Como ler Tragédias Gregas: um guia conciso

Algumas das maiores obras preservadas pelos séculos na literatura ocidental têm origem na Grécia Antiga. Poderia estar me referindo à Ilíada, ou à Odisseia, mas me refiro a uma categoria distinta e mais ampla: a tragédia grega, consagrada especialmente pelas peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípides, três dos maiores dramaturgos da Antiguidade.

Quem nunca ouviu falar no Complexo de Édipo? Ora, o termo freudiano, não por acaso, provém do personagem homônimo, protagonista da peça de Sófocles, Édipo Rei, uma das obras mais célebres da história, que apresenta a desgraça do homem que matou o próprio pai e desposou a mãe, fugindo da própria sina.

Do mesmo autor são as obras Antígona e Édipo em Colono, que junto da primeira compõem a chamada Trilogia Tebana. Aquela, por sua vez, tragédia que conta o triste destino da prole incestuosa de Édipo, destruída na luta pelo trono deixado pelo pai, e esta a ocasião de Édipo a vagar em busca de sua morte.

Ésquilo, Sófocles e Eurípides

Não menos notável é a obra de Eurípides, que assina peças como Medeia e As Bacantes, ou a de Ésquilo, autor de OréstiaOs Persas, entre outras de igual importância. Não é pouco se atrever a ler esses textos, que são parte das maiores e mais ilustres referências literárias da humanidade, mas o desafio pode ser um pouco menor quando sabemos o que procurar nessas leituras – além do deleite e do autoconhecimento. Alguns importantes conceitos para essa empreitada, logo abaixo, podem ajudar a desvendar a tragédia grega. Vamos a eles.

Poética de Aristóteles

A Poética, escrita pelo filósofo discípulo de Platão no século IV a.C., é um conjunto de notas sobre arte, supostamente originárias de suas aulas, nas quais discorre sobre conceitos como a Catarse, a Mímeses, a Anagnorisis, o Mythos, a Peripeteia e outros mais. Considerada durante anos como normativa, hoje se levanta a hipótese de que se trataria antes de um documento descritivo da arte clássica. Independentemente de quais das teses é a correta, a Poética é sem dúvida um dos mais importantes textos para compreender a tragédia antiga.

Catarse

Embora usado corriqueiramente para designar algo como “empatia”, o termo não é muito claro. Aristóteles o menciona associando-o a um sentimento de terror e piedade que ocorre no espectador durante um espetáculo teatral, gerando sua purgação. Para além da banalidade da ideia da identificação com os personagens (já disse Freud: somos todos Édipos), há também os aspectos do horror de seu destino, e a compaixão pelo que ocorre. Em termos simples, isso é catarse. Mas os termos simples são redutores, vale sempre lembrar, e por isso é importante não se limitar a essa visão do termo.

Hybris, Hamartía e Moira

Três dos conceitos mais fundamentais para compreender a tragédia grega, a qual era estruturada com propósito de mais que divertir, mas educar os gregos para a cidadania, são eles a síntese da estrutura do enredo trágico.

O primeiro deles, hybris, pode ser compreendido como o excesso. Este excesso se vê em todas as peças mencionadas na nossa introdução, mas a título de exemplo pensemos o caso de Medeia, que não escuta o conselho da pólis (o conselho da cidade), e vai até o fim na vingança contra Jasão, ultrapassando a sua justa-medida (o métron). O caso de Édipo, também muito exemplar, traz à tona em sua hybris a luta contra o seu destino – luta, portanto, contra os deuses –, que faz com que o personagem entre num conflito em que não poderá sair vencedor.

Associado a este conceito está o da hamartía, a assim chamada falha trágica. Tal falha, ou erro, não advém do caráter “mau” de um personagem, mas de um erro de cálculo que o leva ao desencadeamento funesto de sua história. Voltando a Édipo, como exemplo, o fato de não conhecer sua verdadeira identidade faz com que ele cometa crimes terríveis contra as leis divinas, recaindo sobre o terceiro dos conceitos: a Moira.

O último dos três termos equivale à força do Destino. A Moira, mais poderosa que os outros deuses, pois é quem governa o fio da vida de cada um deles, também gere as profecias que levarão o herói trágico ao desenlace sinistro de sua trama. Assim, finalizando com a obra-prima sofocliana, a piedade que temos de Édipo vem de sabermos que seu destino já estava selado muito antes de que tivesse a possibilidade de se tornar culpado por ele. Mas para a tragédia grega, a consciência ou não do crime não isenta quem o cometeu de sua responsabilidade: temos, então, em desfecho, Édipo, que se cega, e Jocasta, sua mãe, que se suicida ao conhecer a identidade de seu marido.

Nêmesis

Para nossa sociedade contemporânea, talvez pareça um tanto quanto demais que esses personagens sejam culpados e penalizados por fatos que estavam além do seu controle ou alcance, mas para a antiguidade esse desenredo é o que se entende por Nêmesis, a justiça divina – esta que é muito distinta do que temos por justiça, mas que era o acerto de contas, a Lei do Talião, daquela época e daquela cultura. É isso o que leva, por exemplo, ao fatídico fim de Penteu, que é destroçado pelas bacantes, na peça de mesmo nome (só por curiosidade: em grego, esse processo se chama sparagmós).

Deus ex machina

Outro conceito interessante de se ter em mente é este: Deus ex machina, o deus da máquina, aquele elemento, personagem ou saída inesperada que surge ao final para resolver milagrosamente o final catastrófico da trama. O exemplo mais clássico talvez seja o final de Medeia, quando o carro do Sol – que até então não era parte da narrativa –surge ao fim da peça para que Medeia escape à ira de Jasão.

Medeia foge no carro do Sol, em pintura de Charles Andre Van Loo (1759).

Curiosidade

O (polêmico) diretor Woody Allen, traz para a sua composição no filme Poderosa Afrodite (1995) diversos elementos típicos do teatro grego, brincando com sua estrutura e estética… Te desafiamos a identificá-los!

Passeio pela literatura latina

A literatura latina, grosso modo, tem suas raízes na literatura clássica grega, e é ainda estrutura fundadora para autores de todo o Ocidente. Algumas das primeiras obras de que se tem registro são parte das origens teatrais da cultura latina, dos quais se destacam o fescenino, a sátura, a atellana e o mimo , que apresentam graus distintos de complexidade e inovação. A atellana, em especial, divide-se em vários tipos: há a atellana rústica, a mitológica, a de costumes e intrigas e a de caracteres, nas quais há grande presença dos tipos de Teofrasto (como o velho, o escravo, o parasita, o alcoviteiro, etc.).

Há também no sistema teatral da antiguidade latina a Palliata, que é a comédia de assuntos gregos, de convenções bastante previsíveis e enrijecidas, como a quebra da ilusão dramática, a farsa, o diálogo com o público, a personagem protática e o enredo repetitivo, em especial o da história da amor proibido com cena de reconhecimento. Desse período, destacam-se dois grandes dramaturgos, Plauto e Terêncio, cujas obras ainda hoje influenciam tramas dos dramas contemporâneos, como o famoso caso da Aululária, de Plauto, que deu origem tanto à peça O Avarento, de Molière, quanto a O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna.

Outros que contribuíram para a constituição da literatura latina como a concebemos foram os poetas agrários, em especial Catão e Varrão, embora as Geórgicas de Virgílio também façam parte do mesmo enquadramento. Suas obras, De agricultura e De Re Rústica, entre outras, decorrem sobre as questões da terra, da colheita, da plantação e da vida rural, sendo parte essencial do imaginário que permeia a antiguidade romana.

Além das Bucólicas e das Geórgicas, é também autor da Eneida, uma das maiores obras da história da literatura latina, que narra as desventuras de um dos grandes heróis da guerra de Troia, Eneias.

Além destes, um poeta de imensa importância foi Cícero, autor de numerosas obras de caráter filosófico e reflexivo, em que decorre a respeito de temas como Da velhice, Da amizade, Da natureza dos deuses, etc. Seus escritos, de maneira geral, intentam a composição de um argumento retórico de nível elevado em que as questões propostas são enunciadas e exploradas amplamente.

Depois dele, também é imprescindível lembrar Lucrécio, seguidos dos epicuristas e autor de De rerum natura, poema que descreve “a natureza das coisas” ou, como sugere Miguel Spinelli, “as coisas naturais”, passando pela invocação a Vênus e à composição material da natureza, que já se imaginava composta de átomos. Nessa obra, o autor argumenta a favor do que mais tarde viria a ser conhecido como Lei de Lavoisier, aquela em que se enuncia que nada vem do nada: pelo contrário, a disposição de tudo o que conhecemos é determinada pelo arranjo, desarranjo ou rearranjo dos átomos.

Houve também grandes historiadores, como Salústio, Suetônio, Plutarco e Tito Lívio, que forneceram obras essenciais para a compreensão da Roma Antiga. Caio Júlio César, entre eles, foi um dos mais influentes, tendo escrito a Guerra Civil, A Guerra das Gálias e ainda outros eventos históricos, elaborando uma ampla narrativa (bastante contundente, ainda que parcial) sobre a formação do império romano.

Caio Júlio César

Por fim, ainda que muitos outros tenham havido, chamo a figura de Catulo, Cancioneiro de Lésbia, poeta de considerável expressão que escreveu o pathos amoroso, os costumes da época, poemas de homenagem aos mortos, poemas de ciúme e de perda, sendo portentoso tanto no impacto do conteúdo quanto no movimento erótico da sua linguagem.

Catulo

Todos esses grandes autores formaram, no conjunto, um repertório cultural que fundou não só o conhecimento que se faz da literatura latina do período clássico, como também as bases de toda a literatura ocidental que adveio dessa sociedade, sendo um berço ao qual poetas, estudiosos e curiosos retornam sempre em vistas de conhecer e compreender sua origem e os pilares da sua formação cultural.

Repensando Vênus

Miguel Spinelli abre seu artigo acerca de De rerum natura, de Lucrécio, com o questionamento da tradução do título. Segundo o autor, se a tradição tende a preferir “Da natureza das coisas”, fórmula mais apurada seria “Das coisas naturais”, o que, de fato, altera em muito o sentido atribuído, e se aplica melhor ao conteúdo do poema.

Em seguida, disserta sobre a abertura do livro, que contempla a invocação a Vênus, “Enéadas genitora”, e as apropriações do mito de Enéias derivado das narrativas da Ilíada de Homero. Eneida e De rerum natura, cujos autores, Virgílio e Lucrécio, são praticamente contemporâneos, denotam o mesmo ethos, tencionando unir o lendário e o real, assim como a herança grega ao berço romano, de acordo com Spinelli. Assim, ele explica, a figura de Vênus foi muito cultuada porque, sendo mãe de Enéias, era tida também como mãe de todos os romanos.

O poema de Lucrécio, no entanto, descreve em seu conjunto o ciclo das coisas naturais, desde a geração até a morte, dando início à tradição filosófica dos estudos da phýsis. Seguindo uma linha de pensamento epicurista, o poeta desloca a questão “o que é o ser?” para o pólo “o que é ou não natural do ser?”. Assim, em sua elucubração, ele defende que nada vem do nada, e tampouco retorna ao nada, sendo os processos de todas as coisas determinados pelo arranjo, desarranjo ou rearranjo dos átomos.

Spinelli disserta, então, quanto às fontes para o poema em questão. Duas delas são manuscritos conservados hoje na Universidade de Leyden, o Oblongus e o Quadratus, que tiveram como títulos De rerum natura, o primeiro, e De physica rerum origine vel effectu, o segundo. Além desses, há os códices chamados Itali, cópias feitas no século XV por Bracciolini, e que deram origem à tradição italiana dos estudos do poema.

O autor apresenta, depois, o que se poderia considerar, à primeira vista, um paradoxo da obra: a invocação de Vênus e a mensagem do livro, de que não há ou houve criação divina, sendo os átomos a origem de tudo. Sua lógica parte do pressuposto (já conhecido de Cícero) de que os deuses são desinteressados e impassíveis às questões humanas, e que em nada interferem.

Assim, se os deuses não se comovem das preces, por que invocar a Vênus logo ao início para frutificar as palavras e apartar as guerras? Dentre as razões apresentadas por Spinelli, existe Mêmio, a quem o poema é dedicado, cuja família cultuava a deusa, e a reverência aos romanos, que tinham Vênus em grande estatuto, por ser a “mãe” de seu povo.

Na perspectiva de Lucrécio, contudo, Vênus governava a natureza junto de Ver (a Primavera) e Ceres (deusa da colheita e da fertilidade), sendo, nesse sentido, a Alma Venus cultuada pelo poeta aquela responsável por promover, alimentar e nutrir a fertilização da vida. Era também ela a responsável, junto a Cupido e Primavera, por unir e festejar a fertilidade dos amantes, fazendo com que se encontrassem e se apaixonassem.

Desse modo, a Vênus de Lucrécio apresenta várias faces, dentre as quais as de musa, de mãe, de cupido, de Alma Venus e também de vulgívaga, que muito para além do arquétipo da meretriz, carrega a representação da mulher volúvel, inconstante e mutável. Todos esses predicados, por sua vez, fazem que sua síntese reapareça em uma palavra, de acordo com Spinelli: amor. Em suas muitas individualidades, esse amor poderia aparecer como amor calmo, altruísta, terno, mas também como o ardoroso e efervescente amor da paixão. (lembrando que Lucrécio, por seguir a linhagem epicurista, tende a pensar o amor-paixão como causador de mais dor que alegrias.)

Em conclusão, a figuração de Vênus retoma o ícone da fertilização da vida: eis a razão de ser uma deusa de todos os povos, mãe de todas as formas de amor.


SPINELLI, Miguel. Lucrécio E Virgílio As Várias Faces De Vênus: Musa, Genitora E Vulgívaga. Hypnos, São Paulo, n. 23, p.258-277, 2009.

Narrativas da Gália, por Caio Júlio César

O primeiro livro de A Guerra das Gálias, de Caio Júlio César, relata os princípios que levaram os romanos e os helvécios a entrarem em guerra. A narrativa, repleta de descrições geográficas e passagens de ficção meta-historiográfica (falas e pensamentos de personagens históricos), apresenta um sedutor tom romanesco, que confere à obra um grande deleite em sua leitura. Abaixo, segue uma síntese dos principais eventos que conduziram à  guerra entre esses povos, tal como apresentados pelo historiador nos primeiros XX excertos do livro I.

Os helvécios, liderados por Orgétorix, decidem marchar para além das fronteiras de seu território. Orgétorix forma aliança com os sequanos e os éduos, no intento de restabelecer a monarquia e dominar toda a Gália. Quando descoberto o plano, o nobre é preso e morre pouco depois – provavelmente por suicídio. Mesmo assim, os helvécios mantêm o plano de sair de suas terras, e queimam as casas, campos e vilarejos, para que não se sintam tentados a voltar e lutem com a maior bravura, convocando povos vizinhos a proceder da mesma forma.

Para obter sucesso no empreendimento, os helvécios decidem passar pela ponte de Genebra, que atravessa o rio Ródano. Contudo, César, o imperador, envia imediatamente tropas romanas para interceptá-los. Os passantes enviam, por isso, embaixadores para advogar em sua causa, mas este, lembrando-se de que haviam morto o cônsul Lúcio Cássio, prefere não conceder a passagem pela Província.

Não bastando se opor à sua travessia, o imperador romano ordena ainda a construção de uma enorme muralha a que juntou um fosso, para impedir de vez a sua passagem. Desiludidos, os helvécios tentam atravessar o Ródano por outros pontos, mas se deparam com obstáculos criados pelos romanos e desistem da empreitada.

Desse modo, a única maneira de atravessar seria pelo reino dos sequanos, e para isso pedem o auxílio de Dúmnorix, que tem por nora a filha de Orgétorix, e que consegue a concessão para a sua passagem segura, com comprometimento de ambas as partes.

Não obstante, relatam a César que, após a passagem pelo reino dos sequanos e dos éduos, os helvécios se estabeleceriam numa região vizinha à dos tolosates, região rica em trigo e que pertencia à Província. O imperador julgou que seria imprudente ter um povo tão belicoso e inimigo dos romanos tão próximo, e fez as legiões romanas intervirem, atalhando o caminho pelos Alpes.

Após a passagem pelos sequanos, os helvécios seguem pelo reino dos éduos, queimando e devastando seus campos. Estes, indefesos, escrevem pedindo auxílio a César, assim como os alóbroges, que tinham terras do outro lado do Ródano e que também sofreram a violência dos helvécios. César, então, parte ao alcance dos inimigos, e num combate surpresa consegue vencer um grande número dos que ainda não haviam atravessado o rio Saône, mais lento que o Ródano.

Para alcançar os outros, que já haviam passado pelo rio, ele comanda a construção de uma ponte sobre o Saône, pela qual faz passar todo o seu exército. Os helvécios, intimidados, enviam Divicon, que fora seu general, para atuar como embaixador com o inimigo. Ele diz a César que “se o povo romano fizesse a paz com os Helvécios, os Helvécios partiriam e se estabeleceriam nos lugares onde César entendesse fixá-los; mas que se persistisse em lhes fazer guerra, se lembrasse do passado dissabor experimentado pelo povo romano e do antigo valor dos Helvécios.” (Livro I, XIII)

César, por sua vez, ainda se mostra ultrajado pelas violências antigas, em que Lúcio Cássio foi morto, e pelas recentes, como a tentativa forçada de passar contra a sua vontade o rio Ródano e a brutalidade cometida contra os éduos, ambarros e alóbroges, mas concederia a paz sob a condição de ter reféns como garantias de suas promessas e de satisfação aos povos ultrajados. Contudo, Divicon responde que os helvécios não oferecem reféns, e se retira. No dia seguinte armam o acampamento de guerra.

A cavalaria de César, composta de cerca de quatro mil homens, leva uma grande desvantagem no combate contra os cerca de quinhentos helvécios que lhe fizeram oposição, fazendo que estes se tornassem mais audazes e que a distância entre os inimigos se mantivesse sempre pouca. Enquanto isso, César insistia que os éduos enviassem trigo aos campos de combate, posto que não havia abundância de provisões nem meios de obtê-las, quando descobre uma conspiração para desviar o trigo enviado e fornecer informações aos inimigos helvécios.

Lisco, aliado de César, revela que Dúmnorix está por trás da traição, procurando a perturbação política para colocar ele próprio as mãos sobre o poder, tendo, para isso, tomado por esposa uma mulher do povo helvécio. Se os romanos fracassassem, Dúmnorix poderia tentar ele próprio tornar-se rei. Além dos rumores, juntaram-se as informações do auxílio conferido por este na passagem dos helvécios pelo reino dos sequanos, garantindo a troca de reféns e a segurança da travessia, que não só fora feita sem o comando do imperador como também sem que tomasse qualquer conhecimento.

César, então, convoca Diviciaco, irmão de Dúmnorix, por quem mantinha grande amizade e apreço, e expõe os fatos. Este, às lágrimas, pede que César seja clemente, e não infrinja grande suplício ao irmão, embora estivesse convencido de que este era de fato culpado das acusações.

O livro, de tom bastante convidativo, entretém o leitor comum como o leitor analista. Possui uma grande riqueza em detalhes, narrativa envolvente e ajuda a construir de maneira divertida e leve uma perspectiva da história romana, a partir de um de seus mais próximos e melhores narradores.

Uma décima musa? A Afrodite de Tito Lucrécio

Pensador Da Natureza das Coisas: quem foi Tito Lucrécio?

Imagem de T. Lucrécio (59 a.C. – 17 d.C.)

São poucas as informações que chegaram até nós a respeito da vida e produção de Tito Lucrécio, autor de De rerum natura – épica-didática traduzida para o português como Da natureza das coisas (em algumas traduções, Da natureza do Universo). Apesar de tal ausência de material biográfica, sua obra, editada por Cícero postumamente, possui valor inestimável para a tradição filosófica e literária ocidental.

Resumidamente, a obra, dividida em seis capítulos diferentes, possui como temática geral questões que propõem uma libertação em relação às perspectivas mitológicas que envolvessem divindades ou falsas crenças. Apresenta, como o próprio título sugere, a naturalidade das coisas, além de uma metafísica excessiva. Para tanto, ele se vale principalmente de duas filosofias tradicionais: a atômica e a epicurista, sendo o responsável pela universalização da segunda.

Fora esses seis capítulos, ainda é acrescentado no livro um prólogo, do qual a introdução será analisada neste pequeno texto. Na primeira parte desse prólogo é feita uma invocação para a deusa Vênus. Já aqui, observamos um fato interessante: diferente dos poemas épicos da tradição homérica, Lucrécio invoca uma deusa que não é uma das nove musas do Olimpo, o que, ao mesmo tempo, ressignifica seu texto e atribui a deusa aclamada o estatuto de nova musa. Tal escolha pela deusa do amor está fortemente ligada ao caráter gerador da divindade, que estimula a procriação e que pode ser identificado nos versos:

19 incutindo a todos brando amor no peito, fazes que cupidamente, todos se

20 propaguem por séculos de geração em geração.

Outro traço que justifica a escolha, está relacionado ao apelo que o poeta faz ao leitor romano, familiarizado com os cultos ao deus Marte, em outras palavras, a convivência com a guerra e o combate constantes. Mitologicamente, Marte e Vênus possuem uma relação amorosa, que pode ser interpretada, nas palavras do poeta, como uma relação necessária entre o Amor e a Guerra, paz e luta:

29 Nesse ínterim, faze que os feros trabalhos da guerra

30 por mares e todas as terras repousem aplacados.

31 Pois tu somente podes com paz tranquila socorrer

32 os mortais, uma vez que Marte armipotente rege os feros trabalhos

33 da guerra, que, muitas vezes, no teu regaço se

34 aninha, vencido de eterna ferida de amor

Tal proximidade, apesar de inovadora na construção do prólogo da obra, já se apresentava na cultura grega. A palavra em grego μειγνυμι (meignymi) é um bom exemplo de como já no berço da cultura ocidental não havia uma separação categórica entre a Guerra e o Amor/Desejo. Este vocábulo apresenta duas traduções possíveis para o português: relação sexual ou combate, luta; em síntese, uma relação ‘corpo a corpo’.

É importante lembrarmos que, como disse Horácio, um dos maiores nomes da literatura latina, graecia capta ferum victorem cepit, em tradução: “a Grécia, conquistada, conquistou os selvagens vitoriosos”, frase que confirma e assume as diversas influências e recorrências de signos gregos na literatura e filosofia latina.

Finalmente, nos últimos versos da invocação à deusa, o poeta descreve com que labor a deidade conduz o deus Marte para a paz; é justamente a capacidade de tranquilizar os ânimos, a “leveza” das palavras, que Lucrécio pede à Vênus. Tal pedido guarda em si uma ambiguidade, pois, por mais que se distancie de um pensamento que alinhe as divindades e o mundo, o autor começa seu texto filosófico pedindo os encantos de um deus.

Microfilmagem da primeira parte de De rerum natura.

A paixão de Lucrécia: nuances de um mito

Segundo a tradição, Lucrécia teria sido uma nobre dama romana da Antiguidade que foi estuprada e, não vendo outra saída para sua dor e humilhação, teria recorrido ao que previa a lei da época, incorrendo tragicamente em suicídio, por meio de um punhal, e tendo seu corpo é levado a público.

O fato teria causado tamanha comoção popular que as manifestações gerais conduziram a uma revolução que culminou na ruína do regime monárquico da Roma Antiga e na expulsão de seu último rei, Lúcio Tarquínio Soberbo (século VI a.C.), pai do estuprador de Lucrécia, Sexto Tarquínio, instaurando em seu lugar a República Romana.

Tal mito foi recontado e recriado por numerosos autores, entre eles Ovídio, Maquiavel, Dante Alighieri e Shakespeare. O último, em seu poema narrativo “The Rape of Lucretia”, escreve:

“At last she calls to mind where hangs a piece
Of skilful painting, made for Priam’s Troy:
Before the which is drawn the power of Greece.
For Helen’s rape the city to destroy,
Threatening cloud-kissing Ilion with annoy;
Which the conceited painter drew so proud,
As heaven, it seem’d, to kiss the turrets bow’d.”

Nesse poema, traduzido com o título de “O Rapto de Lucrécia” (rapto tendo a si a conotação da origem latina rapere, isto é, abdução ou violência sexual), sobressaem talvez as primeiras nuances psicológicas da protagonista, que até então não eram exploradas, uma vez que, ao ser estuprada, Lucrécia era considerada promíscua pela cultura da época, fazendo que o mito fosse uma exaltação da castidade.

É só a partir do século XVI, no entanto, que a figura de Lucrécia passa a ser representada de uma maneira não-casta. Ocorre, na realidade, uma inversão, e a sua imagem passa a ser figurada de modo a destacar uma sensualidade que algumas vezes aparece mesmo exacerbada.

Além da escrita, o mito foi amplamente explorado também na pintura, sendo reimaginado por Ticiano, Botticelli, Cranach e muitos outros.

Susan Vreeland, autora do livro A paixão de Artemísia, também toma parte na história da nobre romana, lançando-a sob nova luz por meio de sua protagonista, Artemísia Gentileschi.

Artemisia Gentileschi / Артемизия Джентилески (1593-1653) – Lucrezia / Лукреция (около 1620-1621)

Artemísia, sendo pintora e mulher, ao ser incumbida do desafio de fazer uma pintura sobre a história, escolhe retratá-la sob outra perspectiva: a da dúvida – do momento crucial em que Lucrécia decide sobre o que fazer frente a sua situação, o momento em que decide, enfim, se deve ou não tirar a própria vida.

Tal a importância do momento da escolha que, acima até mesmo da própria morte e do próprio estupro, ele se torna aquele que caracterizaria a dimensão do peso do dilema entre a força e o sofrimento que estavam em questão no desfecho de Lucrécia.

Assim, seu mito ressoou por séculos pelas visões de diversos escritores e pintores, cada um deles deixando sua própria marca e seu olhar no legado dessa terrível tragédia que, até hoje, se reflete no dilema feminino frente a essa situação.

Ficam em aberto, e sem que haja necessidade de serem respondidas, as questões que pairam ao redor do seu suicídio: teria Lucrécia tido mesmo uma escolha? Haveria para ela outra saída que não a própria morte?

Resenha – “As bucólicas”, de Virgílio

As bucólicas: Narrativa da poesia, da terra e do amor

VIRGÍLIO. Bucólicas: edição bilíngue. Trad. Raimundo Carvalho. Belo Horizonte: Crisálida, 2005.

Para a presente resenha, foi escolhido o livro “Bucólicas: edição bilíngue” de Virgílio, elaborado pela editora Crisálida com a tradução de Raimundo Carvalho. Expõem-se abaixo, sinteticamente, os resumos das éclogas I a X presentes no livro, bem como trechos ilustrativos das passagens em questão.

Écloga I: Melibeu e Títiro conversam; este toca a flauta, sentado na relva sob a sombra de uma faia… Conversam sobre os amores e sobre os campos, que sofreram reviravoltas por força das guerras. Os cantos finais revelam que Títiro pôde conservar os seus, enquanto os de Melibeu lhes são destituídos, como evidencia o trecho abaixo:

Algum dia, depois de longo tempo, a pátria
e meu pobre casebre entre a relva revendo,
com espanto verei no meu reino uma espiga?
Um ímpio militar possuirá estas glebas?
Um bárbaro a seara? Onde a guerra lançou
míseros cidadãos! Para outros semeamos!

(I, 67-72)

Écloga II: Córidon, um pastor, reflete sobre seu amor não correspondido pelo seu servo, Aléxis. Argue com relação às suas posses e a sua beleza física, aludindo além disso às suas aptidões musicais, comparando-se ao fundador mítico de Tebas:

Canto o que, ao guiar seu gado, cantava
Anfion, o dirceu, em ático Aracinto.

(II, 23-24)

Aléxis, contudo, não corresponde aos seus clamores, e o repele definitivamente, dizendo:

Aléxis não quer teus dons, ó Córidon rústico,
nem Iolas cederá, mesmo se deres muitos.

(II, 56-57)

Écloga III: Menalcas e Dametas, dois pastores, trocam insultos e decidem medir-se com seus cantos, numa competição pela superioridade em suas artes, mediados pelo amigo Palêmon. Invocam, na justa, os nomes de muitos de seus deuses, Júpiter, Febo e Vênus como exemplo, falando também do amor e do gado. Não é eleito, contudo, nenhum vencedor.

Écloga IV: Uma das mais exemplares no que diz respeito à fortuna crítica, a quarta écloga apresenta a vinda de um menino, previsão messiânica que porá fim à idade de ferro para acolher a idade de ouro, o que levou muitos a compreender o poema como profecia da história cristã:

Nasce agora uma grande ordem de novos séculos.
Já a Virgem retorna, e o reino de Saturno;
já nova geração vem vindo do alto céu.
E do menino, sob o qual, raça de ferro
sumindo, surgirá uma de ouro no mundo,
casta Lucina, cuida: o teu Apolo reina.

(IV, 5-10)

Écloga V: Menalcas e Mopso unem-se para com suas flautas honrar Dáfnis (amigo destes e exímio poeta, que deixou a todos desconsolados com sua morte), ofertando a ele, além de cantos, votos e louvores em seu nome, oferendas anuais de azeite, leite fresco e vinho. Ao final, os poetas trocam suas flautas, e Menalcas propõe-se a ensinar a Mopso os cantos das éclogas II e III:

Mopso:

Morto Dáfnis, cruel fim as Ninfas choravam
(vós, rios e avelãs, vistes a dor das Ninfas),
quando, ao corpo do filho infeliz abraçada,
a mãe chama cruéis deuses e também astros.

(V, 20-24)

Menalcas:

Nem o lobo tocaia o gado ou redes cervos
almejam: ama a paz o benéfico Dáfnis.
Aos céus sobem a voz, com alegria, os montes
intocados, até as grutas e os arbustos
entoam: “Ele é deus, o nosso deus, Menalcas!”

(V, 60-64)

Écloga VI: Mnasilo e Crômis avistam Sileno, um cantor, dormindo em uma gruta, embriagado, e o atam, seguidos logo por Egle, descrita como “Naiadum pulcherrima”, isto é, Náiade muito bela. Para convencê-los a soltá-lo, se propõe a cantar-lhes versos, e começa por cantar a origem do mundo:

Nem tanto alegra Febo as pedras do Parnaso,
nem a Orfeu admira, o Ísmaro ou o Ródope.
Ele cantava, pois, como, no grande vácuo,
sementes de água e ar, de terra e fogo fluido
se fundiram; daí, originando tudo,
como também a tenra abóbada do mundo;
o solo endureceu, fechou Nereu no mar
e aos poucos foi tomando o formato das coisas;
a terra admira um sol novo sempre a brilhar,
e as chuvas a cair de nuvens muito altas,
enquanto selvas vão surgindo e animais
vagam dispersos sobre esses montes ignotos.

(VI, 29-40)

Narra  também os grandes feitos da mitologia antiga, aproximando-se de uma estética do épico, como a paixão de Pasífae, o roubo de Prometeu, as maçãs das Hespérides, o mito de Cila e outros mais, enquanto faunos e feras dançam balançando as copas dos carvalhos.

Écloga VII: Tírsis e Córidon medem seus versos, retomando a estrutura da terceira écloga. São mediados pelo pastor Melibeu, e o segundo é conclamado vencedor, ainda que a razão para isso não seja colocada em evidência.

Écloga VIII: Dámon e Alfesibeu cantam seus amores – este, por Dáfnis, para fazê-lo retornar da cidade magicamente, através de um ritual; aquele, por uma mulher, Nisa, que foi dada a Mopso. Alfesibeu, feliz, tem ao final o retorno de Dáfnis; Dámon, por outro lado, finaliza o canto com uma sugestão de suicídio.

Dámon:

Nasce, prenunciando um belo dia, ó Lúcifer!
Logrado pelo vil amor da noiva Nisa,
queixo-me aos deuses (vãs testemunhas embora),
nesta hora suprema em que estou morrendo.

(VIII, 17-20)

Dámon:

Modula, minha flauta, estes versos do Ménalo.
Muda-se tudo em mar alto. Selvas, adeus:
O abismo saltarei do topo de um rochedo;
às ondas; toma o dom extremo de quem morre.

(VIII, 58-61)

Alfesibeu:

Traze água e cinge o altar com fita maleável
queima grassa verbena e um incenso forte,
pois, com um ritual, perverter o juízo
do amado tentarei. Só me faltam encantos.
Encantos meus, trazei da cidade o meu Dáfnis.

(VIII, 65-69)

Alfesibeu:

É verdade? Ou quem ama inventa os próprios sonhos?
Chega de encantos já, vem da cidade Dáfnis.

(VIII, 109-110)

Écloga IX: Lícidas e Méris conversam. O primeiro elogia os versos do segundo, sendo representado como um poeta muito humilde. Novamente se assoma a questão da terra, retomando a temática da primeira bucólica.

Méris:

Vivemos para ouvir, Lícidas, um intruso
(nunca pensei), senhor de nossos parcos campos,
afirmar: “Isto é meu; migrai, velhos colonos”.
Tristes, vencidos, já a sorte tudo inverte,
lhe mandamos (que o mal lhe tragam!) uns cabritos.

(IX, 2-6)

Écloga X: Galo, um poeta, canta seu amor a Licóris, que fugiu com outro pelo Reno. Sua formulação o apresenta como altamente sentimental e “patético” – no sentido originário de afetado pelo pathos. A bucólica não apresenta solução para a questão, mas sugere um final trágico.

“De onde vem tal amor?”, perguntam. Veio Apolo:
“Que insânia, Galo?”, diz; “tua cara Licóris,
foi com outro a quartel erguido em meio à neve”.

(X, 21-23)

Tu (pudera eu não crer), tão distante da pátria,
vês, dos Alpes, a neve e a neblina do Reno,
tão sozinha e sem mim. Que isso não te maltrate!
Ah, não fira teus pés tenros o gelo áspero!

(X, 46-49)

Com a análise das dez éclogas, saltam aos olhos algumas temáticas e recursos recorrentes na poética virgiliana: o pathos nas invocações amorosas (éclogas II, IV, VIII e X), a questão da terra, associada frequentemente a possível incidente biográfico (éclogas I e IX), a competição entre poetas para medir seus versos (éclogas III e VII), e a própria reverência às aptidões poético-musicais (éclogas V e VI).

Possivelmente, entre todas, a bucólica que mais se afasta da composição estética da antologia é a sexta, por narrar grandes feitos épicos, a criação do mundo e os grandes heróis da mitologia clássica, ao contrário das demais, que se atém às questões do campo, do amor, da habilidade, da rejeição, do sofrimento, etc., isto é, aos assuntos mais imediatos e tangíveis da experiência humana.

O conjunto também apresenta como traço comum a auto-referenciação, retomando personagens ou trechos de uma écloga em outras, como Córidon ou Melibeu, que aparecem mais de uma vez “em cena”; Dáfnis, que está morto na quinta écloga, motivo pelo qual os poetas choram, mas que conversa com Melibeu na sétima; ou a proposta de Menalcas de ensinar a Mopso as éclogas II e III; entre outros exemplos de trechos que conformariam, em união, um universo mítico.

Além disso, pode-se notar uma grande presença de elementos dramáticos, como a fala em tempo presente, a própria rubrica entre parênteses e a indicação cênica (sentado sob a faia… etc.) É intuitivo perceber a influência dos gêneros dramáticos na composição lírica de Virgílio.

Logicamente, também são muito frequentes os elementos da “cor local” árcade-bucólica, isto é, os rebanhos, as ovelhas, a flauta, a relva, as criaturas místicas dos bosques como faunos e náiades, etc. que orientam o ouvinte em relação ao locus amoenus, posteriormente assimilado pelos poetas árcades, como no grande exemplo de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, assim como em universos musicais modernos, em especial na tradição do campo, como alguns nichos da música sertaneja.

Nesse sentido, apenas por criar uma tradição, a obra de Virgílio já poderia ser considerada grandiosa, mas não apenas possui esse mérito como também tem sempre relembrado em sua crítica o seu perfeccionismo em relação à métrica. As Bucólicas configuram, portanto, material rico para análise de elementos semânticos e formais, além de fornecerem fragmentos de uma cultura de que nos restam poucos registros, orientando o leitor em relação à compreensão da sociedade clássica, sua ética e seus costumes.

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