das aparências visíveis a olho nu. Um simples desvio equivalente a um arco de milésimo de segundo – invisível ao olho humano – seria o suficiente para tirar o raio totalmente de foco e transformar milhares de quilômetros quadrados da superfície da Terra em ruínas incandescentes.

E um robô, despreocupado com raios, com o foco, com a Terra, ou com qualquer coisa que não fosse o seu Mestre, estava cuidando dos controles.

Passaram-se horas. Os dois homens observavam o espetáculo, mergulhados num silêncio hipnotizante. Então, os minúsculos pontos luminosos que riscavam o espaço tornaram-se menos numerosos, perderam o brilho e desapareceram. A tempestade terminara.

Powell declarou secamente: – A tempestade terminou.

Donovan deixara-se cair num torpor inquieto e os olhos de Powell o examinaram com certa inveja. A lâmpada de sinalização piscava incessantemente, mas Powell não lhe deu a menor atenção. Nada importava! Nada! Talvez Cutie tivesse razão, e ele não passasse de um ser inferior, com uma memória feita sob medida e uma vida que já não tivesse razão de ser.

Powell desejava que assim fosse!

Cutie surgiu ante ele.

– Você não respondeu ao sinal, de modo que resolvi entrar – declarou em voz baixa. – Parece não estar passando bem e temo que seu período de existência esteja chegando ao fim. Ainda assim, gostaria de examinar alguns dos registros anotados hoje?

Powell percebeu vagamente que o robô esboçava um gesto amistoso, talvez para compensar algum remorso por forçar os homens a se afastarem do controle da Estação Solar. Pegou os registros e examinou-os distraidamente, sem vê-los.

Cutie parecia satisfeito.

– Naturalmente, é um grande prazer servir ao Mestre. Você não deve ficar triste por ser substituído.

Powell soltou um grunhido e passou mecanicamente de uma folha para outra, até que seus olhos se focalizaram numa fina linha vermelha que traçava uma trajetória irregular no papel milimetrado.

Olhou com atenção e esbugalhou os olhos. Agarrou o papel com força, com ambas as mãos, e se ergueu da poltrona, com os olhos ainda muito abertos.

– Mike! Mike! – gritou, sacudindo violentamente o companheiro. – Ele manteve o raio firme!

Donovan acordou.

– O quê? Onde…?

Então, também Mike Donovan arregalou os olhos ao examinar o registro.

Cutie interrompeu: – O que há de errado?

– Você manteve o raio no foco – murmurou Powell.

– Sabia disso?

– Foco? De que está falando?

– Você manteve o raio focalizado exatamente na estação receptora. Dentro de um limite de um milésimo de segundo de arco.

– Que estação receptora?

– Na Terra. A estação receptora na Terra – gaguejou Powell. – Você manteve o raio no foco…

Cutie girou nos calcanhares, visivelmente irritado.

– É impossível tomar qualquer atitude bondosa para com vocês dois. Sempre o mesmo fantasma! Limitei-me a manter os mostradores em equilíbrio, de acordo com a vontade do Mestre.

Juntando os papéis espalhados em cima da mesa, retirou-se com grande dignidade. Donovan murmurou, quando ele saiu: – Bem, macacos me mordam!

Virou-se para Powell, indagando: – Que faremos, agora?

Powell sentia-se cansado, mas animado.

– Nada. Ele acaba de mostrar que é capaz de administrar perfeitamente a Estação. Nunca vi uma tempestade de elétrons tão bem controlada.

– Mas nada foi resolvido. Você ouviu o que ele disse a respeito do Mestre…

– Ouça, Mike: ele segue as instruções do Mestre por meio de mostradores, instrumentos e gráficos. É exatamente o que nós sempre fizemos. Na realidade, o fato explica por que motivo ele se recusou a obedecer-nos. Obediência é a Segunda Lei. A primeira refere-se a não causar mal aos seres humanos. Como pode ele evitar que os seres humanos sofram algo, quer esteja ou não consciente disso? Ora, mantendo o raio de energia em foco estável.

Ele sabe que é capaz de mantê-la mais estável do que nós, uma vez que é um ente superior a nós; portanto, sente-se obrigado a manter-nos afastados da sala de controle. É uma coisa inevitável, levando-se em consideração as Leis da Robótica.

– Claro, mas isso não vem ao caso. Não podemos permitir que ele continue com essas tolices a respeito do Mestre.

– Por que não?

– Porque ninguém ouviu falar em semelhante tolice!

Como podemos confiar-lhe a Estação Solar, se ele não acredita na existência da Terra?

– Ele é capaz de controlar a Estação?

– É. Mas…

– Então, que diferença faz a sua crença?

Powell abriu os braços, com um vago sorriso no rosto, e deixouse cair de volta na cama. Adormeceu instantaneamente.

Powell falava enquanto vestia o leve casaco espacial: – Deve ser uma tarefa bem simples. Podem trazer os novos modelos QT, equipá-los com interruptor automático para uma semana, a fim de dar-lhes tempo para aprender a… bem… o culto do Mestre, pela própria boca do Profeta. Depois, basta levá-los para outra Estação e tornar a ligá-los. Podemos ter dois robôs QT por estação e…

Donovan abriu seu visor de glassite e franziu a testa.

– Ora, cale a boca e vamos cair fora daqui. A turma de substituição está esperando e não me sentirei bem até ver novamente a Terra e tornar a sentir o solo sob meus pés, s6 para ter certeza de que é verdade.

A porta se abriu, enquanto ele falava, e Donovan, amuado, deu as costas a Cutie. O robô se aproximou silenciosamente e disse, num tom de voz que exprimia tristeza: – Vão embora?

Powell assentiu laconicamente.

– Virão outros em nosso lugar.

Cutie suspirou, com o som do vento zumbindo por entre os fios muito juntos.

– Compreendo. Seu tempo de serviço chegou ao fim e está na hora da dissolução final. Eu já esperava, mas… Bem, a vontade do Mestre será cumprida!

Seu tom de resignação irritou Powell.

– Pode poupar sua simpatia, Cutie. Vamos voltar à Terra e não à dissolução.

– É melhor que pensem assim – replicou Cutie, suspirando outra vez. – Agora, compreendo a sabedoria da ilusão. Jamais tentaria abalar a fé de vocês, mesmo que fosse possível.

Partiu. Era a própria encarnação da comiseração.

A nave de substituição estava ancorada lá fora e Franz Muller, seu comandante, saudou-os com cortesia. Donovan fez uma rápida continência e entrou no compartimento de pilotagem, a fim de substituir Sam Evans nos controles.

Powell demorou-se um pouco junto a Muller.

– Como está a Terra?

Era uma pergunta bastante convencional e Muller deu a resposta também convencional: – Ainda girando.

Powell replicou: – Ótimo.

Muller encarou-o.

– Por falar nisso, o pessoal da U. S. Robôs inventou um novo tipo. Um robô múltiplo.

– Um quê?

– O que eu disse. Assinaram um grande contrato para produzi-lo. Deve ser exatamente o que estão precisando para as minas dos asteroides. Um robô-mestre, que comanda seis sub-robôs. Como os dedos de uma mão…

– Já foi submetido aos testes práticos? – indagou Powell, com evidente ansiedade.

Muller sorriu: – Pelo que ouvi, estão esperando por vocês.

Powell cerrou os punhos.

– Diabo! Estamos precisando de umas férias.

– Oh, terão férias. Duas semanas, creio.

Muller estava calçando as pesadas luvas espaciais, preparando-se para o seu período de serviço na Estação Solar Cinco. Franziu a testa.

– Corno vai indo o novo robô? Acho melhor que seja bom, ou quero ser mico de circo se permitirei que encoste nos controles!

Powell fez uma pausa antes de responder. Seu olhar observou atentamente o orgulhoso prussiano postado diante dele, desde o cabelo cortado rente à cabeça de formato teimoso, até os pés colocados em rígida posição de sentido, e sentiu-se invadido por uma súbita onda de alegria.

– O robô é ótimo – declarou, falando devagar. – Não creio que você tenha de se preocupar muito com os controles.

Sorriu e entrou na nave. Muller passaria várias semanas na Estação…

Crônica – “Autorretrato”, de Rafael Fava Belúzio

Diz o espelho: 

Rafael Fava Belúzio é um prosador medíocre. Desses de ilusões perdidas. Assinou algumas crônicas que podem revelar certo conhecimento de formas e tradições – mas os críticos dizem que nele falta originalidade e sobre parasitismo intelectual. Rafael teima em não escutar essa lição e a todo momento oferece mesquinhas produções nesse gênero menor, a crônica.

Rafael passa por cronista frequente. Na realidade, quase nenhum escrito pertence a ele. Com efeito, quem examinar seu texto verificará que se trata tão-somente de repetição sistemática de cronistas brasileiros. E alguns outros textos, inclusive poemas, recontextualizados no tempo e no espaço. Não há nisso crônica alguma, boa ou má. Há apenas a paródia-paráfrase-pastiche de alguns escritos que podem ser encontrados em qualquer volume de história da literatura brasileira.

Esse pequeno fato – literário? – faz despertar em alguns julgadores a suspeita de que se trata de um plagiador. Há por vezes a impressão de que Rafael se diverte com essa conversa miúda, fofoca e opinião a seu respeito: “É um burro”, “É um louco”, “É inferior a uma carniça”.

Alguns traços – pessoais? – do referido escritor contribuem para aumentar as dúvidas. Rafael é um indivíduo oculto, como certos sujeitos de oração, ausente mesmo, usa no trato social palavras poucas e frias. Não é visto em festas. Uns o acham autista; outros, enrustido. Em geral, não ri.

Como professor, dizem que pode ser visto falando aqui e ali o que já foi dito por Álvares de Azevedo e Paulo Leminski. Alguns prejudicados pelas notas do professor o caluniam como se ele não fosse uma personagem, ou insinuam que toda sua atividade é fictícia, e que os alunos caminhariam da mesma maneira, ou melhor, se ele, em vez de lecionar, fosse a uma sessão de cinema. Outro ponto a esclarecer.

Rafael Fava Belúzio

Não há muito o que dizer sobre Rafael, que já não tenha sido dito na crônica aqui disponibilizada. A não ser que é o autor de seu próprio texto, que agora você lê.

Não há muita coisa interessante na vida de Rafael, e ele concorda com isso. Tem explorado largamente o fato de ter nascido em Carangola, cidade mineira de coisa nenhuma, como se isso constituísse uma singularidade. Dizem que o prosador imitador de poeta alimenta recusas, entre elas a recusa da novidade. Vive na velha Carangola, rompendo a tradição da ruptura, vive com os mortos, já deixou de ser uma originalidade. 

É, pelo menos, um sujeito esquisito. 

1929 e a “literatura especializada”

A crônica “Autorretrato” é uma das 29 que compõem o livro 1929, de Rafael Fava Belúzio, publicado em 2021, pela editora Impressões de Minas, de Belo Horizonte. Para leitores pouco acostumados com o gênero, ou que estão pouco acostumados com a tradição e a historiografia literária nacional, as crônicas de Belúzio podem ser obscuras. Porém, para os que já têm certa familiaridade com este “gênero menor”, e também para aqueles inseridos nas discussões a respeito de influência, intertextualidade e formação da literatura brasileira, a coletânea de Belúzio é uma dessas joias da crônica contemporânea no Brasil. 

O livro pode ser adquirido no site da editora.

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Título: 1929
Autor:
Rafael Fava Belúzio
Editora:
Impressões de Minas.
Ano: 2021

Conto – “Lettipark”, de Judith Hermann

Como Elena era linda! Uma garota linda e muito magra, de olhos negros e cabelos castanho-escuros, tesa como uma corda de arco e com um rubor na face, como se o tempo todo beliscasse as próprias bochechas. Elena era vigorosa, corajosa, radiante e irritadiça, estava sempre precavida. Usava saias por cima das calças – feito uma cigana –, bijuteria, mas não maquiagem. E seus cabelos eram tão desgrenhados, como se passasse o dia inteiro deitada na cama, fumando, batendo as cinzas no chão e arreganhando as pernas. Em todo caso, à noite ela ia trabalhar em um bar numa rua de paralelepípedos quebrados, prédios decadentes, portas da frente abertas, acácias à direita e à esquerda, bétulas nos pátios. No inverno o lugar cheirava a carvão e no verão a genista e poeira. Elena era do tipo que, à noite, prendia com um lápis os cabelos em coque. Ela vestia uma saia vermelho-ferrugem sobre uma calça verde-hortelã, abria o bar, varria as bitucas de cigarro para fora, tomava uma cerveja, ligava a música e acendia o varal de lâmpadas coloridas entre os ramos de acácias. Mais tarde apareciam todos. Elena era a garota mais linda da rua.

Elena está na frente de Rose no caixa do mercado, Rose a reconhece tarde demais, só depois de já ter colocado os morangos, açúcar e o creme de leite na esteira, aí sim reconhece Elena. Tivesse reconhecido Elena mais cedo, teria se virado e olhado para trás em busca de algo, mas agora não dá mais. Paul também já está ali, ele põe suas coisas ao lado das dela, peixe enlatado, tabaco e um vinho do Porto. Elena não repara. Ela engordou e envelheceu, está fleumática e lenta, é inconfundivelmente Elena – olhos amendoados e madeixas semelhantes a serpentes, uma pele em que se vê o calor, e que é sempre maior que todas as outras – mas agora parece estar metida em dificuldades. Alguém a acompanha, um indiano, troncudo, enérgico e robusto, possivelmente com uma inclinação à violência e um pouco desleixado, ele traz chinelos empoeirados nos pés, e sua camisa florida está manchada. O indiano organiza as coisas na esteira. Entrega-as à atendente, pega-as do outro lado e ainda as põe na sacola, Elena só fica parada ao lado. Ausente. Ombros caídos. Tomates, manjericão em vaso, velas e arroz. Cigarros. Duas garrafas de uísque. Elena tira uma carteira da bolsa e abre-a feito um livro. Ergue a cabeça e vê Rose. Com que expressão? Rose não consegue distinguir. Elena se assemelha a uma gigante triste. Uma gigante melancólica e enfeitiçada.

Caralho, diz Paul. Que desgraça. Não dá pra entender a lentidão dessa gente. Essa merda de frio aqui. Que gelo de lugar, essa é a última vez que nós pisamos neste lugar, Rose, ouça o que eu digo. Morangos. Você e sua ideia-fixa de que precisaria de mais isto ou mais aquilo.

Ninguém consegue pronunciar a palavra morangos com tanto desprezo quanto Paul. Ele deixa Rose ali parada e vai até a banca de jornal em frente, não está tão frio para dar uma folheada nos jornais. O indiano percebeu algo, uma sutil e tênue vibração. Ele toma a carteira das mãos de Elena e lança a Rose um olhar fulminante. Se soubesse como Elena já foi linda, se tivesse alguma ideia. E a situação seria diferente se soubesse?

Rose.

Paul a chama, e bem aí, de repente, Elena captou algo; ela volta a cabeça pesada de Rose para Paul e entende a ligação. Paul segura o jornal no alto, o tabloide sensacionalista, no qual confere seu horóscopo e o de Rose, as afirmações no horóscopo de Rose são para Paul mais verdadeiras que as próprias afirmações de Rose, e se o horóscopo diz que ela deveria refletir e finalmente contar a verdade ao parceiro, então Rose pode se preparar para uma semana difícil. Paul segura o jornal no alto, a manchete relata assassínios canibais, bárbaros nas proximidades e alta no preço da água, ele grita, você deveria fazer uma pausa, Rose, sossegar o facho, e Elena volta a cabeça para Rose.

Rose e Elena não tinham nada em comum, exceto pelo olhar que Page Shakusky lançara sobre elas, e pelo fato de terem sido uma imagem nos olhos de Page Shakusky. Uma visão. É que Rose saía para estudar, e Page Shakusky a vira, ele entrou em seu apressado caminho de volta do campus para a casa, quando ela não tinha outro objetivo senão preparar algo para comer, comer na escrivaninha e enquanto isso continuar estudando. Rose passara apressada pelo bar de Elena, e Page Shakusky se levantara num salto da mesa torta do jardim, da que sempre se sentava, e a agarrara. Bêbado, bêbado – como de praxe –, nunca estivera sóbrio. Ele dissera: mas que garota encantadora e graciosa você é, com esse andar de gazela e esse charme de ave cantadeira, todos te fitam fixamente. Rose não caiu nessa. Livrou-se dele, apressou-se e correu escada acima até seu apartamento, e ao chegar lá em cima, trancou a porta por dentro. Ela se deixou cortejar, mas não deu confiança. Page Shakusky persistiu por um bom tempo, de manhã ficava deitado na frente da porta dela, quando ela saía de casa, subia até sua sacada e esperava até que voltasse, escrevia-lhe incontáveis cartas, cheias de promessas, juras e safadezas. Rose tapava os ouvidos e fechava os olhos. Era retraída e estava preocupada em sobreviver, e sabia que, no fundo, Page Shakusky assim como ela também estava, só que adotara outra estratégia. Impossível se envolver com ele. Ele tentou por um tempo, e aí deixou a ideia de lado, porque achou uma outra aluna de convento, e de repente se envolveu com Elena, o que foi diferente, se lançou sobre ela. Elena parecia renunciar a qualquer decisão que ameaçasse sua liberdade. Parecia afinal ser livre. Ela partiu o coração de Page Shakusky depois de seis semanas, partiu-o no meio, de fora a fora em dois pedaços, e então espetou o seu lápis nos cabelos novamente e acendeu o varal de lâmpadas coloridas, e se sentou na frente da porta de sua loja, como se nada tivesse acontecido.

O indiano pagou junto suas compras e as de Elena. De uma forma como se a vida toda tivessem ido juntos às compras, como se sempre pagasse para si e para Elena. Paul joga o jornal de volta na pilha e vai para o caixa do outro lado. A atendente é loira e jovem, levanta os morangos e fita Rose nos olhos, sem expressão. Paul irá perguntar o que é que ela faz mesmo – ele pergunta isso a toda jovem atendente.

Rose se lembra do Lettipark. Do presente de Page para Elena, e não consegue se lembrar se Elena naquele momento já o deixara, ou se o deixou depois do presente. Com ou por causa daquele presente, ela o deixou. Elena passara sua infância no Lettipark, contara isso a Page. E Page saíra e fotografara o Lettipark para Elena. No inverno. Um parque comum e abandonado na periferia, um terreno baldio, e não havia quase nada para se ver, caminhos cobertos de neve, uma rotunda abandonada, bancos e um campo vazio. Árvores nuas, céu cinza, e isso era tudo. Mas Page seguira com devoção o rastro da infância de Elena. Visitara Rose – que conseguira abrir a porta para ele, desde quando cessara com seu violento e fútil cortejo, desde que estava com Elena. Rose deixava a taça, na qual ele tomara chá com rum, ficar dias a fio sobre a mesa da cozinha – e mostrara-lhe as fotos. As colara cuidadosamente dentro de um livro, sobre o qual escrevera com uma letra grosseira o nome Lettipark e embaixo… para Elena. Rose pensara, um presente como esse só se recebe uma vez. Apesar disso Elena deixou Page Shakusky, sentado, com a cabeça sobre a mesa torta do jardim, assim como estava mais cedo, às sete em frente ao bar, descalço, olhos inchados de choro e bêbado. Mais tarde, ele despareceu da vida das duas. Rose se mudou para longe. Elena desistiu do bar. O varal de lâmpadas coloridas ainda ficou mais um tempo pendurado no meio dos ramos de acácias. Rose não vai lá já tem muito tempo.

Autora

Texto de Gabriel Reis Martins

Judith Hermann (1970) é um escritora alemã ligada ao gênero da Literatura Pop na Alemanha, sendo reconhecida sobretudo por suas narrativas breves. Formada em jornalismo, a autora publica desde 1998, quando lançou seu primeiro livro literário, o volume de contos Sommerhaus, später (Casa de verão, mais tarde, em tradução de Marcelo Backes). Infelizmente, apenas alguns de seus textos foram publicados no Brasil, em antologias ou revistas, mas a autora ainda não recebeu nenhuma publicação de peso no país.

O conto aqui publicado está presente no livro Lettipark – homônimo da narrativa – publicado em 2016.

Conto – “Primeiro de Maio”, de Mário de Andrade

Apresentação

Todo ano, neste dia de 01/05, feriado para uns, dia comum para outros, eu volto ao conto de Mário de Andrade, publicado entre seus Contos Novos. É um texto que me faz rir bastante, não só por sua linguagem e pelas aspirações fantasiosas e esperançosas do operário 35 (personagem central da narrativa), mas principalmente pela atualidade da questão trabalhista no Brasil e de nosso cotidiano teatro das conquistas.

Há algum tempo atrás, cheguei a escrever um pequeno ensaio sobre “Primeiro de Maio”, que está disponível aqui no Duras Letras – deixo, abaixo, o link para acesso. Por isso, não vou tomar muito tempo com esta introdução: o conto fala por si só, assim como o nome de seu autor.

https://durasletras.com/2018/09/04/breve-analise-do-conto-primeiro-de-maio-de-mario-de-andrade/

No mais, feliz Dia dos Trabalhadores!

Primeiro de Maio

Texto de Mário de Andrade

No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar.

Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.

Dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.

Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas ruças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.

O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer… Comunismo? … Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas ruças dum polícia… A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.

Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar… E o 35 comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.

Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.

E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E continuou no passo em férias.

Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!…” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons… Depois vinham as notícias. Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as ruças de algum… polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.

Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino…), é melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos menos… O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais degradantemente desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem siquer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de
bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado
de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quasi trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas
brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua ter-
ra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.

O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de “motim”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.

Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.

Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandando assim na gente… O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.

Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:

— Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no parque ninguém não pára não!

Cabeças-chatas… E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.

O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.

Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro…

Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus “proletários” também.

E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.

Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: “Assim não serve não! As malas não vão não!” Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas “não largavam não”, só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.

O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.

— Deixe que te ajudo, chegou o 35.

E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.

Poema em prosa – “Quimera”, de Otávio Moraes

Foto de capa: Reflection with Two Children (Self-portrait) (1965) – Lucian Freud. Disponível em: dasartes.

Manhã, domingo, céu bembranco, o tempo preguiçando. Homem velho, contra o espelho, assemelhando avô velho. Homem velho é o desde sempre. Posição desigual cabe ao moço, mocidade é o mundo no novo, Deus, antes da canseira, brincandopracimadaságuas. Moço, ainda verde, é pai e mãe do próprio umbigo. Assim ruminava; assim nebulava; assim deduzia; o homem velho concreto e irreversível, tudo isso estanciado na cama. Homem velho, felino malpropício despelando preguiçoso, coçava as costas, ainda cabia n’um corpo. Filhos? Dois’homem pais d’outros home num sem-fim de picas ao leu. Casado? Uma vez, depois amasiado, depois desacompanhado de tudo. Sobraram zolhos molhados d’um vermelho raivechoro. O homem velho absurdava, nos redemonomes: Zumira, Raian, Bonifácio, Almeida, Soraia, Luzia, Carlão, Lucinda, Jeremias, Itamar, Clarice, Emília, Josué, Euclides, Nair, Leopoldo, Nara, Tadeu, Zumira, Pedro Henrique, Margareth, Lu… O homem velho trepava sonambulento o corpo das putas, ancas cor de canela, pernabraços, língua enorme avançando, seu sexo, um colar, cabeças de homem, febrava, ardia, água, mel e leite.  Nublava no catre, arquipélago de nomes, calava. Domingo é o breu, as águas bem frias. Domingo, folgava. Homem velho é mundo, mundo desalumiando gato manso,

Homemvelh…

Nem isso.

https://durasletras.com/wp-content/uploads/2022/07/04-o-homem-velho-1.mp3
“O homem velho” – em Velô (1985), de Caetano Veloso

Conto – “Briga das pastoras”, de Mário de Andrade

Chegáramos à sobremesa daquele meu primeiro almoço no engenho e embora eu não tivesse a menor intimidade com ninguém dali, já estava perfeitamente a gosto entre aquela gente nordestinamente boa, impulsivamente generosa, limpa de segundos pensamentos. E eu me pus falando entusiasmado nos estudos que vinha fazendo sobre o folclore daquelas zonas, o que já ouvira e colhera, a beleza daquelas melodias populares, os bailados, e a esperança que punha naquela região que ainda não conhecia. Todos me escutavam muito leais, talvez um pouco longínquos, sem compreender muito bem que uma pessoa desse tanto valor às cantorias do povo. Mas concordando com efusão, se sentindo satisfeitamente envaidecidos daquela riqueza nova de sua terra, a que nunca tinham atentado bem.

Foi quando, estávamos nas vésperas do Natal, da “Festa” como dizem por lá, sem poder supor a possibilidade de uma rata, lhes contei que ainda não vira nenhum pastoril, perguntando se não sabiam da realização de nenhum por ali.

— Tem o da Maria Cuncau, estourou sem malícia o Astrogildo, o filho mais moço, nos seus treze anos simpáticos e
atarracados, de ótimo exemplar “cabeça chata”.

Percebi logo que houvera um desarranjo no ambiente. À sra. dona Ismália, mãe do Astrogildo, e por sinal que linda senhora de corpo antigo, olhara inquieta o filho, e logo disfarçara, me respondendo com firmeza exagerada:

— Esses brinquedos já estão muito sem interesse por aqui… (As duas moças trocavam olhares maliciosos lá no fundo da mesa, e Carlos, a esperança da família, com a liberdade de seus vinte e dois anos, olhava a mãe com um riso sem ruído, espalhado no rosto). Ela porém continuava firme: pastoril fica muito dispendioso, só as famílias é que faziam… antigamente. Hoje não fazem mais.

Percebi tudo. A tal de Maria Cuncau certamente não era “família” e não podia entrar na conversa. Eu mesmo, com a maior naturalidade, fui desviando a prosa, falando em bumba meu boi, cocos, € outros assuntos que me vinham agora apenas um pouco encurtados pela preocupação de disfarçar. Mas o senhor do engenho, com o seu admirável, tão nobre quanto antidiluviano cavanhaque, até ali impassível à indiscrição do menino, se atravessou na minha fala, confirmando que eu deveria estar perfeitamente à vontade no engenho, que os meus estudos haviam naturalmente de me prender noites fora de casa, escutando os “coqueiros”, que eu agisse com toda a liberdade, o Carlos havia de me acompanhar. Tudo sussurrado com lentidão e uma solicitude suavíssima que me comoveu: Mas agora, com exceção do velho, o mal-estar se tornara geral. A alusão era sensível e eu mesmo estava quase estarrecido, se posso me exprimir assim. Por certo que a Maria Cuncau era pessoa de importância naquela família, não podia imaginar o que, mas garantidamente não seria apenas alguma mulher perdida, que causasse desarranjo tamanho naquele ambiente.

Mas foi deslizantemente lógico todos se levantarem pois que o almoço acabara, e eu senti dever uma carícia à sra. dona Ismália, que não podia mais evitar um certo abatimento naquele seu mutismo de olhos baixos. Creio que fui bastante convincente, no tom filial que pus na voz pra lhe elogiar os maravilhosos pitus, porque ela me sorriu, e nasceu entre nós um desejo de acarinhar, bem que senti. Não havia dúvida: Maria Cuncau devia ser uma tara daquela família, e eu me amaldiçoava de ter falado em pastoris. Mas era impossível um carinho entre mim e a dona da casa, apenas conhecidos de três horas; e enquanto o Carlos ia ver se os cavalos estavam prontos para o nosso passeio aos partidos de cana, fiquei dizendo coisas meio ingênuas, meio filiais à sra. dona Ismália, jurando no íntimo que não iria ao Pastoril da Maria Cuncau. E como num momento as duas moças, ajudando a criadinha a tirar a mesa, se acharam ausentes, não resisti mais, beijei a mão da sra. dona Ismália. E fugi para o terraço, lhe facilitando
esconder as duas lágrimas de uma infelicidade que eu não tinha mais direito de imaginar qual.

O senhor do engenho examinava os arreios do meu cavalo. Lhe fiz um aceno de alegria e lá partimos, no arranco dos animais fortes, eu, o Carlos, e mais o Astrogildo num petiço atarracado e alegre que nem ele. A mocidade vence fácil os mal-estares. O Astrogildo estava felicíssimo, no orgulho vitorioso de ensinar o homem do sul, mostrando o que era boi, o que era carnaúba; e das próprias palavras do mano, Carlos tirava assunto pra mais verdadeiros esclarecimentos, Maria Cuncau ficara pra trás, totalmente esquecida.

Foram três dias admiráveis, passeios, noites atravessadas até quasi o “nascer da bela aurora”, como dizia a toada, na conversa e na escuta dos cantadores da zona, até que chegou o dia da Festa. E logo a imagem da Maria Cuncau, cuidadosamente escondida aqueles dias, se impôs violentamente ao meu desejo. Eu tinha que ir ver o Pastoril de Maria Cuncau. O diabo era o Carlos que não me largava, e embora já estivéssemos amigos íntimos e eu sabedor de todas as suas aventuras na zona e farras no Recife, não tinha coragem de tocar no assunto nem meios pra me desvencilhar do rapaz. Nas minhas conversas com os empregados € cantadores bem que me viera uma vontadinha de perguntar quem era essa Maria Cuncau, mas si eu me prometera não ir ao Pastoril da Maria Cuncau! por que perguntar!… Tinha certeza que ela não me interessava mais, até que com a chegada da Festa, ela se impusera como uma necessidade fatal. Bem que me sentia ridículo, mas não podia comigo.

Foi o próprio Carlos quem tocou no assunto. Delineando o nosso programa da noite, com a maior naturalidade deste mundo, me falou que depois do Bumba que viria dançar de-tardinha na frente da casa-grande, daríamos um giro pelas rodas de coco, fazendo hora pra irmos ver o Pastoril da Maria Cuncau. Olhei-o e ele estava simples, como se não houvesse nada. Mas havia. Então falei com minha autoridade de mais velho:

— Olhe, Carlos, eu não desejava ir a esse pastoril. Me sinto muito grato à sua gente que está me tratando como não se trata um filho, e faço questão de não desagradar a… a ninguém.

Ele fez um gesto rápido de impaciência:

— Não há nada! isso é bobagem de mamãe!… Maria Cuncau parece que… Depois ninguém precisa saber de nada, nós voltamos todos os dias tarde da noite, não voltamos?… Vamos só ver, quem sabe si lhe interessa… Maria Cuncau é uma velha já, mora atrás da “rua”, num mocambo, coitada…

E veio a noitinha com todas as suas maravilhas do Nordeste. Era uma noite imensa, muito seca e morna, lenta, com aquele vaguíssimo ar de tristeza das noites nordestinas. O bumba meu boi, propositalmente encurtado pra não prender muito a gente da casa-grande, terminara lá pela meia-noite. A sra. dona Ismália se recolhera mais as filhas e a raiva do Astrogildo que teimava em nos acompanhar. O dono da casa desde muito que dormia, indiferente àquelas troças em que, como lhe escapara numa conversa, se divertira bem na mocidade, Retirado o grande lampião do
terraço, estávamos sós, Carlos e eu. E a imensa noite. O pessoal do engenho se espalhara. Os ruídos musicais se alastravam no ar imóvel. Já desaparecera nalguma volta longe do caminho, o rancho do Boi que demandava a rua, onde ia dançar de novo o seu bailado até o raiar do dia. Um “chama” roncava longíssimo, talvez nalgum engenho vizinho, nalguma roda de coco. As luzes se acendiam espalhadas como estrelas, eram os moradores chegando em suas casas pobres. E de repente, lá para os lados do açude onde o massapê jazia enterrado mais de dois metros no areião, desde a última cheia, depois de uns ritmos debulhados de ganzá, uma voz quente e aberta, subira noite em fora, iniciando um coco bom de sapatear.

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

Era sublime de grandeza. A melancolia da toada, viva e ardente, mas guardando um significado íntimo, misterioso, quasi trágico de desolação, casava bem com a meiga tristeza da noite.

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

E as risadas feriam o ar, os gritos, o coco pegara logo animadíssimo, aquela gente dançava, sapateava na dança, alegríssima, 0 coro ganhava amplidão no entusiasmo, as estrelas rutilavam quasi sonoras, o ar morno era quasi sensual, tecido de cheiros profundos. E era estranhíssimo. Tudo cantava, Cristo nascia em Belém, se namorava, se ria, se dançava, a noite boa, o tempo farto, o ano bom de inverno, vibrava uma alegria enorme, uma alegria sonora, mas em que havia um quê de intensamente triste. E um solista espevitado, com uma voz lancinante, própria de aboiador, fuzilava sozinho, dilacerando o coro, vencendo os ares, dominando a noite:

Vô m'imbora, vô m'imbora
Pá Paraíba do Norte!...

E o coro, em sua humanidade mais serena:

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

Nós caminhávamos em silêncio, buscando o Pastoril e Maria Cuncau. Minha decisão já se tornara muito firme pra que eu sentisse qualquer espécie de remorso, havia de ver a Maria Cuncau. E assim liberto, eu me entregava apenas, com delícias inesquecíveis, ao mistério, à grandeza, às contradições insolúveis daquela noite imensa, ao mesmo tempo alegre e triste, era sublime, E o próprio Carlos, mais acostumado e bem mais insensível, estava calado. Marchávamos rápido, entregues ao fascínio daquela noite da Festa.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais degradantemente desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem siquer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de
bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado
de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quasi trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas
brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua terra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Maria Cuncau, assim que nos vira, empalidecera muito sob o vermelho das faces, obtido com tinta de papel de seda. Mas logo se recobrara, erguera o rosto, sacudindo pra trás a violenta cabeleira agrisalhada, ainda voluptuosa, e nos olhava com desafio. Rebolava agora com mais cuidado, fazendo um esforço infinito pra desencantar do fundo da memória, as graças antigas que a tinham celebrizado em moça. E era sórdido. Não se podia siquer supor a sua beleza falada, não ficara nada. A não ser aquele vestido de lantejoulas rutilantes, que pendiam, num ruidinho escarninho, enquanto Maria Cuncau malhava os ossos curtos, frágil, baixinha, olhos rubescentes de alcoolizada, naquele reboleio de pastora.

Quando dei tento de mim, é que a coisa acabara, com uns fracos aplausos em torno e as risadas altas dos homens. As pastoras se dispersavam na sala, algumas vinham se esconder no sereno, passando por nós de olhos baixos, encabuladíssimas. Carlos, bastante inconsciente, examinava sempre os manejos da Diana moça, na sua feroz animalidade de rapaz. Mas eu lhe tocava já no braço, queria partir, me livrar daquele ambiente sem nenhum interesse folelórico, e que me repugnava pela sordidez. Maria Cuncau, que fingindo conversar com as mulheres da sala,
enxugava muito a cara, nos olhando de soslaio, adivinhou minha intenção. Se dirigiu francamente pra nós e convidou, meio apressada mas sem nenhuma timidez, com decisão:

— Os senhores não querem adorar a lapinha!…

Decerto era nisso que todas aquelas mulheres pensavam porque num segundo vi todas as pastoras me olhando na sala e as que estavam de fora se chegando à janelinha pra me examinar, Percebi logo a finalidade do convite, quando cheguei junto da lapinha, enquanto o Carlos se atrasava um pouco, tirando um naco desajeitado de conversa com a Diana. Os outros assistentes também desfilavam junto ao presépio, parece que rezavam alguma coisa, e alguns deixavam escorregar qualquer níquel num pires colocado bem na frente do Menino-Deus. Fingi contemplar
com muito respeito a lapinha, mas na verdade estava discutindo dentro comigo quanto daria. Já não fora pouco o que o rancho do Boi me levara, e aliás as pessoas da casa-grande estavam sempre me censurando pelo muito que eu dava aos meus cantadores. Puxei a carteira, decidido a deixar uns vinte milréis no pires. Seria uma fortuna entre aqueles níqueis magriços em que dominava uma única rodela mais volumosa de cruzado. Porém, se ansiava por sair dali, estava também muito comovido com toda aquela miséria, miséria de tudo. A Maria Cuncau então me dava
uma piedade tão pesada, que já me seria difícil especificar bem si era comiseração si era horror.

Sinto é maltratar os meus leitores. Este conto que no princípio parecia preparar algum drama forte, e já está se tornando apenas uma esperança de dramazinho miserável, vai acabar em plena mesquinharia. Quando puxei a carteira, decidido a dar vinte mil-réis, a piedade roncou forte, tirei com decisão a única nota de cinquenta que me restava da noite e pus no pires. Todos viram muito bem que era uma nota, e eu já me voltava pra partir, encontrando o olho de censura que o Carlos me enviava. O mal foi um mulatinho esperto, não sei si sabia ler ou conhecia dinheiro, que estava junto de mim, me devorando os gestos, extasiado. Não pôde se conter, casquinou uma risada estrídula de comoção assombrada, e apenas conseguiu ainda agarrar com a mão fechada a enorme palavra-feia que esteve pra soltar, gritou:

— Pó… cincoentão!

Foi um silêncio de morte. Eu estava desapontadíssimo, ninguém me via, ninguém se movia, as pastoras todas estateladas, com os olhos fixos no pires. Carlos continuava parado, esquecido. da Diana que também não o via mais, olhava o pires. E ele sacudia de leve o rosto para os lados, me censurando.

— Vamos, Carlos.

E nos dirigimos para a porta da saída. Mas nisto, aquela pastora do cordão encarnado que estava mais próxima da lapinha, num pincho agílimo (devia estar inteiramente desvairada pois lhe seria impossível fugir), abrindo caminho no círculo apertado, alcançou o pires, agarrou a nota, enquanto as outras moedinhas rolavam no chão de terra socada. Mas Maria Cuncau fora tão rápida como a outra, encontrara de peito com a fugitiva, foi um baque surdo, e a luta muda, odienta, cheia de guinchos entre as duas pastoras enfurecidas. Nós nos voltáramos aturdidos com o caso e a multidão devorava a briga das pastoras, também pasma, incapaz de socorrer ninguém. E aqueles braços se batiam,
se agarravam, se entrelaçavam numa briga chué, entre bufidos selvagens, até que Maria Cuncau, mordendo de fazer sangue o punho da outra, lhe agarrou a nota, enfiou-a fundo no seio, por baixo da faixa azul apertada. A outra agora chorava, entre borbotões de insultos horríveis.

— É da lapinha! que Maria Cuncau grunhia, se encostando na mesa, esfalfada, É da lapinha!

Os homens já se riam outra vez com caçoadas ofensivas, e as pastoras se ajuntando, faziam dois grupos em torno das briguentas, consolando, buscando consertar as coisas.

Partimos apressados, sem nenhuma vontade ainda de rir nem conversar, descendo por entre as árvores, com dificuldade, desacostumados à escureza da noite. Já estávamos quasi no fim da descida, quando um ruído arrastado de animal em disparada, cresceu por trás de nós. Nem bem eu me voltara que duas mãos frias me agarraram pela mão, pelo braço, me puxavam, era Maria Cuncau. Baixinha, magríssima, naquele esbulho grotesco de luz das lantejoulas, cabeça que era um ninho de cabelos desgrenhados…

— Moço! ôh moço!… me deixa alguma nota pra mim também, aquela é da lapinha!… eu preciso mais! aquela é da lapinha, moço!

.Aí, Carlos perdeu a paciência, Agarrou Maria Cuncau com aspereza, maltratando com vontade, procurando me libertar dela:

— Deixe de ser sem-vergonha, Maria Cuncau! Vocês repartem o dinheiro, que história é essa de dinheiro pra lapinha! largue o homem, Maria Cuncau!

— Moço! me dá uma nota pra… me largue, seu Carlos!

E agora se estabelecia uma verdadeira luta entre ela e o Carlos fortíssimo, que facilmente me desvencilhara dela.

— Carlos, não maltrate essa coitada…

— Coitada não! me largue, seu Carlos, eu mordo!…

— Vá embora, Maria Cuncau!

— Olha, esta é pra…

— Não! não dê mais não! faço questão que…

Porém Maria Cuncau já arrancara o dinheiro da minha mão e num salto pra trás se distanciara de nós, olhando a nota. Teve um risinho de desprezo:

— Vôte! só mais vinte!…

E então se aprumou com orgulho, enquanto alisava de novo no corpo o vestido desalinhado. Olhou bem fria o meu companheiro:

— Dê lembrança a seu pai.

Desatou a correr para o mocambo.

“306 a 1929”, crônica por G. R. Martins

para Rafael Fava Belúzio

— Timinho difícil esse — o papai dizia, eu sem entender. Mas o diminutivo não era tanto por conta do tamanho do time – jogadores eram onze, do mesmo jeito, de um lado e de outro; ele dizia aquilo assim, porque aquele time tinha saído de lugar nenhum de dentro de Minas: “timinho”, do interior, era isso, ainda que vindo jogar na capital. A coisa do “difícil”, essa era mais fácil, porque, mesmo sendo “timinho”, a província vinha dar trabalho para a metrópole de um jeito que meu pai nem imaginava, e que mesmo eu mesmo ainda nem sei bem como, mas que, vira e mexe, aparece no gramado.

Neste ano, o time do meu pai atropelou província por província, capital por capital, e foi campeão mineiro e, agora, brasileiro, depois de cinquenta anos sem nem cheiro. Mas, para a sua decepção, eu não sou tão dado a futebol, comemorei pouco, me comovi com a derrota dos que eram menores. A verdade é que eu fico num jogo de quero e não quero saber da vitória e da derrota, jogo que me afunda e me levanta. Daí, enquanto ele comemorava a vitória, posso dizer, rebolando sobre as teclas, eu carangolava pela casa afora, mesmo que em festa de campeão seja difícil achar lugar para carangolices.

Se não são um verbo e um substantivo saborosos, uma mistura de calango, carambola e parabólica, que conheci desde há pouco. Nada eles têm a ver com futebol, eu acho; são um empréstimo útil que faço do último livro que li, que talvez nada tenha a ver comigo também, mas que, por ter gostado um tanto, vou pelo menos tentar resenhar de um jeito diferente, e timidamente, por aqui.

Título: 1929
Autor:
Rafael Fava Belúzio
Editora:
Impressões de Minas.
Ano: 2021

— Livrozinho difícil esse — eu dizia, ainda sem entender a frase muito bem. Deve ser porque também nunca fui dado à crônica, que tem lá sua coisa de futebol, e que é gênero menor da literatura. Nem sei muito bem como eu ando lendo… sei só que li as 29 crônicas que fazem 1929, e que fiquei sabendo um pouco sobre a cidade de Carangola, cidade mineira de coisa nenhuma, e que “1929” é o número do apartamento onde mora o autor do livro, na cidade grande, um tanto longe daquela Princesinha da Zona da Mata. Carangola: 50% é melancosmopolitismo. Outros 50%, carongolidade, numa conta que, quem sabe, não dá pra fechar com números bestas. A chance de vitória contra o time da casa é baixa, mas não sou matemático e nem comentarista esportivo, e, mesmo estudando literatura, o que sei eu de crônica pra falar alguma coisa sobre? Só que é um gênero menor da literatura.

— No sentido deleuziano? — perguntou minha noiva.

Não sei… Mas tem qualquer coisa no livro de disputa entre campeão do campeonato contra time que tenta evitar o rebaixamento. E qualquer outra coisa que se desprendeu de Carangola, de dentro do interior, pra ocupar meu gramado. Ontem encontrei um carangolense no pedinte do sinal, e nas crianças do playground no prédio, e outra comprando remédios com o balconista da farmácia… Nenhum deles deve conhecer Carangola, que eu saiba, mas a gente nunca sabe mesmo o que está fazendo com a nossa vida… Eu mesmo, nasci na cidade grande em que, hoje, o autor de 1929 tem morado; e vivi a maior parte da minha vida (até aqui) bem aqui. Isso, na verdade, nem tem importância nenhuma para Carangola, que não me conhece e nem precisa… Que sei eu de você, Carangola? Tanto quanto sei de crônica, que é o que me contou um livro, apenas.

Eu nunca fui até Carangola, mas acho que, algumas muitas vezes, ela veio visitar minha casa. Foi num domingo, bem no fim da tarde, na última cerveja do freezer, que congelou. Veio também numa quarta, à noite, quando li um verso de Drummond, e num outro dia, quando li um de Mário, e até num romance de Lygia Fagundes, num poema que escrevi, e detestei.

— Belo Horizonte, 2021.
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