Resenha – “Estrela distante”, de Roberto Bolaño

Panorama geral

De um jeito bastante fragmentado, em Estrela distante nós acompanhamos uma história com ares policiais que apresenta a vida de alguns poetas chilenos dos períodos de Salvador Allende e da ditadura de Pinochet, no Chile. O foco principal dessa trama é a trajetória de Alberto Ruiz-Tagle, jovem escritor e frequentador assíduo de algumas oficinas de poesia da cidade de Concepcion, e que sempre pareceu misterioso, frio e distante aos olhos do narrador e de seus outros colegas de oficina.

Entre desaparecimentos de professores, amigos e conhecidos, o narrador de Estrela distante segue as pegadas e as manchas de sangue deixadas por Ruiz-Tagle ao longo de sua história, que se confunde com a do próprio Chile. Descobrimos, nesse caminho, que Ruiz-Tagle na verdade se chama Carlos Wieder, que é um poeta vanguardista e piloto da força aérea chilena, mas sobretudo (e por que não dizer?) um fascista.

Naqueles dias, enquanto os últimos botes salva-vidas da Unidade Popular se afundavam, fui preso. As circunstâncias de minha detenção são banais, se não grotescas, mas o fato de estar ali, e não na rua ou num café ou trancado no meu quarto sem querer sair da cama (e esta era a possibilidade maior), permitiu-me presenciar o primeiro ato poético de Carlos Wieder, embora na ocasião eu ainda não soubesse quem era Carlos Wieder nem qual tinha sido o destino das irmãs Garmendia.


Clique na imagem para comprar o livro.

Comentários soltos

De maneira geral, não sou um grande fã de narrativas policiais ou de detetives. Mas me interesso bastante pela história e pela memória da/na América Latina, o que, na minha opinião, é uma das cerejas do bolo preparado por Roberto Bolaño. Apesar de grande parte das personagens que compõem a trama serem ficcionais, o autor consegue reconstruir o contexto e simular a sensação de repressão, desamparo e fracasso vivida pelas pessoas resistentes ao governo de Pinochet. 

Além disso, a forma pós-moderna com que Bolaño construiu seu livro me cativou bastante durante a leitura: são estratégias narrativas complexas, com o uso frequente de histórias dentro da história principal, traço que estilhaça a estrutura, fazendo da memória do Chile um mosaico de horrores, que sempre nos deixa com a impressão de que está faltando alguma coisa.

O silêncio é como a lepra, afirmou Wieder, o silêncio é como o comunismo, o silêncio é como uma bela tela branca que precisa ser preenchida.

Por último, a obra me colocou para pensar bastante na relação do Brasil com os outros países não só da América Latina, mas mais especificamente da América do Sul. Isso porque as semelhanças entre Chile e Brasil vão muito além das políticas e da histórica conturbada, atravessada por ditaduras militares, estúpidas e truculentas: há uma similaridade no silêncio com que alguns temas são tratados. 

O mais importante é que Roberto Bolaño desenha (mais uma vez) um caminho possível para lidar com as memórias nacionais traumáticas, ponto no qual o Brasil tem fracassado perenemente.

Nota

7.6/10

Resenha – “Noites no Circo”, de Angela Carter

A contradição como fio-condutor

Apesar de ser uma escritora já consagrada no cenário literário de língua inglesa, Angela Carter não é tão conhecida no Brasil. Eu mesmo só tomei conhecimento de sua obra, porque minha companheira desenvolve atualmente uma pesquisa sobre o livro mais aclamado de Carter: A câmara sangrenta (Bloody Chamber, 1979), que saiu nos últimos anos em uma das edições da TAG – Experiências Literárias. Por esse motivo, é bem provável que você nunca tenha ouvido falar de Carter e muito menos de Noites no circo (Nights at the Circus), escrito por ela em 1984, um livro feminista de segunda onda e de estilo bastante fragmentado. Assim, com essa resenha, eu espero contribuir para diminuir essa falta que a autora faz nas prateleiras nacionais.

Ah, o circo! E que circo!!

Capa da primeira edição do livro.

Fazer uma síntese da narrativa é bem difícil, já que ela tem incontáveis deslocamentos, temporais, narrativos e espaciais. Mesmo assim, vou arriscar um resumo, pelo menos para dar um dimensão do que se trata.

Noites no circo conta a história de vida, as peregrinações e as inúmeras transformações de uma mulher-pássaro e trapezista chamada Sophie, de nome artístico Fevvers, que – acompanhada de ora irmã, ora mãe adotiva e ora cúmplice de crime, Lizzie, e de outros muitos personagens extravagantes – compõe o Circo do Coronel Kearney. Sendo a atração principal desse show exótico, Fevvers, a gigante com asas, conquista todos os jornais do último ano do século XIX, época em que a história se passa. E é justamente por conta dessa enorme midiatização e mitificação da imagem de Fevvers que o circo de Kearney desperta o interesse de um jovem jornalista estadunidense, de nome Jack Walser, disposto a atravessar o oceano, até a Inglaterra, só para fazer uma longa entrevista com a ídolo do circo, com o objetivo de responder a pergunta: você é de verdade ou você é uma farsa?

Essa tensão entre o real e o imaginário, jamais respondida, é o fio condutor da narrativa. É ela que leva Walser ao camarim de Fevvers para a entrevista e a se apaixonar pela atriz entrevistada. Leva Walser também a entrar no circo atrás de Fevvers, e a entreter uma plateia de São Petersburgo como palhaço. Leva ele, por fim, a se perder no deserto glacial da Sibéria, onde é capturado por um grupo de nativos e transformado em uma espécie de xamã. Mas a tensão também serve como síntese para as contradições de Sophie/Fevvers, que, vivendo uma vida paralela à de Walser, mas também totalmente de cabeça para baixo, é prostituta e é virgem, é mulher e é pássaro, é interesseira e é apaixonada, é violenta e é meiga, é gigante e é pequena, é loira e é morena, que voa e que não voa.

Bem, poderia dizer que constituíamos um microcosmo da humanidade, que éramos um conjunto simbólico, cada um significando uma proposição diferente no grande silogismo da vida. Os acasos da viagem nos reduziram a um pequeno grupo de peregrinos abandonados na imensidão deserta sobre os quais a imensidão deserta atuou como uma lente de aumento moral, exagerando os defeitos de uns e ressaltando as melhores características daqueles que pensávamos serem desprovidos delas. Aqueles dentre nós que aprenderam as lições da experiência já terminaram a sua viagem. Os que nunca aprenderão estão voltando aos trambolhões para a civilização o mais depressa que podem e tão bem-aventuradamente ignorantes quanto eram. Mas, quanto a você, Sophie, parece ter adotado o lema: viajar com esperança é melhor do que chegar.

Viajar com esperança de chegar

É… é a esperança o que nos leva adiante na leitura. Porque, sinceramente, é preciso ser persistente, ter fôlego, pois a sensação da obra vai de divertida, a vertiginosa, a confusa. O estilo pós-moderno da autora não segue uma estrutura tradicional e linear. Não que seja difícil, mas o caráter fragmentário faz do livro uma grande roda gigante: nos vemos diante de eventos incríveis, com narradores singulares, que nos fazem não querer largar o livro nem por um minuto – mas esses episódios se intercalam com longas divagações filosóficas, com metáforas e simbolismos malucos e de difícil entendimento, e com partes arrastadas, que parecem nunca mais acabar.

Capa da edição brasileira

De todo modo, o livro tem uma pretensão muito adequada à época em que foi escrito e à ideologia social e política da autora. No interior de uma narrativa impressionante e de uma linguagem cheia de altos e baixos, Angela Carter dilui várias ideias das correntes feministas da época, problematizando questões como o male gaze (olhar masculino objetificante), o estereótipo de gênero e a desigualdade entre mulheres e homens quanto a direitos trabalhistas. É claro que, em leituras mais contemporâneas, muitos dos pontos levantados por Carter vão parecer um pouco fora do lugar, mas ainda assim Noites no circo continua sendo uma boa literatura feminista.

Agora, o fato de ser um livro feminista não deve ser entendido como um impeditivo para você, caro leitor, não se sentir convidado à leitura. Muito pelo contrário, estar tão intensamente atravessado pelo discurso feminista de segunda onda só faz com que seja ainda mais interessante a história de Fevvers, por mais que Carter a desloque no tempo, situando os acontecimentos no século dezenove.

Mas tenho uma péssima notícia para as leitoras e leitores que se interessaram: infelizmente, a edição brasileira de Noites no circo, publicada em 1991, pela editora Rocco, está fora de catálogo há um tempo e nunca ganhou reimpressão ou reedição. O jeito é procurar a obra em alguma biblioteca ou correr na Estante Virtual, para ver se salva algum exemplar perdido em algum sebo.

Antes de encerrar a resenha, queria fazer um convite. Se você ficou com curiosidade sobre a escrita de Angela Carter, nós temos uma publicação aqui no blog que pode te ajudar. Trata-se de um pequeno conto da autora, inspirado pela história da Branca de Neve, que está entre as narrativas de A câmara sangrenta. Ainda que seja bem diferente de Noites no circo, esse conto consegue dar uma dimensão da qualidade literária da escritora inglesa.

Resenha – “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk

Entre a literatura e o manifesto

Desde o momento em que li o título, vi a capa e li a sinopse de O som do rugido da onça (2021), livro de Micheliny Verunschk, tive vontade de lê-lo. Demorou, mas aconteceu, e agora trago essa pequena resenha, para a apreciação (ou não) de vocês.

Iatucasaua

Particularmente, acho difícil resumir a narrativa do livro de Micheliny – por ser fragmentada e costurada com uma linguagem única. Em síntese, eu diria que O som do rugido da onça faz uma reescritura da odisseia vivida pela personagem Iñe-e: uma jovem do grupo indígena Miranha, sequestrada – junto de outras crianças – por dois exploradores alemães que vieram ao Brasil, no século XIX. Tirada da família, de seu povo, terra e do mundo que conhecia, Iñe-e tem por companhia os espíritos e divindades de sua tradição, além dos pensamentos e impressões de um lugar cada vez mais estranho. Tem, também, como companheiro, o menino Juri, outra criança sequestrada, que, apesar de dividir o mesmo destino desgraçado, não fala a língua dela.

Mas não se trata só disso a história. Micheliny também amarra o passado ao presente, ao colocar a personagem Josefa (um alterego da própria autora?) em trânsito paralelo com as duas crianças, confrontando este nosso Brasil contemporâneo, que se mascara de “novo”, mas que continua, depois de tantos e tantos anos, massacrando as lutas e silenciando as reinvindicações indígenas sobre terra, sobre moradia, sobre dignidade, sobre seus direitos mais básicos.

“Ruindade não acaba” – diz Tipai uu, a Onça Grande, para Iñe-e.

Nheen eé, Nheen ayua

Como eu disse no começo, particularmente, eu não gostei do livro, porém acho que ele traz coisas de muita qualidade que precisam ser mencionadas. Para começar, acho que o adjetivo que melhor descreve a narrativa é: necessária, não só por tematizar e colocar como protagonistas personagens indígenas e feridas históricas ainda abertas, como também por lançar um novo olhar sobre estes machucados, lendo uma história do Brasil à contrapelo. Ao lado disso, está uma linguagem brilhante, que deixa evidente a inspiração no lirismo derramado que atravessa algumas das obras de Guimarães Rosa. O uso desta língua específica para narrar, que mescla prosa, poesia e vocabulário nheengatu, deixa a leitura dinâmica, rica e, por mais estranho que pareça, mais fácil: uma vez que a gente pega o ritmo, o livro flui muito bem.

Só que, para mim, O som do rugido da onça não teve apenas flores. Achei a narrativa incompatível com o nível da escrita, já que é excessivamente didática, a ponto de se transformar quase em um manifesto que afoga parte da força literária do livro. Trechos como: “como pode ser bom alguém que compra outras pessoas? Que as leva para longe dos seus parentes?” ou “por que Iñe-e, que era livre, agora tinha donos?” aparecem com certa frequência e seriam totalmente dispensáveis, uma vez que fica claro o ponto de vista que o narrador (e a autora e nós, “leitores esperados”) defende. Fora que, com exceção de Iñe-e, os outros personagens que aparecem são pouquíssimo significantes e quase desaparecem da memória ao fim do texto, talvez por sua falta de complexidade na tomada de decisões e na forma como são percebidos pelo olhar de Iñe-e.

Mas nenhum desses pontos desqualifica ou dispensa a leitura do romance de Micheliny. Volto a dizer: leia Osom do rugido da onça e tire suas impressões; é extremamente necessário, como todas as releituras que propõem um questionamento da chamada “história oficial”, feita por mãos brancas, colonizadoras e patriarcalistas.

Resenha – “A Trança”, de Laetitia Colombani

Histórias que se amarram no “ser mulher”

A trança é uma história – quase uma poesia – lançada em 2021 por Laetitia Colombani, que já vendeu mais de 1,4 milhões de exemplares. Conta a história de três mulheres, de três culturas diferentes, que passam por três problemas diferentes, de acordo com o “ser, aqui, agora” de cada uma. Cada uma dessas mulheres representa uma mecha, cuidadosamente apresentada, tratada e trançada durante a narrativa, que, no fim, vão se juntar em um ponto de amarração, união. Essa trança, formada por meio da história das protagonistas, envolve cada uma de nós, leitoras.

“Estranho bailado esse, dos meus dedos. Escreve uma história de tranças e entrelaços; Essa história é a minha história. Embora não me pertença.”

A narrativa impecável trançada por Laetitia é composta por um pouco da vida de Smita, de Giulia e de Sarah. Smita é uma mulher da Aldeia de Badlapur, Uttar Pradesh, na Índia. Uma dalit, uma intocável, uma espécie julgada impura pelos demais, que acorda todos os dias, desde criança, para exercer o único trabalho da qual é considerada digna pelas outras classes: limpar a merda dos outros (no sentido mais literal e cruel do termo). Mas Smita também é mãe, e para sua filha de seis anos, Lalita, não quer o mesmo destino. Assim, ela se arrisca para que a menina tenha o básico, algo que a própria Smita nunca teve: a oportunidade de frequentar a escola.

Em paralelo a essa história, temos Giulia, uma jovem residente de Palermo, Sicília, cujo oficio e tradição familiar é tratar e vender cabelos italianos. Seu pai é sua inspiração e os negócios da família, seu legado. Mas a vida não é simples, e Giulia vê seu pai, e seu ateliê, entre a vida e a morte. Assim, entre a tradição e as inovações, a menina precisa tomar uma decisão que irá mudar o rumo de sua vida.

Por fim, temos Sarah, uma advogada de sucesso de Montreal, no Canadá. Sarah sempre se dedicou ao trabalho, e quer ser uma das poucas mulheres que atingem o ápice profissional. Mas sendo mulher, Sarah enfrenta desafios que em geral os homens não precisam encarar, porque a gravidez e os filhos não costumam ser um obstáculo para eles. E, quando enfim se encontra tão perto do tão almejado cargo, Sarah é diagnosticada com câncer de mama, deixando de ser Sarah, para virar “o câncer”.

“Ela amaldiçoa essa sociedade que esmaga seus fracos, suas mulheres, suas crianças, todos aqueles que devia proteger.

À primeira vista, as histórias dessas mulheres têm pouco em comum. Todas elas são fortes, mas estão inseridas em uma sociedade machista, injusta e hipócrita. Todas elas travam suas batalhas, internas e externas, dia após dia, a fim de conseguir o que é seu por direito: uma vida digna, simples. A delicadeza com que as histórias são trançadas, e a forma como nós, mulheres, nos encaixamos entre esses fios, é o que faz dessa leitura, dessas poucas mais de 100 páginas, algo tão belo, tão válido e tão profundo.

“Que estranho, repara, a vida às vezes junta os momentos mais sombrios com os mais luminosos. Dá e tira ao mesmo tempo”.

Principais Impressões

Decidi ler A trança por pura curiosidade: – É uma leitura curta, aparentemente simples, por que não? – Mas o que eu não esperava era a tamanha identificação que senti com as três histórias, tão distintas entre si, e tão distintas da minha. É interessante perceber como a autora, capítulo após capítulo, de forma lenta e cuidadosa, costura as histórias, até que, no fim, elas se encontrem e se amarrem de forma sutil. O que mais me encantou nessa leitura foi a forma como Laetitia Colombani mostra que, em qualquer lugar do mundo, mulheres encontram dificuldades que são comuns a todas as outras mulheres. O desafio de levantar sua voz diante de uma sociedade patriarcal, a luta para alcançar o sucesso profissional, a luta por direitos que deveriam ser básicos… Enfim, a luta diária que enfrentamos por sermos mulheres: para sobreviver, crescer, ser. E, mesmo que as personagens não saibam da existência umas das outras, suas histórias ainda se encontram, sem que elas percebam, assim como, de alguma forma, se encontram com a minha e com tantas outras por aí. Uma frase que, para mim, define a leitura é: Não estamos sozinhas, somos únicas, e somos muitas, e somos juntas. E se tem um ponto que poderia ser considerado negativo (mas não é), é o gosto que senti no final, o de querer saber ainda mais sobre essas mulheres tão fortes, tão diferentes e que carregam um pouco de mim.

“Sou apenas um elo, um ponto de união irrisório, que segue firme na interseção de suas vidas, um fio tênue a uní-las, fino como fio de cabelo, invisível ao mundo e aos olhos…”

Resenha – “A vegetariana”, de Han Kang

Para colher dos outros frutos

Desde 2018, quando decidi morar com minha companheira e noiva, estou em contato (imerso, eu diria) com o discurso vegetariano/vegano e também com os hábitos que o compõem. Talvez tenha sido daí que surgiu o interesse em ler o livro da sul-coreana Han Kang: A vegetariana, publicado pela editora Todavia, em 2020, que, desde o título, parece tocar na questão dos direitos dos animais.

Mas, ao contrário do que sugere esse título, não se trata de uma narrativa que tem como centro do debate a animalidade e o vegetarianismo, e ao invés de colher pêssegos no pessegueiro de Han Kang, colhi algumas maçãs. Esse é um ponto que me causou, ao mesmo tempo, certa decepção e certa alegria durante a leitura, e espero que, nessa resenha, eu consiga esclarecer o porquê.

Trama

A vegetariana conta a história, mas principalmente o enigma, das consecutivas decisões da personagem Yeonghye: uma artista gráfica que – aos olhos do marido Cheong e de seus familiares – é completamente normal, mediana e, de certa maneira, cumpridora de suas obrigações.

Tudo começa com a narração de Cheong, revelando que a esposa, depois de ter um sonho, decide se tornar vegetariana/vegana, repudiando qualquer coisa que esteja relacionada à exploração animal, da carne aos sapatos de couro. A decisão dela se transforma em um empecilho para a dinâmica familiar que tanto agradava o marido, e seus desdobramentos são um crescente que move a narrativa e se desdobra em novos capítulos.

No livro, teremos três deslocamentos de narrador, passando primeiro pelo marido, depois pelo cunhado de Yeonghye e finalmente por sua irmã mais velha. Cada um dos três precisa lidar com o mistério da personagem central, que, assim como o Bartleby, de Herman Melville, entra em um processo contínuo de recusas absurdas: não comer, não se lavar, não se vestir, não falar (e não viver, talvez?).

Pêssegos e maçãs

Han Kang não fez um romance amador ou de primeira viagem: A vegetariana é, na verdade, afiadíssimo, tanto na construção de paralelos cênicos internos, bem como na brincadeira com as vozes narrativas, que, ainda que próximas, nunca alcançam ou entendem as intenções da personagem central da trama. Além disso, a áspera crítica a uma política ditatorial contra o corpo e contra o indivíduo, procurando encontrar uma outra relação consigo e com o outro, não perde de vista a força literária e evita, na maior parte do tempo, o didatismo e a auto explicação tão comuns em romances contemporâneos.

Agora, um ponto que também acho importante comentar é a maneira como se articulam no texto, intencionalmente ou não, o carnismo e o machismo (bem como outras formas de violência). Ainda que não apareça como ponto central, a barbaridade humana contra os animais aparece no livro como um sinédoque da relação que um “homem normal” – como se auto intitulam Cheong e o pai de Yeonghye – estabelece com uma mulher, uma vegetariana. Mas também poderia ser com um estrangeiro, com um negro, um gay etc. O que quero dizer é Han Kang acaba demonstrando que sempre haverá, segundo nossa cultura excessivamente capitalista, um descompasso que resulta em violência contra o que é diferente, ainda que ela seja insistentemente mascarada.

Frutas podres

A primeira impressão que tive do livro foi extremamente negativa e me sinto até um pouco estranho já que, agora, mal consigo pensar em algo de que não gostei na trama e no estilo da autora. Acho que, fora minha decepção momentânea com o fato de o vegetarianismo não estar no centro do debate, apenas o terceiro capítulo (“Árvores em chamas”) me causou uma má impressão, já que, nele, frequentemente, as metáforas são explicadas e desmontadas pelo narrador e pelos olhos da irmã de Yeonghye.

Fora esse fruto estranho e um tanto azedo para meu paladar, não colhi nada que não fossem boas maçãs do pessegueiro plantado por Han Kang. Talvez fosse o caso de subir outra vez à escada e retomar a obra, à procura de outros frutos, mesmo daqueles que contêm as larvas, quase invisíveis, por baixo da casca.

semear

É sempre muito bom poder ler um livro que sai do nosso ciclo tradicional, da cultura ocidental/acidental, para enveredar rumo a essas literaturas diferentes e, diga-se de passagem, de muita qualidade. A vegetariana é, com toda certeza, uma das melhores obras que li neste ano de 2021, e me deixou motivado a procurar outros textos de Han Kang e de seus conterrâneos.

Aos que querem ler uma obra pequena, mas poderosa e impressionante, e aos que têm curiosidade pelo fato de se tratar de um texto para lá de estrangeiro: cedeis à vossa curiosidade. A leitura, se não indispensável em tempos como os nossos, é extremamente frutífera. Acredito que não haverá arrependimentos.

Crônica – “O Túmulo de Eros”, de Paulo Bittencourt

Trilhar um caminho que consiga fazer encontrarem-se pensamento e escrita. Essa é a função a que me dedico quando me ponho, vez ou outra, frente a essa atividade. Sair de um emaranhado fragmentado e incompreensível de ideias e sensações amalgamadas para a organização funcional da comunicação. Não, não se pode restringir o estado bruto do sentimento à sua função comunicativa; isso seria diminuí-lo e poderia até retirar-lhe aquilo que guarda de mais elegante – seu caráter poético.

A tarefa da qual hoje me encarrego é talvez autorreflexiva, pois que se debruça justamente sobre essa transição. E sempre me atento a buscar um ponto palpável para que, daí, seja possível dar o primeiro passo rumo àquele espectro último, ainda invisível para a consciência. Todos nós, com maior ou menor regularidade, cedemos ao impulso da racionalização. Digo, é muito comum que tentemos colocar todo o pensamento em ordem, por vezes até criando diálogos imaginários dos quais sempre saímos “vitoriosos”, nessa fantasiosa missão retórica de persuasão. É o famoso argumento debaixo do chuveiro, que na prática nunca é repetido à perfeição.

A perfeição é atributo das coisas em seu estado imaginativo. Prender-se dessa maneira à expectativa idealizada pode representar para o caminho um obstáculo intransponível – a prisão em potencial que o pensamento representa para a ação. Se o desejo é a entrega a esse estado musical, primevo, de desorganização, em que sentimos à flor da pele a espontaneidade do prazer, a embriaguez essencial do corpo; a racionalização, o domínio da potência, minariam essa a força ativa, restringindo-a a seu estado de potência, sempre limitada à consciência. Eros jaz nas mais profundas esferas do pensamento; as correntes mais rígidas o impedem de manifestar sua atração – o próprio desejo. Um grande fantasma – essa dúvida permanente – acaba por se tornar o conforto tranquilizador contra o impulso erótico. Fonte de equilíbrio e sobriedade.

Creio fielmente que há em todos nós um pouco de Orfeu – devoção à embriaguez e à desordem, à música e à poesia. Mas o fim leva-nos a um estado tal de melancolia que o próprio selo dionisíaco se torna refém do Sol, e o destino não pode ser senão trágico, como o fora na mitologia. A maldição da eterna dúvida, a condição essencial de sempre estar à frente daquilo a que se quer dedicar, a quem se quer amar, para, ao final, virar-se e experimentar o desaparecimento do desejo. Seria possível atribuir a ele próprio o erro maldito, ou seria já desde o início plano punitivo dos deuses contra sua irreverência?

Já não consigo distinguir – e já não sei até que ponto vale a pena fazê-lo. A música não se apresenta mais senão sob o silêncio; as musas já não oferecem a sua graça para a poesia. Sinto-me completamente dominado pelo exercício da razão, de colocar todas as peças do quebra-cabeças em seus devidos lugares, mentalmente, e de me contentar com esse estado. De gozar desse estado. Essa parte essencial de nós em que se encontra a dança – eu a mereço, sou-lhe digno? Fato é que esse peso se encontra posto sobre mim, mas tenho apenas duas mãos…


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Conto – “O segredo do chá”, de G. R. Martins

el visible universo es una ilusión o (más precisamente) un sofisma. los espejos y la paternidad son abominables

uno de esos gnósticos (paráfrase)

Conta a lenda que, para lá do oriente, alguns séculos antes da vinda de Cristo, um grande império, com sede construída à beira de um longo rio, desapareceu.

A história começa com o fato de que os habitantes da região eram apaixonados, hábeis com a espada e também com as palavras, por isso inundando as terras com guerras duras e duradouras. Mas o rei Qin, além dessas outras qualidades, era um regente poderoso e inteligente, que desejava muito unificar as províncias todas em um único e próspero império. Frente ao discurso e maestria militar, a maioria esmagadora não demorava a concordar, porém, na margem oposta do rio, existia o pequeno reino de um rei intragável: o rei Jie, o gorgulho da lavoura.

Apesar das tantas investidas políticas e militares contra ele, desde que começou as campanhas, o rei Qin e seus subordinados só receberam resultados negativos. Esse fato, somado a um mau agouro vindo num sonho, contribuiu para a decisão de interromper o envio de tropas e diplomatas, bem no começo do século III a.C.

Jie, apesar da pequenês frente ao império que Qin construía tijolo por tijolo, sempre declarava vitória, humilhando e diminuindo o adversário através de cartas. Além disso, naufragava muitas naus que flumenavam rio abaixo e que estavam ao alcance de suas flechas.

Ainda que mantivesse distantes seus soldados do lado de lá do rio, Qin monitorava Jie com os mais furtivos serviçais, pensando em como podia esmagar aquela pulga, antes que ela o picasse. Mas, afinal, o que era aquilo, se não uma simples coceira?

O tempo passava e o império de Qin inchava como uma abóbora; de norte a sul, falavam todos a mesma língua. Só o reino de Jie permanecia à parte, mesmo sendo incluído nos mapas, feito um siso prestes a sair. Batalhas intensas aconteciam nas fronteiras com o ocidente, o que fez Qin retirar seus valorosos serviçais das terras do rei Jie. Também, parou de ler as cartas ultrajantes que vinham do reino vizinho. Por isso, não ficou sabendo de imediato que o adversário tinha adquirido uma doença desconhecida: o soluço.

Foi só em um momento de alívio nas batalhas ocidentais, anos depois, que Qin descobriu o mal que tomava conta do corpo de Jie. Contudo, as incessantes pugnas que vinha enfrentando reduziram em muito o número de seus soldados e qualquer tentativa de dominação era arriscada: apertar o inseto com dedos machucados.

Com isso em mente, optou por ganhá-lo na palavra: se ofereceu a descobrir uma cura para o mal do rei vaidoso.

Após inúmeros testes, feitos com pessoas soluçantes e saudáveis, Qin descobriu uma pequena muda, que bastava lançar suas folhas em água quente. Bebido, livrava o corpo do mais profundo dos soluços, além de melhorar os sentidos e dar a sensação de vigor e poder para o ingestor.

Comunicou o outro regente sobre sua descoberta, ansioso por uma negociação, mas a resposta de Jie foi uma injúria ríspida e prepotente. Qin chegou até mesmo a experimentar, ele mesmo, o chá milagroso, pensando isso ajudar no julgamento do rei Jie, mas esse apenas começou a mandar que seus subordinados destruíssem violentamente qualquer embarcação que carregasse a bandeira do império.

Isso durou meses, até que, após uma noite de meditação, o rei Qin decidiu enviar todas as folhas que cultivou como, pelo menos, oferta de paz, para que cessasse o ato de destruir as naus.

Qin, em uma carta extensa, hoje exposta em qualquer museu por lá, jurou pela própria honra que aquele líquido ajudaria com a doença de Jie e recomendou que o pequeno rei tomasse comedidamente o chá e que guardasse bem aquelas folhas, tão finitas quanto qualquer outra.

Jie assistiu satisfeito, enquanto seu cavalo de madeira entrava pelo portão da Troia que construiu para si.
As folhas logo curaram sua doença. Além disso, tamanha era a energia e a astúcia adquiridos com poucos goles, o rei enrijeceu o regime de suas províncias e começou campanhas de expansão contra o império de Qin e contra os reinos para lá do oriente, isso por volta de 261 a.C.

O grande Qin, experiente nas artes da guerra, não se deixou abalar por ameaças e ataques: resistiu fortemente durante os combates que marcaram o século.

Mas não foi suficiente.

Foi destronado pelo rival alguns anos depois do começo das batalhas. Teve tempo de assistir ao rei Jie dominando e logo depois queimando por completo o seu império.

Não deixou de sorrir, quando perdeu a cabeça.

As ruínas e as árvores, depenadas, secas, compunham a paisagem estéril que se estendia infinitamente. Ao redor do Nilo, Jie fez o deserto nascer da guerra e da vaidade; as plantas só renasceriam com o passar dos anos e com inteligência no cultivo.

Só que nada disso interessava a Jie, que viveu sua glória imperial sem deixar herdeiros para o império. Império que não durou mais de vinte anos, pois as línguas se misturavam, o povo crescia e se revoltava e o chá, a cura para sua doença, era uma doce lembrança e ilusão.

Detalhes

O conto “O segredo do chá” integra a coletânea Primeiros e outros contos, editada e publicada por Gabriel Reis Martins, em 2019, e que ganhou uma versão digital para o kindle, em 2020. Na obra, o autor faz uma seleção de quinze histórias curtas autorais, transitando entre um estilo realista, de linguagem objetiva, e outro em que as brincadeiras com a linguagem e com a narrativa são mais frequentes.

Sair da versão mobile