Conto – Contra partida, de G. R. Martins

de la abundancia del corazón habla su boca

Olhou com prazer para a irmã moreninha, os olhos escuros – com aquele ar inocente e inconveniente –, que mexia na ponta dos cabelos, cantando as pontas duplas. Procurava o que falar, como explicar sua vitória, mas se perdeu no brasão do uniforme do Santa Marcelina, que caia super bem naquele corpinho, que ganhava, pouco a pouco, os contornos de uma mulher.

Ele é o meu herói! E ele tá de volta, Taís disse enquanto destecia os próprios fios. Disse que comprou pra mim aquele quite de lápis de cor que eu tava louca pra conseguir. A felicidade de Caio cedeu como uma gota na lataria do carro. Ouviu sem querer ouvir, não dando importância alguma para a fala da irmã. Praguejou baixinho, perdido em pensamentos outros.

– Ele é um meu herói, repetiu consigo. Ele é um meu herói, repetiu, ainda mais alto, mas não o suficiente para que ela o ouvisse.

Morava com seu tio e a irmã e a tia – família como qualquer outra. Taís estava cansada, mesmo vindo do fim de semana, inexplicável. Caio também estava.

Dobrada a Rua João Donada, os olhos de Taís e os Caio brilharam incertos e distantes: descanso? Estavam na rua de casa. Já dava para sentir o gosto da carne na boca, a fome era tanta; salada fria, arroz, feijão, tudo que pudessem comer. Finalmente poderiam comer em casa de novo – o tio voltara de viagem. Caio estacionou o carro frente à garagem. Desceu. Foi até o portão, enfiou a chave e abriu; fê-lo correr até que houvesse espaço para o carro entrar. Viu um dos vizinhos chegando e acenou em cumprimento com sorriso de quem está feliz por chegar; aquele retribuiu. Voltou ao carro e, vendo sua irmã a remexer ainda nos cabelos, deu ignição e pôs o carro para dentro.

Como que estabelecendo uma rotina, desfizeram-se de seus pertences, cada um no seu quarto e sentaram para comer às treze e três da tarde. Eram apenas ele, a irmã e o tio. Este último – um homem corpulento beirando seus sessenta e cinco anos, com a grisalia a tomar-lhe a cor dos cabelos e com dentes amarelos e pele morena bronzeada – tinha voltado de viagem no domingo à noite e ainda não tinha tido tempo de contar como foi. Ele fez o almoço com carinho a fim de criar uma situação especial só para contar o caso; depois de duas semanas no Rio de Janeiro era o mínimo que podia fazer por todos, assim pensava.

– … Eu até andei de barco! Sabe aqueles…, não chegou a terminar a frase por perceber que ninguém prestava atenção em suas palavras. Coçou sua barba não-feita, com muitas falhas e coçou a cabeça meio calva; as poucas caspas caíam-lhe no prato feito sal pulando da saleira. Quis corar-se de raiva ou de vergonha. As duas semanas não foram suficiente para causar saudade nos dali? Apressou-se com seu mastigar e terminou de bater dois pratos cheios de comida mais rápido do que a sobrinha e o sobrinho. Sua vitória do dia. Levantou-se abruptamente, agradeceu a Deus. Passou a mão na barriga, estalou a língua e disse com firmeza:

– Hoje a louça é sua Caio, vê se faz alguma coisa.

Deu as costas aos membros da família e seguiu para o quintal balançando seu corpo. Toda a conversa jogada fora na mesa dera sede; ele precisava sair para comprar alguma coisa. Tinha levado sua garrafa de pinga para a viagem e ela não deu nem para petisco. E mesmo tendo conseguido tomar uma dose pela manhã, a sede já havia voltado. Ainda bem que o mês tinha acabado de virar. Os mirréis da aposentadoria já haviam caído na conta e iria aproveitá-los – pelo menos essa semana dava para fazer alguma coisa, nem que fosse na parte da noite, longe dos questionamentos dos outros da família.

Chegou ao quintal e viu, deitada no canil, a cadela, de bruços; gorda, com as patas para o alto e a língua para fora. Praguejou baixinho: Que inveja! Baixinho para não chamar a atenção dela. Passou a mão na barriga, estalou a língua e lambeu os lábios, girou o corpo fitando o ambiente como um todo. Perto da samambaia, já seca e morrendo, viu um copo lagoinha esquecido; foi até lá e o pegou. Deu uma fungada forte dentro do copo e sentiu o cheiro delicioso de cachaça encher-lhe o peito. A seca aumentava. Respirou fundo e voltou para dentro de casa com passos pesados e barulhentos. Passou por Caio que lavava a louça mal humoradamente e disse:

– Aproveita essa mão na massa aí e lava este aqui também, docinho. Titio aqui vai ali na sala fazer o quilo.

Deixou o copo em cima da bancada, pouco longe para o sobrinho pegar, e foi em direção à sala. A raiva subiu a garganta de Caio, que continuava com as mãos ensaboadas a lavar as infindáveis panelas e talheres que enchiam a pia. Tinha de estar de volta ao escritório até às três da tarde no máximo – estava traduzindo e editando uma nova versão de um livro de literatura de um irlandês e não podia perder tempo. Quanto mais cedo saísse dali melhor, por mais cansado que estivesse. O barulho da TV o incomodava e formulava e reformulava planos de como poderia desligar a energia sem que o tio soubesse que fora ele.

Mas isso passou. A louça já terminara há um tempo e, às quatorze e vinte e duas da tarde, podia voltar para o serviço. A roupa estava ajeitada, o material rearrumado e a louça limpa, a louça limpa. Ouviam-se os roncos do tio na sala. Velho maldito…, era o que pensava, mas não sabia como exprimir em palavras. Foi até o quarto de Taís, abriu a porta e viu que a irmã estava esticada na cama, já em sono profundo, fazendo sons de sonho bom; decidiu não acordá-la. Suspirou baixo, fechou a porta, voltou ao próprio quarto, pegou a mochila e foi-se até a garagem, pronto para ir embora.

Abriu o portão. Entrou no carro, e saiu de casa. O tio passou por ele com o casaco surrado em mãos e bateu a mão no capo do veículo, levantando algumas gotas da chuva rala que caia. – Pode deixar que eu fecho portão, disse mostrando os dentes amarelos. A cara estava amassada graças ao sono. Caio preferiu não perguntar aonde o tio iria, mas disse que não era bom deixar Taís em casa sozinha. O tio o chamou de ingrato e, então, Caio agradeceu rispidamente sabe-se lá o que e, com um aceno de cabeça, manobrou e foi embora deixando a fumaça para trás.

O homem parado em frente ao portão branco da própria casa tossiu quando seu Fiat, dirigido pelo sobrinho imprudente, soltou fumaça e fuligem. Já deviam ser por volta das quinze horas e a sede era insuportável. Pôs o casaco para se proteger das poucas gotas que caiam. Alguns raios de sol podiam ser vistos, de qualquer forma estava abafado e chovia. Isso só contribuía para a sede aumentar. Ele seguiu a pé até a Rua José Gomes, que fazia esquina com sua rua, para ir ao Supermercado Tuta.

Cumprimentou Cléu e Mara, as atendentes – garotas novinhas, rechonchudas e solteiras – (será que estava velho demais para aquilo?) e pôs-se a passear pelas prateleiras do estabelecimento. Sua fase de beber aqueles destilados chiques havia passado, Quem dera aguentasse…, pensava. Como as bebidas tinham ficado caras; não entendia porque faziam tanta propaganda na TV e não baixavam o preço para o bom consumidor consumir. Falou com uma dona qualquer prostrada ao seu lado como o preço da cerveja estava um absurdo. Ela acenou sorrindo e disse que o feijão também estava muito caro. – Que se danem os feijões todos!, queria dizer para a senhora. Mas só estalou a língua e saiu dali apressado. Não se despediu de Cléu e Mara na saída; provavelmente estavam envolvidas também nessa máfia do preço da cerveja.

Do outro lado da rua um homem acenava para ele e gritava: – Oh, bixona! – Oh, bixona. Ele era a bixona? Não, talvez o merda do sobrinho, mas ele não; ele não era bixona. De qualquer forma foi ter com o homem de lá, e foi com os punhos cerrados e arregaçando as mangas. Mas era Luh, um amigo de copo sujo, que dizia estar com muita saudade dele e que as idas aos bares não eram a mesma coisa enquanto ele viajava. Conversaram rapidamente sobre banalidades do meio conjugal. O homem decidiu contar ao amigo a história da viagem e como foi incrível terminar a garrafa de pinga em apenas dois dias. Ambos riram muito daquilo e, por fim, Luh fez um convite:

– Vamos até o Alexandre. Ele tá me devendo umas! A gente descola um bom gole hoje ainda.

O espetinho do Alê só abria às seis da tarde. Mas, perto de a Rua José Gomes virar Santa Terezinha – na esquina da R. Expedicionário Antonio Estevon – tinha um barzinho que abria mais cedo, onde podiam ficar esperando. E ficaram! O preço da Skol lá era quatro e cinquenta por seiscentos mililitros e a Brahma era cinco reais; se você pagasse quarenta e nove centavos a mais, ganhava quatrocentos mililitros a mais de Brahma. Um litro a preço de banana! Comprou três garrafas de um litro e, ao todo, beberam duas garrafas e meia cada um dos dois. E antes do relógio marcar minuto pras seis da tarde a turma deles já estava boa: Sérgio e mais três camaradas: Luh, Chico e Cácá.

O relógio apitou. Tenho que ir pra casa, pensava, mas ainda era cedo. Chico chamou para irem para o Alexandre – que já devia estar aberto – e Luh concordou ferozmente. Por que não? Já estavam perto, seria apenas um pulo, nada demais. E assim foram ao Churrasquinho do Alexandre, na Av. Santa Terezinha e ao vê-los – os primeiros clientes do dia – Alê deu um guincho de alegria e, entre abraços e cumprimentos de mão, premiou uma dose de cachaça para Sérgio, que acabara de voltar de viagem. Ele tentou se segurar depois da dose: não queria ficar legal tão rápido, era melhor segurar a onda. Perguntou se naquele dia o Alê ficava aberto até mais tarde; era bom estar com os amigos e seria bom continuar com eles até o dia clarear. Isso lembrava a juventude. Hora foi e o bar encheu; cheiro de gordura fritando e de cerveja barata. Ele contou a história para Chico e Cácá enquanto Luh ia ao banheiro: – A garrafa de pinga não durou nem um dia. Riram bastante daquilo e, quando chegou com dúvida da graça, Luh pediu para contarem o caso de novo e Sérgio contou-o fazendo novamente a graça de toda turma.

Sobrinho chegou por volta das sete e meia no Alê. Era um sujeito que não tinha lá seus trinta anos de idade. Tinha o apelido por herançar uma empresa de uns tios distantes: um empresário jovem, bem trajado e com cheiro de virilidade, não fosse pequeno e franzino seria perfeito. Mas falava inglês fluentemente e estava aprendendo o francês. Era cruzeirense, mas gostava mais do futebol europeu que das ligas brasileiras. Era um homem bem receptivo o qual todos gostavam independente a idade. Sempre era quem puxava o assunto sobre os jogos e o andamento do campeonato e, assim, fez os dali do bar começarem a discutir futebol.

– Mas, oh Sérgio, cê sabe que o Cruzeiro vai pra segunda divisão esse ano, né?!

Aleluia!, muitos dos que ouviram gritaram, rindo; incluindo alguns do grupo dos amigos, levantando o copo e chamando um brinde. “Fulano num serve pra lateral não”; “você lá é técnico por acaso?”; “deve de entender nada do que ta falando!”; “eu conheço o presidente do clube, vai ser prefeito”. Alê tentava acalmar os ânimos do pessoal, mas tudo era em vão. Sempre que discutiam futebol, mesmo fora de dia de jogo, dava confusão.

Em um momento de euforia das partes, rindo em deboche e com a blusa empapada de cerveja e sangue de boi, Sérgio se levantou e vociferou contra Sobrinho, que estava em sua mesa com os camaradas, filando um pouco de cerveja e carne:

– Cê acha que tem peito, ô Maria? Timeco de merda o seu… Aqui é Galão, porra!, e gargalhou.

Sobrinho não aceitou a piada: não se segurou. Pôs-se de pé e apanhou o cara pela gola da camisa – o que era difícil de imaginar, pois era menor do que Sérgio – e começou a praguejar contra, cuspindo enquanto falava. Luh e Cácá fizeram uma vaquinha e foram comprar mais uma rodada de cerveja enquanto Chico e outros que ali estavam tentavam trazer Sobrinho à tona. Assim que os outros dois voltaram para mesa com as garrafas, Sobrinho recuperou a lucidez, soltou o rival de time e, pedindo desculpas, saiu para um canto com Chico e duas das garrafas.

– Ei Sérgio! Toma mais uma rodada, essa é por minha conta essa!

Ajeitando a gola amarrotada, Sérgio conferiu o relógio e viu que já eram vinte e quarenta e três da noite. Já era hora de voltar para casa. E assim fez: despediu-se dos amigos, passou a mão numa garrafa que os amigos pagaram e foi descendo a pequena ladeira de volta a sua rua. Não tinha ficado legal ainda. Pois, então, passou no Tuta para comprar uma última saideira e quando tentou passar o cartão deu cartão inválido, cartão inválido. Ficou irritado pelo cartão não passar e pelo número de rodadas que havia pagado no Alê e pela camisa amarrotada e estragada pela sujeira e pelo colega. Parasitas filhos da puta!, tudo o irritava. Foi para casa cambaleando de estresse em passos e pensamentos.

O homem abriu o portão de casa e a sobrinha veio o receber. Ela cumprimentou á distância e disse que Caio estava bravo com ele. Ele disse que a amava e ela sorriu e correu para dentro de casa dando risadinhas. Aquela caminhada toda até em casa tinha o cansado e não havia mais nada que pudesse beber. Entrou lar adentro. Foi até o quarto de Caio, que lia alguma coisa pouco importante…

– O que você tá lendo aí?, falou como pôde e o sobrinho respondeu sem olhá-lo nos olhos que lia o Counterparts. Ficou se perguntando que diabos era isso e o moleque percebeu e disse em auto e bom tom:

– É a Contrapartida.

O tio saiu do quarto repetindo consigo: – É a Contrapartida, titio, pois não!, – É a contra partida… Isso o lembrou de futebol e de Sobrinho.

Após deixar-se cair no sofá da sala e ligar a televisão berrou: – Filho da puta!. Não passava nada de interessante; deixou em um canal sobre vida animal. Era incrível como os leões devoravam os búfalos. E os leões tomam água com tanta graça – que sede aquela cena o causara. Pôs-se de pé. Gritou casa à dentro:

– Vocês tão com fome, né filhos?!

A resposta demorou um segundo, mas veio. Dois não, seguidos de um “tá cheio de pão aqui em casa”. Sim! Ergueu-se de repente, estava convicto agora. Saiu às pressas de casa para o quintal e do quintal para a rua, com toda a dignidade do mundo. Bateu o portão a suas costas e seguiu o percurso a passos rápidos até chegar ao Espetinho do Alexandre. Passaram-se uns trinta minutos dele tentando convencer o Alê a liberar umas bebidas pois o cartão dava inválido; felizmente o dono do bar cedeu: tinha anotado fiado quatro Budweiser longneck, um litrão de Brahma e dois espetinhos de carne de boi. O homem voltou para casa bebendo algumas das Budweiser porque a sede era tamanha.

– Eu trouxe espetinho de carne de boi lá do Alexandre pra vocês! Venham comer. Caio e Taís… Venham.
Caio veio rapidamente do quarto e, mesmo antes de sair de lá, já sentia o cheiro de álcool inundar a casa. Chegando à cozinha, passou pelo tio bêbado (que continuava dizendo repetidamente que trouxe churrasquinho) de forma esguia e abriu a geladeira; viu que dentro dela havia duas garrafas de Budweiser e uma maior de Bhrama. Seus dedos tremiam e fez o possível para que o tremor não atingisse a boca, o que, infelizmente, falhou. Fechou com força a porta da geladeira e conseguiu ganhar a atenção do homem que monologava sobre espetinhos de carne de boi. Quando ele olhava profundamente para o sobrinho, Caio se lançou contra ele:

– Patético, tio. Patético!

O tio soluçou algumas vezes e, em seguida, começou a gritar, para todo o bairro ouvir, se aquilo era maneira de se falar com o próprio pai. Aquilo não era maneira de se falar com o próprio pai.

Mas ele não era pai dele há muito tempo.

Nunca tinha sido. Caio foi para o quarto com um gosto ruim na boca. Não conseguiu falar o que queria, por quê? Queria era pegar a irmã e desaparecer daquela casa, mas não podia. Não podia deixar a tia sozinha com o tio. Contentou-se a deixar-se na cama ouvindo um pouco os pensamentos até pegar no sono. Escutou os rugidos de leão vindos da sala, os da cadela a uivar, e os do tio, que ainda perguntava sabe-se lá para quem se aquilo era maneira de se falar com um pai.

Você fala assim com seu pai? Você fala assim com seu pai? Caio dormiu.

Acordou durante a madrugada com o barulho da porta do canil – que ficava embaixo de sua janela – se abrindo e, em seguida, se fechando. Conferiu as horas no celular: duas e quarenta e oito da madrugada. Alguém prendia a cadela, talvez para sair com o carro. Mas quem? Assustado, levantou-se e trancou a porta do quarto e correu para a cama e se escondeu embaixo das cobertas. Esperou um tempo passar e foi ligar o ventilador para que, com isso, outros barulhos fossem apagados pelo zumbi-chiado do aparelho. Deu certo e conseguiu voltar a dormir.


Marta deu sinal no controle do portão eletrônico e ficou um minuto se perguntando por quê diabos o portão não abria. Lembrou-se então de que o controle do portão era, na verdade, do portão eletrônico da casa de sua mãe. Puxou o freio de mão e abriu o portão manualmente: como tinha que ser. O carro do marido não estava na garagem. Justificável, já era cedo e o sobrinho e a sobrinha tinham de ir para o trabalho e para a escola.

– Estou em casa…

Era sua voz que ouvia, voz ainda vinda de casa de idoso homeopático; precisava normalizar. Ela seguiu no corredor de seu lar e conferiu primeiro o quarto de Taís e em seguida o de Caio e, por fim, o próprio quarto. Ninguém à vista mesmo… Foi até a cozinha, reparou em algumas garrafas de Heineken sobre o balcão, próximas a uma barrigudinha; juntou-as e colocou nas grades que ficavam no quintal e que já estavam quase todas cheias de garrafas. Foi, então, até a sala. A porta estava fechada, mas não trancada. Abriu-a. Viu o marido esticado no chão, com baba a escorrer boca abaixo, um cheiro de bebida no ar, com roncos ao som de leões do Animal Planet e pensou: estou em casa…

Detalhes

O conto “Contrapartida” integra a coletânea Primeiros e outros contos, editada e publicada por Gabriel Reis Martins, em 2019, e que ganhou uma versão digital para o kindle, em 2020. Na obra, o autor faz uma seleção de quinze histórias curtas autorais, transitando entre um estilo realista, de linguagem objetiva, e outro em que as brincadeiras com a linguagem e com a narrativa são mais frequentes.

Aperte os cintos

Houve uma época em que usar o cinto de segurança quando se estava no assento de trás do carro era uma veleidade. Algo tido como mera formalidade opcional. As viagens, por mais longas que fossem ou por mais sinuosas que as estradas se apresentavam à frente no trajeto, sempre guardavam um quê de perigo iminente, por mais que não nos atentássemos a isso. Quando o porte físico ainda me permitia, revezava a posição entre um cochilo encolhido deitado ao banco, desconfortável mas aconchegante pela sensação de velocidade e pelo vento que entrava turbulento pela janela, e um estado de espera suspensa e ansiosa pela chegada ao destino, em que ficava assentado, apoiando o queixo sobre as mãos. O olhar fixava-se através do vidro da janela para uma paisagem que passava muito rapidamente e cuja configuração se alterava entre árvores e pequenas casas de distritos isolados.

Imagino que nesse olhar algo monótono, a mente tenda a criar formas de se entreter para preencher aquele excesso do qual é difícil absorver alguma imagem real perene. Constantemente me punha com olhar fixo a uma árvore ou a um poste de luz muito adiante na estrada, e aquele curto espaço tornava-se o objetivo último do percurso: “sairei vitorioso dessa corrida assim que ultrapassarmos aquele objeto estático, logo então ficarei em primeiro lugar e atingirei o mais alto lugar do pódio”. E a corrida tornava-se uma competição pessoal, individualizada, inexistente para os outros passageiros, silenciosa. A tensão era crescente à medida que se aproximava o concorrente inanimado. Os últimos momentos antes da ultrapassagem faziam prender a respiração, e numa passagem quase invisível o poste era deixado para trás e a missão estava concluída com sucesso: alívio; sensação de dever cumprido — antes de retornar à monotonia e alterar a posição para tentar um novo sono vigilante.

Jovem e inocente, ainda havia muito o que aprender… Sempre ouvira a seguinte fala, dos mais diversos adultos: “Você entenderá quando ficar mais velho”. Quando finalmente chegaria esse momento em que o entendimento das coisas, de súbito, instalar-se-ia em mim e transformaria minha infância em minha maturidade? Esse estado de espera por algo que nunca se sabe exatamente quando cria uma angústia. O caminho se mostra cada vez mais estreito, a ansiedade torna-se parte constituinte da espera. Os objetos do cotidiano são realizados de maneira cada vez mais rotineira e irrefletida, como um caminho já traçado a ser percorrido com maiores ou menores obstáculos pouco a pouco transpassados. É como a construção de um edifício interminável, sua fundação parece nunca ter fim. O castelo na areia, a terra absorta, movediça, absorve lentamente a esperança de transformação. A árvore na estrada parece nunca chegar: Zenão — sempre metade, metade, metade… ao infinito.

Passa. Está terminada a corrida, já me encontro na primeira posição; o edifício está concluído. Nada mais está adiante, o caminho está aberto. Mas a visão está em choque, fixada atrás, nostalgicamente observando o que passara num piscar de olhos. O tempo chega — de absoluta depuração. O que resta é a saudosa memória do poste que ficou para trás. O objetivo tão aclamado se desfez em tédio, em remembranças incertas, em dúvidas. Ficou para trás a criança e sua inocência — o olhar passa quase desapercebido por este exato momento em que, lado a lado, encontram-se o ser e o seu duplo, até que sua velha metade é deixada ao longe, e sua memória travessa trai o agora impossível ímpeto pelo seu retorno. Assim deixamos para trás grande parte de nós mesmos, de uma esperança aflitiva para atingir o momento tal em que tudo se alteraria para sempre, e quando finalmente se chega, o que nos resta é a sensação vã de que aquela esperança sempre fora uma grandíssima inocuidade. Os olhos que agora deveriam contemplar o vale imenso de possibilidades à frente não conseguem senão tornar-se para a trilha estreita que passou. Não nos foi dado tempo o suficiente para contemplarmos a passagem, aquele instante perfeito em que o “eu” se divide para sempre. Não nos é dada a oportunidade de dar adeus a uma parte querida de nós mesmos, que eternamente estará perdida no abismo do tempo. O canto harmônico — ode à existência do instante em que se tem completa a vida –; este preciso momento praticamente inexistente, pois que os olhos não o conseguem captar sob tamanha velocidade, é o que se chama — eternidade.

Mas passou…


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

“À Deriva”

Há alguns dias ou semanas, lembro-me de ter visto em algum portal digital uma reportagem sobre um determinado ponto do Oceano Pacífico cuja localidade exata guardaria a maior distância com relação a qualquer porção de terra continental na face do planeta. Se me recordo com alguma precisão, havia menção a uma tendência de maior migração de animais marinhos e aves, dirigindo-se a esse ermo absoluto por diversas razões relacionadas à ação antrópica, como a pesca predatória e uma maior concentração de poluentes nas águas e no ar.

Imaginei-me sentado de pernas cruzadas neste exato ponto, como que flutuando por sobre a mais vasta imensidão do oceano, sentindo o fluxo das correntes marítimas sob minhas pernas, sem me afundar na água ou ser violentamente dilacerado pela vida animal que pouco tomaria nota da minha presença inútil ali. Imagino-me assim, pois, em um completo estado de distanciamento, de olhos bem abertos, experienciando a mais terrivelmente sublime das imensidões solitárias e das solidões imensas do ser.

Assim naufrago no isolamento ensimesmado dentro de meu próprio desengano, mas com a sutil diferença de sentir a traição dos sentidos, pois que eles não me permitem ausentar-me a essa maneira da grande máquina que gira à revelia de qualquer intervenção – humana, animal, cósmica ou divina. A atração gravitacional que assola os impulsos do meu corpo em direção a essa roda incessante faz do retorno ambiguidade: em qual dos dois estados se estaria mais próximo da realidade?

Levantar o olhar novamente através das grades da janela para a maré de prédios sob a cacofônica rapsódia de construções civis, veículos automotores e vozes alheias fez cruzar em meus pensamentos versos daquele a quem gosto de apelidar “O Poeta Desterrado”:

Eu me engano: a região esta não era; 
Mas que venho a estranhar, se estão presentes 
Meus males, com que tudo degenera. 

É de muito difícil compreensão e racionalização a experiência do isolamento. Criou-se uma dependência vital de controle, planejamento, que por ora escapa completamente às nossas ações e segue rumo peremptório desconhecido – talvez muito mais próximo do retorno ao vazio imenso do qual somos provenientes do que se possa prever ou sequer imaginar. A completa modificação do espaço se confunde com a total virgindade da paisagem oceânica: daqui, de dentro, o que altera a experiência, o que degenera o espaço com o qual convivemos é o olhar atordoado de quem se viu perdido em um universo de rumos randômicos.

Não há, nem aqui, nem lá, possibilidade de construção de sentido – por mais que se empenhe toda a energia humana na construção deste trilho, a distância (aparente ou não) é infinita, e a terra firme não passa de uma ilusão. Sinto como se o fluxo das correntes marítimas naquele ponto, o mais distante do oceano, fosse subitamente interrompido, e meu corpo, atônito, finalmente afundasse.

13 de abril de 2021.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Conto – “Cantiga dos esponsais”, de Machado de Assis

Apresentação

Machado de Assis é instigante, genial, talvez o maior escritor que o Brasil já produziu e ultimamente um autor polêmico – pegando emprestado aqui esse epíteto curioso, que vem ganhando força nos últimos tempos, principalmente por conta das questões decolonias (sendo Machado um autor negro) e por conta também do debate mais recente envolvendo o Bruxo do Cosme Velho, no qual o influencer digital, Felipe Neto, decretou uma espécie de “morte a Machado” e a outros clássicos brasileiros.

No post de hoje, nós vamos driblar essa discussão para trazer um dos vários contos produzidos pelo célebre autor. Já é sabido pela crítica e por seus leitores mais frequentes que um dos temas caros a Machado é a relação existente entre a cultura erudita e a cultura popular no Brasil, debate que aparece em sua obra sob máscaras diversas, podendo estar nas cenas dos bailes, da corte do Rio de Janeiro, ou mesmo nos conflitos internos, de personagens que parodiam a realidade fria da Europa em cidades com um calor de mais de trinta graus.

Entre as máscaras construídas para abordar essa temática, a música aparece com bastante frequência, sendo utilizada, com todo o brilhantismo machadiano, como demonstração da oscilação existente entre o eruditismo e o populário na cultura brasileira. O conto Cantiga dos esponsais, ao lado de O machete e Um homem célebre, tem justamente esse tema como motivo. Além disso, segundo o que o professor e pesquisador José Miguel Wisnik nos diz – em seu famoso ensaio, Machado maxixe –, esse conto demonstra com precisão as tensões que atravessam a produção cultural de nosso país. Por isso mesmo, sem mais delongas, leiamos essa narrativa exemplar, de Machado de Assis.

Cantiga dos esponsais (1884)

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. “Quem rege a missa é mestre Romão” — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: “Entra em cena o ator João Caetano”; — ou então: “O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias.” Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

— Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.

— Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele…

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: — a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

— Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.

— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal…

— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica…

O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

— Para quê? disse o mestre. Isto passa.

O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão, — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

— Está acabado, pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras: — Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas…

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão…

O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

— Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar…

Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá….

— Lá, lá, lá…

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.

— Lá, dó… lá, mi… lá, si, dó, ré… ré… ré…

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

— Lá… lá… lá…

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.

Conto – “Brincadeirinha”, de Anton Tchékhov

Brincadeirinha

Meio-dia claro de inverno… O frio forte fustiga. Os cachos e a penugenzinha sobre o lábio de Nádienka*, agarrada ao meu braço, cobrem-se com a geada prateada. Estamos no alto da colina. Estende-se, dos nossos pés até lá embaixo, uma superfície íngreme na qual o sol se reflete como num espelho. Perto de nós, pequenos trenós ornados com tecido vermelho brilhante.

— Vamos descer, Nadiejda Petrovna! — suplico. — Só uma vezinha! Eu garanto que ficaremos sãos e salvos.

Mas Nádienka tem medo. Toda a extensão, das suas pequeninas galochas até o final da colina gelada, parece-lhe um abismo assustador, terrivelmente profundo. Sua alma desfalece e ela perde o ar só de olhar para baixo, só de eu lhe dizer que se sente no trenó, mas o que é que acontecerá se ela arriscar voar no abismo?! Ela vai morrer, vai ficar louca.

— Eu lhe suplico! — digo. — Não precisa ter medo! Saiba que isso é falta de coragem, covardia!

Nádienka finalmente cede, e eu vejo no seu rosto que ela cede temendo pela própria vida. Eu a acomodo, pálida, trêmula, no trenó, envolvo-a nos meus braços e, juntos, despencamos despenhadeiro abaixo.

O trenó voa como uma bala. O vento cortante bate no rosto, ruge, assobia nos ouvidos, machuca, pinica doído com raiva, tenta arrancar a cabeça dos ombros. Por causa da pressão do ar, não há forças para respirar. Parece que o próprio diabo nos abraçou com suas garras e com um rugido nos arrasta para o inferno. Os objetos ao redor se confundem numa única, longa faixa borrada pelo movimento rápido… Só mais um pouquinho e parece que vamos morrer!

— Eu amo você, Nádia! — digo em meia voz.

O trenó começa a deslizar mais e mais lentamente, o gemido do vento e o ranger das lâminas já não são tão assustadores, o fôlego deixa de faltar e finalmente estamos lá embaixo. Nádienka não está nem viva nem morta. Está pálida, mal respira… Eu a ajudo a descer.

— Não vou de novo por nada, — ela diz, me encarando com os olhos arregalados, repletos de medo. — Por nada nesse mundo! Eu quase morri!

Pouco tempo depois ela volta a si e já me encara interrogativamente nos olhos: teria eu dito aquelas quatro palavras, ou elas apenas se fizeram ouvir no barulho do turbilhão? Enquanto eu, de pé diante dela, fumo e examino atentamente a minha luva.

Ela me toma pelo braço e nós passeamos longamente perto da colina. O mistério visivelmente não lhe dá paz. As palavras foram ou não foram ditas? Sim ou não? Sim ou não? Essa é uma pergunta de amor-próprio, de honra, de vida, de boa-sorte, uma pergunta muito importante, a mais importante no mundo.

Nádienka observa o meu rosto, impaciente e melancólica, com o olhar penetrante, responde desconcertada, aguarda, será que vou falar? Ah! Quanta confusão naquele rosto adorável, quanta confusão! Eu vejo, ela confronta a si mesma, precisa dizer algo, perguntar alguma coisa, mas não alcança as palavras, sem-jeito, assustada, impossibilitada pela alegria…

— Quer saber? — diz, sem me olhar.

— O quê? — pergunto.

— Vamos de novo… escorregar.

Nós subimos a colina pelas escadas. E de novo eu sento uma Nádienka pálida e trêmula no trenó, de novo nós voamos pelo abismo assustador, de novo o vento ruge e chiam as lâminas e, de novo, na curva mais fechada e barulhenta eu falo em meia voz.

— Eu amo você, Nádienka!

Quando o trenó para, Nádienka lança o olhar para a colina pela qual nós há pouco escorregamos, e depois observa longamente o meu rosto, atenta à minha voz indiferente e fria, e toda, toda — até mesmo o seu regalo e o capuz — toda a sua figura demonstra extrema surpresa. E em seu rosto está escrito:

“Qual é o problema? Quem disse estas palavras? Ele, ou só ouvi demais?”

Esta incerteza a inquieta, tira sua paciência.

A pobre menina não responde à pergunta, franze a testa, pronta pra cair no choro.

— Não deveríamos voltar para casa? — pergunto.

— Mas eu… eu estou gostando do passeio, — ela responde, corando. — Não podemos ir de novo?

Ela “gosta” do passeio mas, ao mesmo tempo, ao sentar-se no trenó está, como nas outras vezes, pálida, quase não respira de medo, treme.

Nós descemos pela terceira vez e vejo como ela olha o meu rosto, vigiando os meus lábios. Mas eu aproximo o lenço dos lábios, tusso e, quando alcançamos a metade da colina, tenho tempo de declarar:

— Eu amo você, Nádia!

E o mistério permanece um mistério! Nádienka se cala, pensa em alguma coisa…. Eu a acompanho da pista até em casa, ela se esforça para seguir em silêncio, segura os passos e a todo momento aguarda, será que lhe direi aquelas palavras? E eu vejo como lhe padece a alma, como ela se força para não dizer:

— Não acredito que foi o vento que disse! Eu não quero que tenha sido o vento!

Na manhã seguinte, recebo um recadinho: “Se você for hoje na pista de patinação, passe pela minha casa. N.” Desde aquele dia, começo a passear de trenó com Nádienka diariamente e, voando colina abaixo, todas as vezes digo com meia voz aquelas mesmas palavras:

— Eu amo você, Nádia!

Logo Nádienka se apega a essa frase, como ao vinho ou à morfina. Já não pode viver sem ela. É verdade que voar da montanha ainda assusta, mas agora até o medo e o perigo dão um charme especial às palavras de amor, palavras que ainda mascaram o mistério e atormentam a alma. Somos ambos suspeitos: o vento e eu… Qual dos dois lhe faz juras de amor ela não sabe, mas pelo visto tanto faz; não importa de que garrafa beba, conquanto fique bêbada.

Certa vez, ao meio-dia, fui sozinho à pista; misturando-me à multidão, vejo como Nádienka se aproxima da colina, como me procura com os olhos… Em seguida sobe timidamente pelas escadas… Que assustador é ir sozinha, oh, que assustador! Ela está pálida como a neve, treme, caminha como quem vai para sua execução, mas vai, vai sem olhar pra trás, decidida. Parece que, enfim, ela decidiu provar: será que aquelas maravilhosas, doces palavras serão ouvidas se eu não estiver lá? Vejo como ela, pálida, com a boca aberta de pavor, senta-se no trenó, fecha os olhos e, dando para sempre adeus à terra, toma impulso… “Shhhh” — chiam as lâminas. Se Nádienka teria escutado ou não aquelas palavras eu não sei… Vejo apenas como ela desce do trenó extremamente exausta, fraca. E é visível em seu rosto que nem mesmo ela sabe se ouviu ou não ouviu alguma coisa. O medo, enquanto ela descia, roubara-lhe a habilidade de ouvir, de diferenciar os sons, de entender.

Mas eis que começa março, o mês da primavera… O sol se torna mais amigável. A nossa colina gelada escurece, perde seu brilho e finalmente derrete. Todos paramos de escorregar. A pobrezinha da Nádienka não tem mais onde ouvir aquelas palavras, nem ninguém que as diga, assim como vento nenhum pode ser ouvido, e eu me mudarei para Petersburgo — por bastante tempo, talvez para sempre.

Certa vez ao entardecer, uns dois dias antes da partida, sento-me no jardim, e o pátio da casa de Nádienka separa-se deste jardim por uma cerca alta com pregos… Ainda faz bastante frio, sob o estrume ainda há neve, as florestas estão mortas, mas já se sente o cheiro da primavera e, retirando-se ao cair da noite, corvos grasnam ruidosamente. Eu me aproximo da cerca e fico por muito tempo espiando pelo vão. Eu vejo quando Nádienka sai para a varanda e volta o olhar tristonho e ansioso para o céu… O vento da primavera sopra diretamente em seu rosto pálido e sem graça… Ele a lembra daquele outro, que então rugia para nós na colina, quando ela ouvira aquelas quatro palavras, e o seu rosto se torna triste, triste, uma lágrima escorre por sua bochecha… E a pobrezinha da menina estende ambas as mãos, como se pedindo a este vento que lhe traga uma vez mais aquelas palavras. E eu, esperando o vento, digo em meia voz:

— Eu amo você, Nádia!

Meu Deus, o que se passa então com Nádienka! Ela grita, sorri com todo o rosto e estende as mãos em direção ao vento, feliz, alegre, tão bonita.

E eu me recolho…

Isso foi já há muito tempo. Agora Nádienka já está casada; deram-na em casamento ou ela escolheu sozinha — para uma nobre tanto faz, e agora ela já tem três filhos. Mas, a forma como uma vez passeamos de trenó e como o vento lhe soprou as palavras “Eu amo você, Nádienka”, não foi esquecida. Para ela essa ainda é a mais alegre, mais tocante e bela lembrança da vida…

E agora que fiquei mais velho, já não sei por que disse aquelas palavras, por que brinquei…

ШУТОЧКА

Ясный, зимний полдень… Мороз крепок, трещит, и у Наденьки, которая держит меня под руку, покрываются серебристым инеем кудри на висках и пушок над верхней губой. Мы стоим на высокой горе. От наших ног до самой земли тянется покатая плоскость, в которую солнце глядится, как в зеркало. Возле нас маленькие санки, обитые ярко-красным сукном.

— Съедемте вниз, Надежда Петровна! — умоляю я. — Один только раз! Уверяю вас, мы останемся целы и невредимы.

Но Наденька боится. Всё пространство от ее маленьких калош до конца ледяной горы кажется ей страшной, неизмеримо глубокой пропастью. У нее замирает дух и прерывается дыхание, когда она глядит вниз, когда я только предлагаю сесть в санки, но что же будет, если она рискнет полететь в пропасть! Она умрет, сойдет с ума.

— Умоляю вас! — говорю я. — Не надо бояться! Поймите же, это малодушие, трусость!

Наденька наконец уступает, и я по лицу вижу, что она уступает с опасностью для жизни. Я сажаю ее, бледную, дрожащую, в санки, обхватываю рукой и вместе с нею низвергаюсь в бездну.

Санки летят как пуля. Рассекаемый воздух бьет в лицо, ревет, свистит в ушах, рвет, больно щиплет от злости, хочет сорвать с плеч голову. От напора ветра нет сил дышать. Кажется, сам дьявол обхватил нас лапами и с ревом тащит в ад.

Окружающие предметы сливаются в одну длинную, стремительно бегущую полосу… Вот-вот еще мгновение, и кажется — мы погибнем!

— Я люблю вас, Надя! — говорю я вполголоса.

Санки начинают бежать всё тише и тише, рев ветра и жужжанье полозьев не так уже страшны, дыхание перестает замирать, и мы наконец внизу. Наденька ни жива ни мертва. Она бледна, едва дышит… Я помогаю ей подняться.

— Ни за что в другой раз не поеду, — говорит она, глядя на меня широкими, полными ужаса глазами. — Ни за что на свете! Я едва не умерла!
Немного погодя она приходит в себя и уже вопросительно заглядывает мне в глаза: я ли сказал те четыре слова, или же они только послышались ей в шуме вихря? А я стою возле нее, курю и внимательно рассматриваю свою перчатку.

Она берет меня под руку, и мы долго гуляем около горы. Загадка, видимо, не дает ей покою. Были сказаны те слова или нет? Да или нет? Да или нет? Это вопрос самолюбия, чести, жизни, счастья, вопрос очень важный, самый важный на свете. Наденька нетерпеливо, грустно,

проникающим взором заглядывает мне в лицо, отвечает невпопад, ждет, не заговорю ли я. О, какая игра на этом милом лице, какая игра! Я вижу, она борется с собой, ей нужно что-то сказать, о чем-то спросить, но она не находит слов, ей неловко, страшно, мешает радость…

— Знаете что? — говорит она, не глядя на меня.

— Что? — спрашиваю я.

— Давайте еще раз… прокатим.

Мы взбираемся по лестнице на гору. Опять я сажаю бледную, дрожащую Наденьку в санки, опять мы летим в страшную пропасть, опять ревет ветер и жужжат полозья, и опять при самом сильном и шумном разлете санок я говорю вполголоса.

— Я люблю вас, Наденька!

Когда санки останавливаются, Наденька окидывает взглядом гору, по которой мы только что катили, потом долго всматривается в мое лицо, вслушивается в мой голос, равнодушный и бесстрастный, и вся, вся, даже муфта и башлык ее, вся ее фигурка выражают крайнее недоумение. И на лице у нее написано:

«В чем же дело? Кто произнес те слова? Он, или мне только послышалось?»

Эта неизвестность беспокоит ее, выводит из терпения. Бедная девочка не отвечает на вопросы, хмурится, готова заплакать.

— Не пойти ли нам домой? — спрашиваю я.

— А мне… мне нравится это катанье, — говорит она, краснея. — Не проехаться ли нам еще раз?
Ей «нравится» это катанье, а между тем, садясь в санки, она, как и в те разы, бледна, еле дышит от страха, дрожит.

Мы спускаемся в третий раз, и я вижу, как она смотрит мне в лицо, следит за моими губами. Но я прикладываю к губам платок, кашляю и, когда достигаем середины горы, успеваю вымолвить:

— Я люблю вас, Надя!

И загадка остается загадкой! Наденька молчит, о чем-то думает… Я провожаю ее с катка домой, она старается идти тише, замедляет шаги и всё ждет, не скажу ли я ей тех слов. И я вижу, как страдает ее душа, как она делает усилия над собой, чтобы не сказать:

— Не может же быть, чтоб их говорил ветер! И я не хочу, чтобы это говорил ветер!

На другой день утром я получаю записочку: «Если пойдете сегодня на каток, то заходите за мной. Н.» И с этого дня я с Наденькой начинаю каждый день ходить на каток и, слетая вниз на санках, я всякий раз произношу вполголоса одни и те же слова:

— Я люблю вас, Надя!

Скоро Наденька привыкает к этой фразе, как к вину или морфию. Она жить без нее не может. Правда, лететь с горы по-прежнему страшно, но теперь уже страх и опасность придают особое очарование словам о любви, словам, которые по-прежнему составляют загадку и томят душу. Подозреваются всё те же двое: я и ветер… Кто из двух признается ей в любви, она не знает, но ей, по-видимому, уже всё равно; из какого сосуда ни пить — всё равно, лишь бы быть пьяным.

Как-то в полдень я отправился на каток один; смешавшись с толпой, я вижу, как к горе подходит Наденька, как ищет глазами меня… Затем она робко идет вверх по лесенке… Страшно ехать одной, о, как страшно! Она бледна, как снег, дрожит, она идет точно на казнь, но идет, идет без оглядки, решительно. Она, очевидно, решила, наконец, попробовать: будут ли слышны те изумительные сладкие слова, когда меня нет? Я вижу, как она, бледная, с раскрытым от ужаса ртом, садится в санки, закрывает глаза и, простившись навеки с землей, трогается с места… «Жжжж…» — жужжат полозья.

Слышит ли Наденька те слова, я не знаю… Я вижу только, как она поднимается из саней изнеможенная, слабая. И видно по ее лицу, она и сама не знает, слышала она что-нибудь или нет. Страх, пока она катила вниз, отнял у нее способность слышать, различать звуки, понимать…

Но вот наступает весенний месяц март… Солнце становится ласковее. Наша ледяная гора темнеет, теряет свой блеск и тает наконец. Мы перестаем кататься. Бедной Наденьке больше уж негде слышать тех слов, да и некому произносить их, так как ветра не слышно, а я собираюсь в Петербург — надолго, должно быть, навсегда.

Как-то перед отъездом, дня за два, в сумерки сижу я в садике, а от двора, в котором живет Наденька, садик этот отделен высоким забором с гвоздями… Еще достаточно холодно, под навозом еще снег, деревья мертвы, но уже пахнет весной и, укладываясь на ночлег, шумно кричат грачи. Я подхожу к забору и долго смотрю в щель. Я вижу, как Наденька выходит на крылечко и устремляет печальный, тоскующий взор на небо… Весенний ветер дует ей прямо в бледное, унылое лицо… Он напоминает ей о том ветре, который ревел нам тогда на горе, когда она слышала те четыре слова, и лицо у нее становится грустным, грустным, по щеке ползет слеза… И бедная девочка протягивает обе руки, как бы прося этот ветер принести ей еще раз те слова. И я, дождавшись ветра, говорю вполголоса:

— Я люблю вас, Надя!

Боже мой, что делается с Наденькой! Она вскрикивает, улыбается во всё лицо и протягивает навстречу ветру руки, радостная, счастливая, такая красивая.
А я иду укладываться…

Это было уже давно. Теперь Наденька уже замужем; ее выдали, или она сама вышла — это всё равно, за секретаря дворянской опеки, и теперь у нее уже трое детей. То, как мы вместе когда-то ходили на каток и как ветер доносил до нее слова «Я вас люблю, Наденька», не забыто; для нее теперь это самое счастливое, самое трогательное и прекрасное воспоминание в жизни…

А мне теперь, когда я стал старше, уже непонятно, зачем я говорил те слова, для чего шутил…

Notas

  1. Diminutivo carinhoso de Nadejda, que, por sua vez, significa ‘esperança’. Em português poderíamos traduzir por “Nadiazinha”. É importante que o leitor faça atenção à importância do significado do nome no contexto do conto. Nádienka, esperançazinha, torna-se assim não só o nome da personagem, mas também, potencialmente, uma de suas qualidades.
  2. A муфта (mufta), em português denominado como regalo, designa um acessório da moda comum aos países frios: trata-se de um cilindro forrado com peles ou outro tecido quente no qual o usuário pode enfiar as mãos, mantendo-as aquecidas. Muito utilizado por homens e mulheres, passa a ser acessório exclusivamente feminino no século XVIII e XIX, quando cai de moda e tem o uso abandonado.
  3. O башлык (bachlyk), aqui traduzido por capuz, é uma vestimenta típica de povos eslavos, tártaros, etc. caracterizado por um capuz em forma de cone com pontas longas que podem ser usadas como cachecol para envolver o pescoço e o rosto.
  4. O verbo темнеть (escurecer) faz referência ao processo de derretimento da neve. Do branco incólume da neve nova, passa-se gradualmente a um amarelado sujo que pouco a pouco se transforma em uma mistura marrom ou preta e lamacenta, mas ainda gelada.

Sobre esta tradução

Iniciada como um pequeno exercício didático há mais de um ano, a tradução se estendeu paralela à uma retomada vigorosa dos meus estudos da língua russa. Se em um primeiro momento me parecia impossível avançar as primeiras linhas, culpa da gramática particularmente complexa desse idioma eslavo, um ano depois foi com grato contentamento que me vi capaz de finalizá-la. A versão em português aqui presente é inteiramente original, uma vez que não foi consultada outra tradução (algo que não constitui em si nenhum orgulho, mas que cumpriu um papel no meu próprio processo de aprendizagem) e feita a partir do original russo (retirado do site da Biblioteca Komarov, excelente repositório de textos literários e capaz de fazer a alegria de qualquer russófilo).

Algumas notas pontuais se mostraram necessárias para esclarecer pequenas passagens e facilitar a experiência do leitor contemporâneo (o jovem de 2020 que, em plena pandemia, dificilmente conhece alguns detalhes do vestuário russo de inverno). Minha intenção principal, durante a tradução, foi recuperar dois aspectos marcantes do original: a sonoridade e a delicadeza. E por delicadeza eu quero me referir à fofura mesmo, pois o original russo é extremamente fofo e, por isso mesmo, deixa toda a aventura de Nadejda (Esperança, cujo apelidinho – eles! tão presentes em todo texto russo – é Nádiazinha!) ainda mais apaixonante.

A tradução é apresentada ao lado do texto original, no alfabeto cirílico, e isso por uma razão: não acredito que todos tenhamos, frequentemente, acesso ao cirílico e acredito que seja enriquecedor passar pela experiência de encarar o texto em um alfabeto que não é o seu.

Para além disso, uma expectativa: que qualquer leitor, ainda que diante de uma tradução, consiga experimentar junto de mim o êxtase que foi e é ler, ler literatura russa e ler literatura russa em russo.

Agradeço à minha professora, Paula Vaz Almeida, ela mesma tradutora (de um tipo mais profissional e mais publicado que o meu!) por todas as correções, dicas, conselhos e leituras ao longo de nossas aulas, e por me iluminar tantos pontos mais obscuros da prosa de Tchékov e do idioma dos meus amores.

Breve análise de “Brincadeirinha”

Шуточка (transliterado em “Chútotchka”: “brincadeirinha”, “piadinha” ou ainda “joguinho”) apresenta ao leitor vários aspectos da genialidade de seu autor, que dominou como poucos a arte das histórias curtas. Sua concisão já se mostra evidente no número de páginas, não mais que quatro ou cinco, o que só aumenta o assombro diante da potência e beleza do pequeno texto.

Deixando a narrativa ao encargo de um narrador pretensamente imparcial, mas, na verdade, profundamente implicado nos acontecimentos, vemos as ações se desenrolarem como num filme em que cada detalhe importa, o que faz da textura textual um elemento importante e altamente participativo da formação de sentido (algo evidente nas assonâncias que mimetizam as imagens e os movimentos). Inicialmente levado pela delicadeza e doçura das colocações do narrador, a tentação de conceder-lhe total confiança e acreditar na veracidade do que diz é simplesmente irresistível. Tchékov alcança assim o ápice de sua capacidade de manipulação dos princípios miméticos e joga com genialidade com os ideais realistas. Nossa jovem heroína Nadejda resta, assim, até o final da narrativa, uma espécie de enigma insondável, cujas parcelas ínfimas são iluminadas apenas pela vontade dúbia de nosso narrador. Reduzida à visão dele, só a alcançamos de forma indireta e através de uma visão passional e marcada pelo desejo.

Ao ler o conto vale sempre lembrar que, por mais que as imagens desfilem, aparentemente nítidas, como num filme, há sempre alguém que manipula a câmera e ilumina os elementos que lhe parecem mais relevantes, ou imprime-lhes as emoções que lhe parecem mais verdadeiras.

Conto – “Um homem célebre”, de Machado de Assis

– Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: – Desculpe meu modo, mas… é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875… Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

– Diga, minha senhora.
– É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

– Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

– Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

– A bengala.
– Mas parece que hoje chove.
– Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
– Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

– Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

– Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, – ou por alusão a algum sucesso do dia, – ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

– Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.
– Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

– E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil…

– As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

– Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
– Vai casar com uma viúva.
– Velha?
– Vinte e sete anos.
– Bonita?
– Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, – mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

– Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

– Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas… Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação… Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, – uma clara e fresca manhã de maio de 1876, – eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

– Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

– Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
– Nada.
– Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

– Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

– Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
– Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

– Adeus.
– Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

Referência

ASSIS, Machado de. Um homem célebre. In: Várias Histórias. W. M. Jackson Inc Editores, 1946.

* Este célebre conto de um de nossos maiores autores é utilizado frequentemente por pesquisadores que associam a história da literatura com a história da canção brasileira. O texto que talvez mais se detenha sobre esse relação é Machado Maxixe, de José Miguel Wisnik, que estuda o “caso Pestana”.

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