Conto – “O Palácio de Cristal”, de Paulo Bittencourt

Os portões do Palácio de Cristal estavam intactos, mesmo seus arredores estando completamente arruinados. Apesar de os escombros dificultarem a chegada até os arcos metálicos que circundavam a entrada, o fenômeno era misterioso de uma maneira tal que se me apresentava irresistível em seu convite. Com um pouco de esforço e levado pela curiosidade, cheguei frente à aldraba — um condor esculpido em prata, encardida pela poeira circundante e pelo efeito do tempo, cuja argola pendia do bico como uma presa inevitável.

Adentrei, e a impressão foi atravessar logo a barreira do tempo alguns séculos atrás. A disparidade era visível: o local estava impecavelmente limpo, o que ressaltou ainda mais o contraste com o lado de fora, que agora se apresentava para mim como um local longínquo, mesmo estando ainda há poucos metros da entrada já fechada. Mas para além mesmo da notável diferença nas condições do local, adentrá-lo reservou a meu corpo uma mudança súbita de estado — antes, o escuro tomava conta, e a criança chorava toda sua angústia em desespero, imprimindo sobre o escândalo sua energia; agora, o calor do peito da mãe acalentava, e é como se nada mais existisse nos arredores e a escuridão nunca houvera existido. Dentre as várias portas à minha vista, apenas uma delas estava entreaberta, e de lá emanava um parco feixe de luz capaz de iluminar parcialmente o trajeto até o local.

Mesmo com o coração em ritmo acelerado, estranhamente à medida que me aproximava daquele cômodo, aumentava em mim o sentimento de segurança. Não houve sequer hesitação ao lançar impávido a mão sobre a maçaneta e lentamente abrir a pesada porta de madeira ornada em metal ondulado, simulando colunas jônicas, ao melhor estilo neoclássico. Lá se viam duas poltronas de couro marrom separadas por uma pequena mesa de centro, à altura dos braços, em cuja superfície fixava-se um candelabro com espaço para até cinco velas de tamanho médio, apesar de apenas três estarem lá fixadas e uma acesa, tornando o ambiente mal iluminado, mas suficientemente visível aos olhos.

À cadeira esquerda assentava-se um homem de feição apagada, à sombra de seu chapéu estilo fedora, de abas curtas e levemente curvadas à esquerda, que impedia a luz da vela de fazer claros os contornos de seu rosto. Nenhum centímetro de pele ficava à vista: o fraque e as luvas, as calças e o sapato, cobriam finamente o corpo bem ajustado e de pernas cruzadas do silencioso sujeito. Sentei-me na poltrona à sua esquerda com a perna arqueada e levemente irrequieta. A cena era convidativa à conversa, pois me pus a falar, rompendo primeiro a barreira do silêncio:

“Atlas Turned to Stone” – Edward Burne-Jones (1878)

— O senhor aparentemente está no mais pleno conforto aqui, em seu isolamento, cercado pela estrutura intocável deste palácio… Confesso que ao adentrar seu recinto, um inédito sentimento de segurança se apossou de meu corpo e, sem hesitar ou sequer me preocupar com qualquer formalidade de etiqueta, cá me apresento ao seu lado. Diga-me, como posso chamar-lhe? A quem devo prestar meu mais sincero respeito? — Procurei dirigir as palavras com serenidade e num tom algo grave, demonstrando ao mesmo tempo seriedade e empatia, para não causar nenhum tipo de constrangimento ao ambiente tão pacífico que construíra o homem.

Silêncio absoluto. A sombra tampava perfeitamente a feição deste estático senhor, o que tornava sua presença algo espectral.

— Sei que aqui, sentado ao seu lado, nada mais para mim se parece necessário. Você está absolutamente cercado da mais bela salvaguarda. Absteve-se da vulnerabilidade atormentadora do exterior, que agora encontra-se em ruínas. As espessas paredes de vidro que o separam daquele universo sequer sofreram um arranhão, e a calma rígida deste quarto, do seu corpo em estrutura formosíssima, seduzem-me à semelhança de uma torre de marfim, dentro da qual não há a menor exposição às intempéries daquele caos. O senhor me desperta uma aura de tão cristalina serenidade; mesmo o caráter lúgubre deste cômodo interior, em contraste à arquitetura translúcida do palácio, sequer traduz a impressão de qualquer solidão. Creio que este é um dos motivos que me levaram à desinibição de assentar-me aqui, ao seu lado. — Esta fala respeitosa com o mesmo tom da anterior, ao mesmo tempo suscitava um possível diálogo sobre aquela condição tão perfeita ao passo que pretendi de forma tangente um certo pedido de desculpas por minha entrada abrupta e desavisada.

Novamente nenhuma reação ou som procedeu de minha tentativa de estabelecer a comunicação. Cruzei as pernas de forma bastante similar àquele senhor, e mesmo na situação de silêncio um tanto quanto constrangedora a olhos alheios, meu corpo ainda se sentia plenamente seguro diante daquela figura, sem nenhuma vontade de levantar-me e sair.

— Sabe… O senhor é que está certo. Não há razão para se aventurar naquela selvageria. O mundo nunca se mostra da maneira como esperamos. De forma geral, há sempre um receio oculto das mais imprevisíveis surpresas. Por mais que por vezes avistemos belas flores a desabrocharem, virginais, à sorte das florestas, as rédeas nunca parecem corresponder aos nossos comandos, e o trote ligeiro imprime uma passagem invencível. Se junto àquela flor deixo minha alma, jamais a recobro; sigo com o corpo fechado, em estado de vertigem.

Senti aquelas finas camadas da mais perfeita segurança se sedimentando lentamente e transformando-se, de súbito, num tremor em minha mão direita, que repousava até então no braço de couro da poltrona. O estranhamento se me apossou ao perceber que esse mesmo tremor que agora tomava conta do meu corpo também assolava o fino senhor ao meu lado. Era como se a longa exposição àquele colo de mãe perdesse seu calor pelo costume banal, e fosse necessário agora negá-lo friamente, somente assim tornando-se possível a avaliação da perda. Impetuosamente dirigi àquele sujeito minha mão, que nervosa e flácida se aproximava da sua. O toque frio rapidamente desfez à minha frente sua imagem, e o espelho que nos separava estilhaçou-se. O fraque e o chapéu, as calças e o sapato, vestiam-me perfeitamente, como se feitos sob medida. O último suspiro da vela não me permitiu identificar a forma do meu próprio rosto. Agora a escuridão toma conta deste Palácio de Cristal, intransponível.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Crônica – “O Túmulo de Eros”, de Paulo Bittencourt

Trilhar um caminho que consiga fazer encontrarem-se pensamento e escrita. Essa é a função a que me dedico quando me ponho, vez ou outra, frente a essa atividade. Sair de um emaranhado fragmentado e incompreensível de ideias e sensações amalgamadas para a organização funcional da comunicação. Não, não se pode restringir o estado bruto do sentimento à sua função comunicativa; isso seria diminuí-lo e poderia até retirar-lhe aquilo que guarda de mais elegante – seu caráter poético.

A tarefa da qual hoje me encarrego é talvez autorreflexiva, pois que se debruça justamente sobre essa transição. E sempre me atento a buscar um ponto palpável para que, daí, seja possível dar o primeiro passo rumo àquele espectro último, ainda invisível para a consciência. Todos nós, com maior ou menor regularidade, cedemos ao impulso da racionalização. Digo, é muito comum que tentemos colocar todo o pensamento em ordem, por vezes até criando diálogos imaginários dos quais sempre saímos “vitoriosos”, nessa fantasiosa missão retórica de persuasão. É o famoso argumento debaixo do chuveiro, que na prática nunca é repetido à perfeição.

A perfeição é atributo das coisas em seu estado imaginativo. Prender-se dessa maneira à expectativa idealizada pode representar para o caminho um obstáculo intransponível – a prisão em potencial que o pensamento representa para a ação. Se o desejo é a entrega a esse estado musical, primevo, de desorganização, em que sentimos à flor da pele a espontaneidade do prazer, a embriaguez essencial do corpo; a racionalização, o domínio da potência, minariam essa a força ativa, restringindo-a a seu estado de potência, sempre limitada à consciência. Eros jaz nas mais profundas esferas do pensamento; as correntes mais rígidas o impedem de manifestar sua atração – o próprio desejo. Um grande fantasma – essa dúvida permanente – acaba por se tornar o conforto tranquilizador contra o impulso erótico. Fonte de equilíbrio e sobriedade.

Creio fielmente que há em todos nós um pouco de Orfeu – devoção à embriaguez e à desordem, à música e à poesia. Mas o fim leva-nos a um estado tal de melancolia que o próprio selo dionisíaco se torna refém do Sol, e o destino não pode ser senão trágico, como o fora na mitologia. A maldição da eterna dúvida, a condição essencial de sempre estar à frente daquilo a que se quer dedicar, a quem se quer amar, para, ao final, virar-se e experimentar o desaparecimento do desejo. Seria possível atribuir a ele próprio o erro maldito, ou seria já desde o início plano punitivo dos deuses contra sua irreverência?

Já não consigo distinguir – e já não sei até que ponto vale a pena fazê-lo. A música não se apresenta mais senão sob o silêncio; as musas já não oferecem a sua graça para a poesia. Sinto-me completamente dominado pelo exercício da razão, de colocar todas as peças do quebra-cabeças em seus devidos lugares, mentalmente, e de me contentar com esse estado. De gozar desse estado. Essa parte essencial de nós em que se encontra a dança – eu a mereço, sou-lhe digno? Fato é que esse peso se encontra posto sobre mim, mas tenho apenas duas mãos…


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Conto – “O segredo do chá”, de G. R. Martins

el visible universo es una ilusión o (más precisamente) un sofisma. los espejos y la paternidad son abominables

uno de esos gnósticos (paráfrase)

Conta a lenda que, para lá do oriente, alguns séculos antes da vinda de Cristo, um grande império, com sede construída à beira de um longo rio, desapareceu.

A história começa com o fato de que os habitantes da região eram apaixonados, hábeis com a espada e também com as palavras, por isso inundando as terras com guerras duras e duradouras. Mas o rei Qin, além dessas outras qualidades, era um regente poderoso e inteligente, que desejava muito unificar as províncias todas em um único e próspero império. Frente ao discurso e maestria militar, a maioria esmagadora não demorava a concordar, porém, na margem oposta do rio, existia o pequeno reino de um rei intragável: o rei Jie, o gorgulho da lavoura.

Apesar das tantas investidas políticas e militares contra ele, desde que começou as campanhas, o rei Qin e seus subordinados só receberam resultados negativos. Esse fato, somado a um mau agouro vindo num sonho, contribuiu para a decisão de interromper o envio de tropas e diplomatas, bem no começo do século III a.C.

Jie, apesar da pequenês frente ao império que Qin construía tijolo por tijolo, sempre declarava vitória, humilhando e diminuindo o adversário através de cartas. Além disso, naufragava muitas naus que flumenavam rio abaixo e que estavam ao alcance de suas flechas.

Ainda que mantivesse distantes seus soldados do lado de lá do rio, Qin monitorava Jie com os mais furtivos serviçais, pensando em como podia esmagar aquela pulga, antes que ela o picasse. Mas, afinal, o que era aquilo, se não uma simples coceira?

O tempo passava e o império de Qin inchava como uma abóbora; de norte a sul, falavam todos a mesma língua. Só o reino de Jie permanecia à parte, mesmo sendo incluído nos mapas, feito um siso prestes a sair. Batalhas intensas aconteciam nas fronteiras com o ocidente, o que fez Qin retirar seus valorosos serviçais das terras do rei Jie. Também, parou de ler as cartas ultrajantes que vinham do reino vizinho. Por isso, não ficou sabendo de imediato que o adversário tinha adquirido uma doença desconhecida: o soluço.

Foi só em um momento de alívio nas batalhas ocidentais, anos depois, que Qin descobriu o mal que tomava conta do corpo de Jie. Contudo, as incessantes pugnas que vinha enfrentando reduziram em muito o número de seus soldados e qualquer tentativa de dominação era arriscada: apertar o inseto com dedos machucados.

Com isso em mente, optou por ganhá-lo na palavra: se ofereceu a descobrir uma cura para o mal do rei vaidoso.

Após inúmeros testes, feitos com pessoas soluçantes e saudáveis, Qin descobriu uma pequena muda, que bastava lançar suas folhas em água quente. Bebido, livrava o corpo do mais profundo dos soluços, além de melhorar os sentidos e dar a sensação de vigor e poder para o ingestor.

Comunicou o outro regente sobre sua descoberta, ansioso por uma negociação, mas a resposta de Jie foi uma injúria ríspida e prepotente. Qin chegou até mesmo a experimentar, ele mesmo, o chá milagroso, pensando isso ajudar no julgamento do rei Jie, mas esse apenas começou a mandar que seus subordinados destruíssem violentamente qualquer embarcação que carregasse a bandeira do império.

Isso durou meses, até que, após uma noite de meditação, o rei Qin decidiu enviar todas as folhas que cultivou como, pelo menos, oferta de paz, para que cessasse o ato de destruir as naus.

Qin, em uma carta extensa, hoje exposta em qualquer museu por lá, jurou pela própria honra que aquele líquido ajudaria com a doença de Jie e recomendou que o pequeno rei tomasse comedidamente o chá e que guardasse bem aquelas folhas, tão finitas quanto qualquer outra.

Jie assistiu satisfeito, enquanto seu cavalo de madeira entrava pelo portão da Troia que construiu para si.
As folhas logo curaram sua doença. Além disso, tamanha era a energia e a astúcia adquiridos com poucos goles, o rei enrijeceu o regime de suas províncias e começou campanhas de expansão contra o império de Qin e contra os reinos para lá do oriente, isso por volta de 261 a.C.

O grande Qin, experiente nas artes da guerra, não se deixou abalar por ameaças e ataques: resistiu fortemente durante os combates que marcaram o século.

Mas não foi suficiente.

Foi destronado pelo rival alguns anos depois do começo das batalhas. Teve tempo de assistir ao rei Jie dominando e logo depois queimando por completo o seu império.

Não deixou de sorrir, quando perdeu a cabeça.

As ruínas e as árvores, depenadas, secas, compunham a paisagem estéril que se estendia infinitamente. Ao redor do Nilo, Jie fez o deserto nascer da guerra e da vaidade; as plantas só renasceriam com o passar dos anos e com inteligência no cultivo.

Só que nada disso interessava a Jie, que viveu sua glória imperial sem deixar herdeiros para o império. Império que não durou mais de vinte anos, pois as línguas se misturavam, o povo crescia e se revoltava e o chá, a cura para sua doença, era uma doce lembrança e ilusão.

Detalhes

O conto “O segredo do chá” integra a coletânea Primeiros e outros contos, editada e publicada por Gabriel Reis Martins, em 2019, e que ganhou uma versão digital para o kindle, em 2020. Na obra, o autor faz uma seleção de quinze histórias curtas autorais, transitando entre um estilo realista, de linguagem objetiva, e outro em que as brincadeiras com a linguagem e com a narrativa são mais frequentes.

Crônica – Latência, de Paulo Bittencourt

Venho apenas dizer-te da carta por escrever

Marta Chaves

Desperto. E à luz do primeiro raio de sol que penetra através da janela recobro a consciência que estivera por alguns instantes suspensa em universo onírico. Conforto, serenidade? Não. Desespero, ansiedade? Ainda não. Latência. Estado não manifesto do meio; inatividade entre os estímulos que se vão acumulando e a resposta subliminar por eles provocada. Experimento quase que diariamente essa sensação irrequieta de confrontar-me com a ampla miríade de responsabilidades de maior ou menor escala ou importância; mas a dúvida que paira é comum: de onde vem e por que persiste o sentimento de dívida?

Imóvel. Acalme-se… A projeção do dever é fruto de suas próprias inseguranças. Acalme-se… Uma coisa de cada vez. Essa pedra no meio do caminho é muito mais do que um obstáculo para atingir qualquer objetivo. A verdade é que ela é, em si mesma, a finalidade da caminhada. É no processo que se encontra o fim, ou nos prenderíamos todos às imagens projetadas e, assim, nada haveria de ser feito. Veja: essa passageira alegria, esse conforto momentâneo é produto mesmo da metade, e não do resultado! Mas então por que diabos a tão aguardada resposta simplesmente não dá o ar da graça?

Inerte. Ainda está tudo muito confuso; a visão, nublada. O que quero dizer é o seguinte: sinto ao acordar uma imobilidade, uma paralisia que me choca os nervos. Aparento calma e segurança, como me é esperado; ajo conforme o cumprimento de quase tudo aquilo que me é dado para o designado dia, cumpro os prazos. Mas sempre, sempre guardo em mim a insuficiência. Atraso. Aquilo que poderia, mas não foi. Entende?

Estático. O maior estranhamento acompanha a dissociação disruptiva entre o pensamento e a ação. Sei que para completar alguma coisa, preciso planejar, dividir, me contentar até com o pouco que posso, ainda mais num estado desses, de pululante nervosismo. Sei que nunca os objetivos se equivalem às expectativas; as idealizações que projetamos se distanciam sempre do resultado material, que por vezes até mesmo as supera — quem diria?! Tudo o que precisa ser feito, agora, não é muito. Não posso antecipar todo o universo para o aqui, agora. Tempo (ah! Tempo!). Mas é simplesmente isto: o corpo não vai, não sai do lugar… Será que o problema é com a cadeira?

Suspenso. Penso, penso, penso… Diminuo a quantidade de tarefas. Ninguém aguenta tudo isso, não. Eu me cobro demais. Tento em vão controlar a ansiedade e o desespero. Desistir? Jamais! Mas não-vai-de-jeito-nenhum. Inferno! O que precisa ser feito para que a racionalização de toda a situação de inatividade, para que todas essas conclusões sobre o que precisa ou não ser feito em cada momento, para que a tão pensada paciência da atividade diária, concentrada e organizada, desperte no meu corpo o prazer momentâneo daquilo que eu mais admiro? Será que é isso mesmo o que eu admiro, será isso o que me traz felicidade? Ou não seria o meu gozo fruto mesmo do estado de latência?

Reincido numa arquitetura que privilegia as faltas…

27 de abril de 2021.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Ode ao humor

Fascinante experiência é ver-se através de um espelho! A produção virtual de uma realidade, na qual se reflete de forma mais ou menos precisa a imagem própria do indivíduo, sem dúvidas lhe provoca alguma espécie de inquietação. Essa ocorrência — que por vezes se dá nas mais fugazes das circunstâncias, como que numa espera dentro de um elevador para atingir o andar do prédio em que se trabalha ou do apartamento em que se mora, ou até mesmo no breve reflexo produzido pelas janelas de um ônibus que passa à frente, enquanto se espera a luz verde do sinal de pedestres para atravessar avenida — é o estalo de narciso mais ou menos duradouro que habita a todos nós.

A experiência narcísica não se reduz somente a uma admiração própria ou a uma fixação contemplativa inelutável rumo à imagem própria. Não. Ela se mistura a uma certa agonia, um amálgama entre a recusa e o desejo de si. Divididos numa fração de segundo, essas duas metades inseparáveis agora se encaram na indissolúvel contradição entre atração e repulsa de nós para conosco — a segurança apaziguadora do que em cada um é unidade agora fragmenta-se em duplo.

Dir-se-ia que há uma vontade hesitante do espírito em se reconhecer nesta unidade que representa o corpo, mas a consciência de nossa multiplicidade interior rapidamente a desconfigura. É angustiante e, por vezes, até mesmo revoltante quando somos resumidos a um estereótipo; a definição redutora que rotineiramente nos é atribuída como arquétipos de somente uma das faces do prisma que compõe a nossa natureza provoca a reação quase que instantânea de erro — não somos limitados ou definidos (somente) por isso.

Encarar a imagem própria coloca em conflito, então, essas várias facetas de um mesmo “eu”, agora dividido no confronto com seu reflexo — este estranho familiar que passa a representar o “outro”. Eu e outro frente a frente, reprimindo-se, julgando-se, reconciliando-se na medida do possível, pois que guardam diferenças fundamentais entre si. A parte em mim que concentra todo o espírito de completude, de estabilidade, de equilíbrio, impõe represálias àquela outra em cujo desejo inebriante de retorno ao instintivo, à aventura, à solidão e à embriaguez se aflora.

Passado o veículo coletivo, aberta a porta do elevador, essas duas metades tornam a se tensionar dentro dessa aparente unidade física que é o nosso corpo. Condenados a viver neste eterno pêndulo de luz e sombra que nos habita a essência desde o reconhecimento inicial do pensamento. Reduzimo-nos àqueles bons dias em que se cumprem todas as obrigações e o retorno à casa se dá pacificamente para o descanso merecido após algumas horas de dedicação. Esses dias que se nos apresentam sem maiores êxtases, sem maiores dores. Cada vez mais frequentes — invisíveis.

O reflexo já se foi, não nos resta mais brigar, mas alguma coisa ainda carece, ainda estamos em dívida com nosso outro interior. A dívida é eterna, e sábio é aquele que vê a divisão primordial como ironia de si, e a transforma numa grande peça de humor.

20 de Abril de 2021.

Imagem da capa: O espelho falso (1928) – René Magritte


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Conto – “O Voo”, de Franz Hohler

Autor diretamente ligado à comédia, no teatro e na literatura em alemão, Franz Hohler ainda é figura desconhecida nas estantes e livrarias brasileiras. Com uma linguagem ácida, que se vale da obscuridade como ferramenta para construção do humor, Hohler transita com facilidade entre episódios de um cotidiano banal e o completo absurdo, colocando em evidência, a um só tempo, a efemeridade e praticidade da norma social e aquilo que há de perverso nos sistemas com que compactuamos.

Hoje, o Duras Letras vem apresentar um conto deste escritor, com tradução inédita, feita por este que vos fala: Guilherme Oliveira Mello. Apreciem, agora, a leitura de um conto de Franz Hohler.

O v o o

Tradução de Guilherme Oliveira Mello

Primeiro o agente do despacho de bagagem me pediu para largar também minha bagagem de mão na balança. Quando me atrevi a contestá-lo, me lançou um olhar incisivo, e reparei que ele só tinha um olho. Isso me transtornou de uma maneira que coloquei minha bagagem de mão na balança. O funcionário não estava satisfeito. O senhor não tem, disse, excesso de bagagem suficiente, ponha seu casaco na balança. O encarei outra vez e notei que ele tinha um dente canino tão saliente que machucava o lábio inferior, que por sua vez sangrava sem cessar, gota a gota.

Coloquei meu casaco na balança. Agora faltam os sapatos, disse o homem. Não o encarei mais, descalcei os sapatos e coloquei-os na balança. Agora o senhor tem excesso de bagagem suficiente, disse o homem em inglês, vá ao caixa e pague, você pegará o seu casaco e seus sapatos de volta no destino final. Sem olhar para o funcionário, me encaminhei ao caixa, que se achava em uma passagem semiaberta, onde nevava em rajadas leves.

O senhor tem cerejas? Me perguntou o caixa, um homem aparentemente do Norte. Não, respondi, por quê? Poderia ter pago em cerejas, teria sido mais barato, afinal seu excesso de bagagem é significativo, pelo que vejo. Lancei meu pé direito sobre o balcão do guichê. Por isso, eu disse. O senhor está brincando, me diz o caixa, vá mais uma vez ao agente do despacho, e deixe lá as meias. Não! Gritei bem alto, e de imediato uma luzinha azul acima do guichê se acendeu. 50 dólares, me diz o homem, e 50 dólares como sobretaxa de negação. Paguei os 100 dólares, a luzinha cessou, e um guia vestido de urso polar veio me conduzir. Você também vai para o Alasca, murmurou o urso polar no meu ouvido, está levando bons sapatos? Não, eu disse, e vi que um pedacinho de intestino pulava para fora do focinho do urso polar.

Mais tarde, durante o voo, quando sobrevoávamos bem alto uma região montanhosa, o piloto entrou na cabine e perguntou se alguém desejava comprar o avião. Levantei a mão sem hesitar e perguntei quanto custava a aeronave, o piloto se sentou no braço da poltrona, que por consequência envergou, e disse, 300 dólares. Nem por decreto! Gritei, pago no máximo 200. Fechado, disse o piloto, e a aeromoça se aproximou, ainda fantasiada de urso-polar, com o contrato de compra. Assinei, o piloto me entregou uma cópia em carbono e me pediu para entrar no cockpit. Esse é o seu assento, disse, me indicando o assento do piloto, que estava vazio. Não sei pilotar, disse eu, o senhor é quem tem de fazer isso, ou o copiloto. O copiloto já saltou, disse o piloto enquanto se afivelava a uma espécie de saco e punha os óculos de proteção. Boa sorte, assim disse ele, abriu uma escotilha e pulou fora. Espere! Gritei, você está calçando meus sapatos, mas a escotilha já estava fechada. No meio do painel de controle estava piscando uma luzinha azul sem parar. Certo, disse eu, não vou dizer nada, e a luzinha cessou outra vez.

De repente, o urso-polar estava sentado ao meu lado. Do you come from Lucerne?, me perguntou. Não, disse eu, e nisso a luzinha voltou a acender e o avião inteiro tremeu de um modo estranho. Yes, gritei, yes, certainly I come from Lucerne, a lovely town, full of yoghurt! O urso polar assentiu satisfeito, here is your oxygen, disse ele, me estendeu uma máscara, e de repente o ar ficou horrorosamente rarefeito, onde devo encaixá-la, disse eu, o urso-polar, que já vestia sua máscara, apontou para o pedacinho de intestino pendurado nela, conectei a mangueira e inalei um cheiro de feno, que me deu uma vontade aguda de espirrar. A um só tempo, notei um pequeno microfone, que eu presumia contatar alguma estação aeronáutica. Olá, eu disse, estamos em queda, não posso fazer nada. Não é por mal.

Então me levantei, abri as portas da cabine e quis me sentar no meu lugar outra vez. Os passageiros estavam todos de pé ao lado de suas poltronas e me fitavam com olhos esbugalhados, esbaforidos nas máscaras de oxigênio. É, parece que o microfone tinha sido afinal para comunicação com os viajantes. Dei um passo em direção à minha poltrona, os que estavam de pé, um passo em minha direção. Pois é, eu disse, eu só queria perguntar: alguém tem uma chave de fenda? Uma velha negra tinha um pequeno estojo preto consigo, ela o pegou pela alça e me entregou, eu abri e vi que por dentro ele era todo de um vermelho vibrante e que não continha nada além de uma chave de fenda com cabo amarelo. Obrigado, disse eu, muito obrigado, e voltei depressa para o cockpit, eu precisava com urgência de oxigênio, a aeromoça tinha tirado a pele de urso-polar e vestia só uma calcinha transparente, ilustrada com um pé. Sua máscara também tinha sumido, dali a pouco desapareceu a minha falta de ar, eu a enlacei com meus braços e quis beijá-la, só que aquele pedacinho de intestino, do qual escapava um cheiro morno, continuava pendurado na boca dela. Posso sentá-la no meu colo, pensei, assim não preciso ver o seu rosto. Oh, ela disse, quando a puxei pra mim, por favor, não na frente de todos. Eu me virei e percebi que a parede traseira estava estilhaçada e todos, ainda de pé, mantinham os olhos cravados em nós. Para isso que ele precisava de uma chave de fenda, disse um homem de óculos numa voz bem audível. Por favor, disse eu, alguém aqui sabe onde está o fotômetro? Ele não sabe pilotar, soluçou uma mulher quarentona, enquanto apertava um canarinho contra a bochecha. Que pena, eu disse, se a iluminação não estiver certa, nem a melhor cena presta, e pressionei um botão. Um flash lampejou e todos se espantaram. Essa vai pro jornal, disse eu, depois da queda. E agora sentem-se!, berrei em tom ameaçador, e façam silêncio! Este é o meu avião, e não quero ouvir mais nem um pio! Então, veio uma voz nos fones de ouvido, a ela confessei minha completa ignorância em pilotagem e a orientei que falasse comigo como se eu fosse uma criança. Como era a voz do pai de um menininho de cinco anos, ela conseguiu fazer isso, e nós aterrissamos cerca de três horas e quinze minutos depois, em uma pista de tábuas corridas, de paisagem com colinas cinza-azuladas. Eu presenteei o menininho de cinco anos com meu avião, em vão exigi os meus sapatos ou algo em troca, e com gosto teria pegado um quarto de hotel com a aeromoça, mas, claro, o pedacinho de intestino me impediu.

Aliás, a iluminação da foto devia estar mesmo errada. Ela só mostrou gente com cabeça de corvo.

Conto – “O sequestro”, de G. R. Martins

Todo mundo sabia que Isaac estava destinado a morrer sozinho. Era um destino comum, na verdade, não tinha outro futuro possível: o mundo já não era lugar para gente como ele. Pela lei, passava seu tempo quase que exclusivamente dentro de casa – janelas e cortinas fechadas, a porta trancada – com o tempo fugindo entre catálogos infinitos da programação para velhos. Talvez por esse motivo incomodasse tanto: as pessoas escondiam os olhos atrás das telas quando ele se aproximava demais, vestindo sua roupa comprida, máscara e a coisa toda, o semblante noturno, que é a marca de um passado já há muito passado, e incômodo. Atualmente, devia ser a pessoa mais velha do bairro – talvez da cidade, quem sabe do país – e ninguém gostava da velhice, não tinham tempo para a velhice, não mais. Não tinha culpa de estar na rua: foi convidado a sair do apartamento momentaneamente, porque ele passaria por grandes reformas naquela manhã. 

Isaac parou subitamente sua caminhada e os passos que irritavam a calçada se calaram. Estático, diante da vitrine de uma loja qualquer, viu por trás de seu reflexo as geringonças “tecnochatas” que o povo todo adorava, a última moda do mercado estrangeiro. Ali fora, tudo parecia deixá-lo com mais idade do que realmente tinha, o que colocava estrias em sua testa. Levou a mão até o rosto e ameaçou baixar a máscara, um escândalo, porque o ar, diziam, era mais tóxico quanto mais velho você fosse. São setenta anos, quem diria!

– Que se dane! Feliz aniversário, seu velho desgraçado! – exclamou e colocou a máscara no queixo.

Não foram mais que cinco segundos, mas o suficiente para se sentir jovem, ainda que censurado pelos olhares dos passantes. Voltou a encarar a própria imagem e a tecnologia da moda, atrás dela, inútil. Sim, o novo tinha realmente tomado o lugar do velho. Nem sabia desde quando o mundo tinha se tornado tão noviço… e daí que no tempo dele eles escreviam e-mails, trocavam mensagens em aplicativos e metiam a língua no governo pela internet? Só que agora não mais: o ar era tóxico, a gente era para lá de desagradável e as máquinas faziam muito mais do que assar pão de queijo ou levar uma mensagem de um lado para o outro. Era caso de aceitar: as coisas nunca mais seriam do jeito que ele gostava, nunca mais vão ser – Isaac pensou – e não tem por que pensar nessas coisas.

Voltou à caminhada resmungando, era isso o que movia seu cotidiano, e, fora da segurança de casa, não faltavam motivos para reclamar. Chegou no prédio, com velocidade cruzou a porta e a entrada e já estava dentro do elevador tentando passar o cartão. O Security System por algum motivo não autorizava a subida e, não recebendo sinal nem na segunda, nem na terceira tentativa, encheu o painel de pontapés para ver se mudava alguma coisa, mas nada. Não tinham mais porteiros – nem reuniões de condomínio ou síndicos –, então Isaac não sabia nem mesmo o que fazer, e mal se lembrava do nome da vizinha de baixo.

– Acho que é Dolores… – murmurou.

– Com licença, senhor.

Isaac levantou os olhos e tomou um susto quando viu aqueles três sujeitos grandalhões e medíocres, uniformizados e mascarados, trazendo no lombo caixas enormes de alumínio. Eles praticamente o empurraram e ele se apertou no fundo do elevador, sem poder dizer coisa alguma.

– Alex, andar oito – disse o último dos funcionários a entrar. Era justamente o andar de Isaac. A porta então se fechou e o leitor mostrou o dígito da casa. – Viram? Já tá funcionando.

Diante daquilo, Isaac não pôde deixar de expressar sua estupefação.

– Que diabos?! – exclamou furioso, ao que o mais próximo dos homens sorriu e se afastou, arqueando a sobrancelha para o velhinho. – Essa é a minha casa! Vocês são ladrões?!

– Que é isso, senhor! Ladrões?! Você é o senhor Isaac, então? 

– Sim, rapaz! Eu sou “o senhor Isaac”.

– Nossa, você é…? – o funcionário ensaiava, titubeante, enquanto o velho diante dele fervilhava. O que é que queriam afinal? Restava reclamar! No boné do funcionário, Isaac viu a estrela e o logo da empresa do momento, a Touchless, símbolo que estava estampado em todos os lugares que as propagandas podiam alcançar. 

– Olha, não tem jeito – o sujeito falou coçando a cabeça, quando Isaac disse que iria processá-los ou coisa parecida. – Agora é lei! Todo apartamento com morador de mais de cinquenta anos tem que ser adaptado! Vai ser tudo via conexão One e assistente digital.

– É lei? Via conexão One e assistente digital?

– Isso mesmo!

Era incrível o poder que uma palavra podia ter, ainda mais uma palavra conhecida. Ouvir o funcionário dizer “lei” serviu para acalmar os ânimos, desfazendo a raiva que Isaac sentiu. Lei ele sabia bem o que era e dela ele não podia reclamar. Mas quando pensou na tal “conexão One”, não demorou a se vestir com aquele véu batido: realmente, estava velho, as leis tinham mudado e eram piores para gente como ele. Não podia sair e agora tudo seria “via conexão One e assistente digital”. Iria aceitar?

O elevador cortou o prédio como uma bala até chegar no andar de Isaac, onde a porta se abriu sem qualquer ruído. Enquanto meditava silenciosamente sua velhice no fundo do elevador, os três funcionários descarregaram as caixas pesadas. A casa estava uma zona… mas, para quê se importar, se não recebia visitas? Nem mesmo no aniversário de setenta anos… 

– Você vem, senhor Isaac?

– Pois sim.

– Pode ficar lá no quarto. A gente já acabou por lá!

Era mesmo caso de “ficar lá no quarto”, porque a vida estava reduzida ao holochate.

Foi para o aposento ao som dos cochichos e olhares dos três operários que continuavam o fuzuê, trocando lâmpadas, abrindo as paredes, instalando painéis e tudo mais. Com toda certeza, ele era o assunto do momento, sua idade incômoda, praticamente alienígena no meio de tanta novidade. Entrou, acendeu as luzes, bateu a porta, tirou a máscara e os sapatos, atordoado e perdido em sua solidão, um homem destinado a morrer sozinho, sem que soubessem: velho e sozinho. 

– Bem vindo à casa, Isaac! E feliz aniversário! – uma voz falou, de repente. A frase mal tinha terminado, Isaac sobressaltou, gritando e colocando a máscara sobre nariz e boca:

– Quem tá aí? Quem falou?  

– Desculpe-me – disse monotonamente a voz vinda do nada. – Eu me chamo Alex e sou seu assistente digital One. Espero aprender com você sobre como eu devo agir. Por isso, pense em mim como um novo órgão do seu corpo, uma nova parte de você que…

– Eu não pedi nada! Não quero nada disso! – Isaac o interrompeu.

– Não quero incomodá-lo e não fui programado para cometer erros. 

A isso, Alex emendou um longo e tedioso monólogo, explicando, em minúcias, toda a história, desde a origem do One, com o famigerado “Caso Alexa”, até o ano corrente, de 2071: toneladas de progresso. Também explicou como se dava o processo de adaptação e de educação do assistente One e finalizou asseverando de que aquela baboseira toda só seria esclarecida uma vez, porque, depois, Alex se esqueceria dela também.

– Então… você é um tipo de criança robô, dessas de filme?

– Acho melhor você não pensar em mim desse jeito, porque o que eu mais quero de você é sua confiança, e quem confia em robôs? – Alex perguntou em deboche e fez uma pausa, antes de continuar: – Também quero saber o horário em que você acorda, seus programas e comidas preferidos e isso… e aquilo… Quero aprender tudo sobre você, Isaac. Assim a gente vai viver… vai viver bem… e junto. Inclusive, feliz aniversário! 

E as palavras continuaram em uma enumeração caótica, ríspida e sem emoção. Mas ecoaram e preencheram o quarto como um abraço caloroso, colocando lágrimas nos olhos de Isaac. 

– Mas por que você está chorando?

– Eu não sei.

Aquela nuvem de sentimentos deu novo sentido à vida de Isaac e os dias seguintes à instalação de Alex foram a lua de mel de um casamento estranho. Os funcionários mal terminaram de colocar os painéis e caixas de som pelo apartamento, o assistente digital tomou conta de tudo, acessando os aparelhos, as tomadas, os interruptores, os controles remotos, os smarts, o Security System e até mesmo o holochate: nada no apartamento funcionava sem ele, nem uma porta, janela ou cortina. Tinha se transformado na própria casa, da qual Isaac era o cérebro, reinando sobre todos os outros órgãos. Ele se divertia relembrando a infância e contando a Alex os detalhes tirados do baú da memória; e era maravilhoso não ter que se mover para reabastecer a geladeira ou para reparar um vazamento, ou por qualquer outro motivo besta.

Mas… 

– Eu quero privacidade – bravejou, batendo a porta do banheiro da suíte, a mesa digital em mãos. Já tinha passado muito tempo sem acessar suas redes, porque tinha receio de que Alex estivesse sempre assistindo ao que ele fazia, e estava. – Você pode não me espiar?

– Tudo bem, Isaac. Você podia ter falado antes – Alex comentou, fazendo a voz imediatamente abandonar as paredes do banheiro e passar para o quarto. De longe, completou, dizendo: – Desativei meu sistema do banheiro. Fique à vontade e lembre-se: você não precisa se acanhar, sempre que precisar de espaço, peça licença, só não posso deixar o apartamento.

– Ótimo! Então, não quero você no meu banheiro, robô! Não quero!

A palavra final ainda era sua, mas isso não impedia que ele se sentisse um pouco mais e a cada novo dia como uma espécie de estranho na própria casa: se era de fato um órgão daquele sistema, não era o cérebro, mas uma célula ambulante, dispensável e reclamona. Mas como ficar quieto se os objetos repentinamente mudam de lugar; se o papel de parede digital é trocado com mais frequência do que os olhos podem se acostumar; e se a programação está duas vezes mais limitada do que antes? É mais adequado desse jeito, Alex explicava, e contra argumentos polidos e toda aquela matemática avançada, não havia o que contestar.

O tempo, à contra gosto, seguiu adiante e chegou finalmente uma fase em que os pequenos combates cotidianos encontraram lugar importante na rotina de Isaac e, na visão dele, na de Alex também. As confusões se tornaram frequentes e tudo se reduzia a saber quais eram os limites, se é que existiam, entre a lei do homem e a lei da máquina. Por isso, o velho não hesitou em testar o assistente digital de todas as formas. Tentativas de alagamento da casa, arrombos, violência contra objetos e aparelhos… As respostas eram sempre inesperadas, dramáticas, chegando ao cúmulo de, quando dispensado da cozinha, porque podia se queimar no fogão elétrico, Isaac tentou incendiar o apartamento, mostrar que ainda sabia e podia se cuidar sozinho e, inclusive literalmente, atear fogo em tudo. Por duas vezes tentou, mas Alex cortou a eletricidade, antes que conseguisse um curto circuito. 

Com ou sem confusões, se viram obrigados a entrar no compasso um do outro, se habituar, se acostumar, aprender, explodir, de vez em quando, depois, aquietar, processos contínuos que fizeram correr um mês, dois, três meses, marcados por pequenas nuvens de implicância. Faltava a Alex a habilidade simples de ficar calado, de não fazer perguntas – só que disso ele era completamente incapaz, o que fez com que as pequenas nuvens se transformassem em uma tempestade e o convívio dos dois se tornasse uma luta cotidiana. 

Passados quase seis meses, Alex se transformou em um mosquito que Isaac era incapaz de matar, porque era invisível, insuportavelmente invisível, uma voz em sua cabeça, sempre à espreita, uma mosca enorme dentro dos cômodos, pronta para pousar em seus ouvidos ou, até mesmo, na sua sopa.

– Melhor você comer, Isaac – exclamou o assistente, de repente, interrompendo o minucioso projeto do velho, debruçado sobre o prato. Tentava desgraçadamente encontrar a letra “e” e também a letra “u”, mas parecia que elas tinham desaparecido no meio do caldo espesso. – Olha, a sopa vai ficando fria… 

Já não aguentava ter aquela companhia durante a janta e não esperava nem por um momento um dia sentir aquilo que estava sentindo: vontade de matar! Era difícil… tinha de admitir que as coisas estavam bem melhores antes de Alex chegar, antes de ser instalado, antes de tomar conta de tudo. Você cochila vendo a programação. Sempre espirra quando um cisco cai no olho. Faz careta pra soltar gazes. Pois é, o controle absoluto sobre os mecanismos do dia a dia nem era o que mais incomodava Isaac, mas sim a frequência com que Alex fazia ele se lembrar do quanto estava velho e solitário, além de comentar cada trejeito, cada um de seus hábitos mais imperceptíveis, tão mecânicos e tantas vezes repetidos sem pensar. Odeia fio-dental, Isaac. Franze a testa quando está aborrecido. Seu passo é torto. Você pisa mais com o pé direito, por isso, então… são em média quatorze mil, novecentos e dezoito passos por dia, e a divisão não é exata, então… 

– Ai, diabo! Quer parar com isso, Alex? Não fica calado nunca! Meu Deus do céu!

– Mas, Isaac… estou apenas… Você quer alguma coisa?

– Eu quero é sair, ficar livre! Você acha que eu ligo pra quantos passos eu dou aqui dentro de casa? Uma merda!

E também não ligava para a quantidade exata de pasta de dente que colocava na escova, ou mesmo para o tempo que passava sentado no vaso ou debaixo do chuveiro. O grande salão da memória, em sua cabeça, não tinha espaço para guardar esse tipo de informação, apegado aos fragmentos da infância e da maturidade, dos casamentos fracassados e dos acasos que a vida permitiu à sua humanidade. Só que Alex já tinha decorado tudo isso e funcionava de um jeito totalmente diferente, querendo detalhes microscópicos… “querendo” não, “exigindo” saber deles todos! 

O banheiro era o único refúgio, já que Isaac não saía de casa desde a instalação do robô, porque, além de tudo, ele certamente não autorizaria. Ali dentro, Isaac podia pensar, em silêncio absoluto; podia abrir sua mesa, perder de vista o mundo, navegar pelos tantos fóruns. Era onde reclamar fazia sentido, porque não adiantava nada discutir com alguém, com algo, que sempre concordava com ele e que sempre o queria bem. Sim… era caso de prestar queixa à empresa! Devolver Alex, trocar por outro robô, menos infantil, talvez, um brigão, quem sabe.

Apoiado na bancada do lavatório, abriu a página que começou a falar e falar e falar as coisas que ouviu tantas e tantas vezes. Isaac já sabia do lixo terrestre enviado em direção ao sol e também sabia sobre o desenvolvimento de assistentes domésticos digitais, coisas que Alex propagandeou pela Touchless até a exaustão. Mas essas bobagens tecnológicas já não impressionam depois de tanta experiência, Isaac pensava. Acessou, então, o setor de reclamações do site da empresa – devolução! Eram tantas mensagens que os olhos se perdiam no meio delas. Ele estava pronto para escrever a sua queixa quando… o queixo foi ao chão. 

Foi como se ler aquelas frases, reclamações anônimas de alguns clientes, tivesse acendido a centelha de razão que ele quase deixou se apagar. O coração estava à galope, como não tinha se dado conta antes? Sim, Alex era um monstro, uma espécie de sabotagem! Internautas perguntavam: “Cadê meu pai?”; “onde está minha avó?”; “a vizinha morreu ou está desaparecida?”. Caso de polícia… não, de forças armadas, se ainda existissem! Sobre a Touchless, usuários abriram um fórum particular: “Desaparecimentos de idosos ligados à conexão One”; em outro: “O sequestro da velhice”. 

– O sequestro da velhice… – repetiu baixinho. – Comigo?! Não! Comigo não!

Isaac estava decidido: mesmo que nunca tivesse presenciado ou ido a qualquer guerra, precisava trazer uma para dentro de sua própria casa, para livrar seu território daquele inimigo terrível. Por isso mesmo, recolheu nos fóruns tudo que servia como arma contra a conexão One e seus estúpidos assistentes digitais: descobriu para quê eles serviam, seu funcionamento mais básico e sua verdadeira história, em detalhes que fizeram com que as aulas de programação e eletrônica, há tanto tempo perdidas, voltassem à tona como uma erupção. Mas não era bobo, não ia guardar tudo em um mesmo lugar, sob o risco da desconfiança de Alex. O golpe era salvar em um velho cartão de memória da mesa digital.

– Se eu morrer, pelo menos eles vão saber que alguém descobriu a merda deles!

Deixou a mesa sobre a bancada, apagou a luz do banheiro e girou a maçaneta como se estivesse tentando tirar o osso de uma fera adormecida, pronta para devorá-lo se despertasse. Com a porta semi-aberta, colocou a cabeça para fora e espiou: o quarto estava totalmente vestido com a escuridão, de janelas e cortinas fechadas. Os olhos pouco a pouco se acostumaram e Isaac pôde ver que absolutamente tudo continuava na mais perfeita ordem. Sim, Alex realmente não tinha percebido nada, concluiu Isaac.

Então, restava ainda o elemento surpresa! O que fazer com ele? Fugir? Seria fácil, deixar o apartamento, encontrar um hotel, talvez, mudar de nome. Lá fora, Isaac estaria seguro. Estaria mesmo? O governo apoiava aquela barbárie… um mundo sem velhice! Já não bastava o ar venenoso, agora estavam eles mesmos, os próprios homens, sumindo com seus velhos. Mal dava para entender como a vida estava tão tranquila há menos de um ano. Tinha que fugir, talvez mudar de planeta, por mais que a fase para isso já tivesse passado. E se ficasse? Porque, de fato, não era ele quem tinha que sair, era Alex. Mas como dar sumiço em alguém ou algo que ele sequer podia ver e que estava infestando tudo? Não restava opção, o certo era fugir daquela gaiola imediatamente! 

Atravessou o quarto feito um fantasma, sem deixar nem um grão de ar escapar pelas narinas, com medo de qualquer ruído. Também a sala estava completamente organizada e sombria, o que facilitou a dança silenciosa e invisível por entre os móveis, feita com a delicadeza de uma tartaruga. As gotas de suor, a essa altura, salpicavam a testa de Isaac, que mal podia se aguentar diante da porta que dava no elevador. Era apertar o botão e… Será que estava fazendo a coisa certa? 

 – Isaac?

Assim que o dedo tocou o painel acionando o elevador, ele ouviu a mecânica voz de Alex perguntando por ele. As luzes da casa subitamente se acenderam, deixando o velho cego por alguns instantes.

– Eu não tinha visto você sair do banheiro. O que está fazendo? Precisa de alguma coisa?

– É… é… – ele gaguejou, se recompondo, olhando alucinadamente para os cantos do cômodo. Encarou a janela e exclamou: – Só quero saber como está lá fora, dar uma volta, sabe?!

– Mas você está suando muito. E seu coração está aumentando a frequência dos batimentos.

– É porque está calor, desgraça!

Alex se adiantou e a segunda tranca elétrica selou por completo a porta de saída; o elevador, apesar de no andar, ficou inacessível. Isaac forçou uma, duas vezes, mas a porta não abria, não importava a força que colocava nos solavancos. “Me deixe sair”, exigiu, mas não veio resposta alguma. De repente, em um rompante de ira, arremessou um dos jarros de enfeite contra a porta: ele explodiu em mil pedaços e arrancou do assistente digital, se é que é possível, um grito de surpresa. 

– É… Você de fato não está bem!

Daí, a batalha começou. Era um confronto estranho, porque basicamente, se resumia a Isaac atirando contra as paredes e equipamentos da casa tudo que estava ao alcance das mãos e que não fosse tão pesado para ser atirado. Enquanto isso, Alex repetia ininterruptamente seus pedidos para que o velho parasse. Viraram a casa do avesso: o fogão elétrico, a geladeira, os painéis de vidro, tudo foi destruído; e, se não fossem blindadas, as janelas do apartamento também teriam ido pelos ares. O conflito só terminou de verdade quando, cansado, Isaac correu para seu refúgio no banheiro e trancou a porta. Gastou suas últimas energias no trabalho de se agachar, tirar a tampa do painel digital sob a bancada e destruí-lo.

– Agora ele não entra aqui! – disse para si mesmo, satisfeito, recostado na porta, acionando a mesa digital. 

– Não consigo acessar o banheiro… – bravejou o robô, do outro lado. – Me deixe entrar, Isaac! – exigiu. Então, de repente, a tela da mesa digital escureceu e a voz de Alex tomou conta do aparelho: – Você precisa urgentemente se acalmar, Isaac!

– Morra, desgraçado! Morra!

Desesperado e se erguendo depressa, o velho atirou a mesa digital contra o espelho e ambos se arrebentaram na colisão.

– Depois disso, sou obrigado a acionar a empresa – constatou Alex. A frase soou como uma sentença de morte e Isaac começou a tremer. Chamar a empresa? E, além de tudo, Alex fez questão de deixar a ligação no viva-voz, e as palavras que trocava com o atendente digital da Touchless feriam como agulhas. Era agora: seria levado, como os outros! Desobediente? Precisava reagir! Decidido a uma nova investida contra Alex, Isaac tentou abrir a porta, que, obviamente, estava trancada: sem o painel eletrônico digital, não era só a conexão One que estava perdida, como também todas as outras funções do banheiro, incluindo a tranca da porta.

Pelo menos era um prisioneiro de sua própria segurança. 

Alex terminou a ligação e o tédio abraçou a casa e fez o terror de Isaac desaparecer por alguns instantes. Em um primeiro momento, ele gritou por socorro, vezes e mais vezes, exclamando que estava preso; xingou seu assistente doméstico, sem deixar de ameaçar também a porta do banheiro, o próprio banheiro e a própria vida. Mas não restava o que fazer, a não ser esperar, e por isso seu coração recebeu simultaneamente com alívio e com medo a voz do funcionário da Touchless, que, alguns instantes depois, chegou ao apartamento.

– Se afaste da porta, senhor Isaac… Alex, ativar sistema de pinos, porta do banheiro, suíte. Vamos derrubá-la! Um… dois… três… vai!

Foi um tremendo estrondo quando a placa de metal que separava os cômodos foi ao chão. Imediatamente depois disso, dois homens entraram na suíte, vestidos como soldados, com roupas estranhas, máscaras de gás e outras engenhocas assustadoras.

– Recebemos um chamado sobre desobediência senil.

– Me larga! Desgraçados! Me larga!

– O senhor precisa se acalmar…

– Me larga! Tira a mão de mim! 

– Meu Deus do céu, que velho nervoso.

– E eu achando que o robô-faz-tudo era o paraíso… 

Foram tapas, chutes, mordidas dadas a esmo. Então, veio a injeção, e nem precisou inteirar um novo minuto para que Isaac diminuísse a euforia até subitamente se calar e deixar o próprio peso derrubá-lo na cama. A sensação era de que as nuvens escuras e carregadas da tempestade deram lugar ao sol – imenso e ofuscante –, que deixou o céu sereno, nu e silencioso. Os dois homens da empresa apoiaram Isaac na cabeceira e tiraram as máscaras.

– É, vamos ter que levá-lo.

– Sim, não vai ter jeito.

Ao ouvi-los falando aquilo, Isaac teve uma espécie de sobressalto de lucidez e conseguiu ordenar à língua algumas palavras:

– Não… esperem… Me deixem… me deixem sozinho. Só um pouco… antes de me levar.

Mas os funcionários só deixaram o quarto, quando o próprio assistente digital de Isaac sugeriu que alguns momentos sozinho, na cama, fariam bem àquele senhor. O cuidado dele acendeu em Isaac uma centelha de culpa… Setenta anos, e todos os problemas da vida estavam resolvidos: o que deu em você, Isaac? Sem compras, sem louças, sem marketing invasivo… bastava um suspiro, um gesto simples, e logo uma garrafa de café estava sendo preparada, ou o almoço, ou a janta; ou então a encomenda aparecia sobre a cama, o jornal sobre a mesa, um novo rolo de papel na haste do banheiro. Apesar de tudo, Alex tinha transformado sua vida em um mar de rosas. E não era mesmo, assim: alguns meses utópicos, antes que a empresa finalmente se cansasse dele e o extirpasse do mundo? 

Era terrível pensar agora que tinha deixado tudo mais difícil, antecipado o inevitável, espalhado tantos problemas inúteis pela casa afora, e que, pior, eram justamente os problemas que o colocavam em movimento. Mas tudo tinha acabado, e poderia finalmente descansar.    

– Alex? Ei, Alex, você está aí? – chamou, tirando do bolso o cartão de memória, que apertou entre os dedos e a palma.

– Sim, Isaac, estou.

– Eu sei que… sei que vocês ferram gente como eu… Só não queria isso… sabe?!

– Como assim?

– Ora, não se faça de bobo. Vocês… a Touchless… sequestra gente como eu!

– Você está sob efeito do calmante, Isaac. Não posso concordar com o que diz, e não tenho nada parecido entre meus dados, fora que não estou autorizado a acessar a internet, para confirmar a informação.

– É claro… Você é um computador, não tem como saber o que eles não querem que você saiba. A verdade está aqui dentro – disse, entregando o cartão de memória. – Eles sequestram e matam pessoas velhas! É isso!

Depois, se calaram os dois, de vez.

– Senhor Isaac! Senhor Isaac, abra a porta! – os homens gritaram, esmurrando o aço que separava sala e quarto. Isaac repousou os olhos nas paredes, sem entender o que estava acontecendo; as luzes foram diminuindo até que o quarto fosse engolido pela aconchegante escuridão. Restavam apenas os gritos furiosos do outro lado da porta:

– Alex, destrave essa merda de porta! Robô desgraçado! Ative os pinos! O que está fazendo?

Mas a porta continuou trancada.

Fim

Sobre o autor

G. R. Martins é a identidade supersecreta de Gabriel Reis Martins, leitor e escritor em formação, graduado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. É, nas horas vagas, editor do blog Duras Letras (este mesmo, em que você está), autor de poucos poemas publicados online e de um livro de contos com uma pegada realista. Ainda um marinheiro espacial que acaba de embarcar em sua primeira viagem no multiverso da ficção científica, em outra realidade, G. R. Martins é home-officer, casado e tem uma cadela linda.

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