Conto – “Cantiga dos esponsais”, de Machado de Assis

Apresentação

Machado de Assis é instigante, genial, talvez o maior escritor que o Brasil já produziu e ultimamente um autor polêmico – pegando emprestado aqui esse epíteto curioso, que vem ganhando força nos últimos tempos, principalmente por conta das questões decolonias (sendo Machado um autor negro) e por conta também do debate mais recente envolvendo o Bruxo do Cosme Velho, no qual o influencer digital, Felipe Neto, decretou uma espécie de “morte a Machado” e a outros clássicos brasileiros.

No post de hoje, nós vamos driblar essa discussão para trazer um dos vários contos produzidos pelo célebre autor. Já é sabido pela crítica e por seus leitores mais frequentes que um dos temas caros a Machado é a relação existente entre a cultura erudita e a cultura popular no Brasil, debate que aparece em sua obra sob máscaras diversas, podendo estar nas cenas dos bailes, da corte do Rio de Janeiro, ou mesmo nos conflitos internos, de personagens que parodiam a realidade fria da Europa em cidades com um calor de mais de trinta graus.

Entre as máscaras construídas para abordar essa temática, a música aparece com bastante frequência, sendo utilizada, com todo o brilhantismo machadiano, como demonstração da oscilação existente entre o eruditismo e o populário na cultura brasileira. O conto Cantiga dos esponsais, ao lado de O machete e Um homem célebre, tem justamente esse tema como motivo. Além disso, segundo o que o professor e pesquisador José Miguel Wisnik nos diz – em seu famoso ensaio, Machado maxixe –, esse conto demonstra com precisão as tensões que atravessam a produção cultural de nosso país. Por isso mesmo, sem mais delongas, leiamos essa narrativa exemplar, de Machado de Assis.

Cantiga dos esponsais (1884)

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. “Quem rege a missa é mestre Romão” — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: “Entra em cena o ator João Caetano”; — ou então: “O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias.” Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

— Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.

— Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele…

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: — a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

— Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.

— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal…

— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica…

O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

— Para quê? disse o mestre. Isto passa.

O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão, — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

— Está acabado, pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras: — Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas…

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão…

O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

— Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar…

Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá….

— Lá, lá, lá…

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.

— Lá, dó… lá, mi… lá, si, dó, ré… ré… ré…

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

— Lá… lá… lá…

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.

Conto – “Um homem célebre”, de Machado de Assis

– Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: – Desculpe meu modo, mas… é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875… Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

– Diga, minha senhora.
– É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

– Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

– Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

– A bengala.
– Mas parece que hoje chove.
– Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
– Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

– Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

– Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, – ou por alusão a algum sucesso do dia, – ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

– Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.
– Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

– E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil…

– As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

– Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
– Vai casar com uma viúva.
– Velha?
– Vinte e sete anos.
– Bonita?
– Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, – mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

– Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

– Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas… Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação… Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, – uma clara e fresca manhã de maio de 1876, – eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

– Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

– Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
– Nada.
– Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

– Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

– Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
– Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

– Adeus.
– Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

Referência

ASSIS, Machado de. Um homem célebre. In: Várias Histórias. W. M. Jackson Inc Editores, 1946.

* Este célebre conto de um de nossos maiores autores é utilizado frequentemente por pesquisadores que associam a história da literatura com a história da canção brasileira. O texto que talvez mais se detenha sobre esse relação é Machado Maxixe, de José Miguel Wisnik, que estuda o “caso Pestana”.

Brás Cubas, historiador

Publicado em 1881, Memórias Póstumas de Brás Cubas é considerado o livro que inaugura o Realismo no Brasil. A obra se constitui a partir dos relatos do narrador, Brás Cubas, que se define não como um autor defunto, mas como um defunto autor – ou seja, alguém que escreve depois de morto. Portanto, acerca do Realismo machadiano, pode-se dizer:

“A singularidade de Machado de Assis, por conseguinte, justifica-se muito menos por sua mimesis do que por sua redução em linguagem de aspectos sociais que denunciam quem são os brasileiros e o que eles têm de diferente em relação aos europeus.” (COUTO, 2016)

Resumidamente, o que o defunto autor nos conta são as principais memórias desde a infância até a fase adulta, em meio às suas desventuras amorosas e sociais. O livro, que não segue um enredo linear, se classifica como um romance psicológico, que apresenta elementos do modernismo e, absolutamente, seu próprio “realismo mágico” (MARCÍLIO).

Entretanto, o fato de que a narrativa não se organiza como um relato óbvio e denotativo da realidade (mimesis) não significa que a obra não possua valor enquanto relato histórico oitocentista. Pelo contrário, o livro expõe, em incontáveis ocasiões, a maneira como a sociedade brasileira e europeia se relacionavam, bem como as próprias relações entre os brasileiros do século XIX, as teorias pseudocientíficas que tentavam justificar os abusos e injustiças da época e o pensamento corrente da elite colonial:

“Em síntese, haveria, em Memórias póstumas de Brás Cubas, uma estrutura narrativa correspondente a uma estrutura social, isto é, uma coincidência entre narração autoritária (perceptível na diagramação dos capítulos, na condução das reminiscências etc.) e autoritarismo de classe.” (COUTO, 2016)

Segundo Marcílio, a chegada de Brás Cubas à idade adulta poderia simbolizar uma maturidade social brasileira, pela simultaneidade – supostamente intencional – entre o período da sua juventude e a Independência do Brasil, em 1822. Haveria, de certa forma, um paralelismo entre a história do país e os relatos de Brás Cubas, representante da elite aristocrata e do pensamento escravista:

“Brás Cubas é o protótipo do proprietário de terras e escravos aos moldes do século XIX; é, em outras palavras, o típico sujeito da elite, infiltrado no estamento burocrático e agindo como quem de sua estirpe agiria: imitando tudo o que se fazia na Europa, só que de maneira abrasileirada.” (COUTO, 2016)

Por essa razão, o testemunho de Brás Cubas pode ser examinado através da perspectiva do relato histórico, com valor não apenas literário e artístico, enquanto obra de ficção, mas também como exemplo de personagem-tipo que caracteriza o aristocrata oitocentista de uma realidade não tão distante:

“As memórias de Brás tornam-se, por conseguinte, um testemunho histórico importante sobre as transformações nas ideologias de sustentação do poder no período de crise da sociedade escravista.” (CHALHOUB, 2003)

É importante destacar, em meio a tanto, a relevância da época em que o autor-defunto escreve. Na década de 1870 houve numerosas mudanças que moldariam as relações econômicas e sociais então presentes. A ebulição política fazia dessa época uma caldeira prestes a transbordar, em conflitos cujos interesses eram de naturezas completamente opostas. De um lado, o interesse dos senhores de escravos em manter suas “posses”; de outro, a pressão social e econômica vinda da Europa em abolir a escravidão e mover o mercado consumidor em um rumo liberal.

“Entre a morte do “defunto autor”, em 1869, e o aparecimento do texto, em 1880, houve os acontecimentos políticos e sociais decisivos da década de 1870, os quais conformam, de fato, o conteúdo e o tom do relato de Brás. (…). Havia vários temas palpitantes nos anos 1870 — emancipação dos escravos, mudanças em políticas públicas, emergência de novas idéias políticas e filosóficas, e assim por diante.” (CHALHOUB, 2003)

Nesse sentido, os relatos post mortem de Brás Cubas não são fortuitos. Eles se encontram imersos em uma ideologia de dominação senhorial de cunho conservador, isto é, estão inseridos em um momento histórico do qual ele já não mais participa enquanto vivente, mas como um observador parcial:

“Afinal, Brás Cubas é defunto vivíssimo. Apesar de se descrever como um ‘punhado de pó’ espalhado ‘na eternidade do nada’, ele continua a ter a experiência da história” (CHALHOUB, 2003)

Esse ponto é de especial importância quando consideramos o leitor da época, acostumado aos romances românticos que possuíam um caráter e um objetivo completamente diferentes dos romances realistas – sem, aqui, entrar em méritos de valor. Por esse contexto, é intuitivo compreender a facilidade com que o público acatou (vez e outra vez, repetidamente) o ponto de vista do narrador; assim foi feito com Brás Cubas, bem como com Bentinho e outros mais.

“O leitor brasileiro facilmente adere ao ponto de vista dos narradores machadianos, dos ioiôs elegantes, acabando por ver com naturalidade a relação entre proprietários e agregados.” (COUTO, 2016)

Como se reconhece, Machado de Assis só pôde ser compreendido quando o leitor conseguiu se livrar dessa lógica, dessa ingênua e cega confiança no narrador. Obviamente, o que Machado escreveu em Memórias Póstumas de Brás Cubas não poderia ser jamais tido como uma apologia ao sistema escravista – essa visão demonstraria apenas uma leitura equívoca da obra machadiana, que é fortemente marcada pela ironia. Afinal, no século XIX, quando se passa a história, mas também quando Machado, homem negro, escreve, o próprio sucesso do autor se configurava como uma brilhante ironia:

“A própria condição de Machado como artista consagrado era maculada aos olhos da elite brasileira por ele ser um mulato de origem humilde. A ascensão econômica ou em termos culturais não significava adaptação completa à estrutura hierárquica do Império, mas de uma condição paradoxal. (…). Machado de Assis, um mulato bem sucedido, constituía um paradoxo vivo na sociedade brasileira.” (MISKOLCI, 2006)

Em pleno século XIX, prestes à abolição da escravidão – coisa que, oficialmente, ocorreu em 1888, com a assinatura da Lei Áurea, apenas sete anos após a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas – havia ainda uma visão deturpada que confundia Sociologia e Biologia, gerando entendimentos distorcidos do Darwinismo, que foram, da mesma forma, usados para justificar a escravidão e os massacres nazistas. Por isso, o sucesso social, embora incômodo para as oligarquias, não era considerado uma superação das origens de uma pessoa “baixa”. A hierarquia se justificava em uma suposta superioridade de uns sobre outros a partir, simplesmente, da sua ascendência:

“Percebe-se que a sociologia nascente se confundia com a Biologia em uma forma de compreensão da sociedade, que resultava tão liberal quanto autoritária. (…). Machado escreveu sobre a sociedade brasileira do Segundo Reinado, a qual era marcada pela hierarquia. A origem de um indivíduo era essencial para seu prestígio.” (MISKOLCI, 2006)

Evidentemente, Machado percebia as distorções feitas para acobertar as injustiças, o que denunciou em tom irônico, por exemplo, na teoria do Humanitismo – a teoria de que toda ação humana é válida, porque tem em sua finalidade a sobrevivência da espécie. Em Memórias Póstumas, nem mesmo Brás Cubas se convence por inteiro dessa teoria, que mais uma vez brinca com a ideia do Darwinismo social, escancarando a podridão com que os homens se apropriam da ciência para fins corruptos:

“A dissidência de Machado com relação ao liberalismo autoritário de traços darwinista-sociais indica que sua visão do papel do intelectual na sociedade era a daquele que se mantém fiel aos vencidos na luta pela existência.” (MISKOLCI, 2006)

Por essa razão, Miskolci descreve Machado de Assis como um outsider (literalmente: um estranho, forasteiro, intruso – em tradução livre). Negro, logo, para a época, inferior, e ao mesmo tempo um célebre autor, reconhecido, que ironiza a sociedade aristocrática e debocha das suas pretensões.

“Ainda que, na ficção, Machado brinque com a parcialidade de visão e, sobretudo, com o ideal de objetividade dos escritores de seus dias, não há como ignorar sua valorização da perspectiva do outsider, daquele que já não participa do jogo social nem crê mais em suas regras.” (MISKOLCI, 2006)

 

Essa desilusão com que escreve, bem como seu sarcasmo cáustico, renderam ao autor o rótulo simplista e resumidor de cético, que, embora não deixe de ser parcialmente adequado, não explica e não compreende Machado por completo – coisa que não poderia fazer alcunha alguma. Da sua posição – outsider social, autor reconhecido e paradoxo vivo – a ironia é uma excelente resposta, e o ceticismo uma perspectiva compreensível:

“De certo modo, supera-se o ceticismo quando se aceita, embora com amargura ou contido protesto, o “resto” que nos lega a vida. Talvez resida aí, bem distinto do humour inglês, a ironia machadiana, na qual talvez se oculte a capacidade brasileira de dar-se um jeito, quand-même, aos tropeços da existência.” (REALE, 1982)

A bem da verdade, para o público a quem Machado escrevia, a elite oitocentista, o raciocínio que se dava era tão-só o que se passava com o defunto que escreveu suas Memórias:

“(…) em 1880, seria difícil que Brás adotasse defesa ideológica da instituição da escravidão, mas haveria vontade de sobra, nele e em seus pares, para defender a propriedade escrava existente contra as incursões dos abolicionistas.” (CHALHOUB, 2003)

Mesmo com essa percepção, Machado de Assis foi capaz de manter uma visão sarcástica e amarga, mas que não se afundou em tragédia. Ainda que carregue um inconformismo com a inexorabilidade do destino, para o autor, a vida ainda vale a pena ser vivida:

“O mundo de Machado ‘não conhece a tragédia’, ou melhor, que ‘nele, o trágico dissolve-se no absurdo e o ridículo tem gosto amargo’.” (HOLANDA apud REALE, 1982)

Com sua capacidade ímpar de expor e desmoralizar o conservadorismo social e a calhordagem da aristocracia brasileira, Machado ainda conseguiu fazer que permanecesse acesa a vontade pela vida, sem ilusões ou utopias, mas como um imenso parque de diversões:

“Vale a pena viver o drama da existência quando se sabe ser, ao mesmo tempo, coche, cavalo e cocheiro, protagonista e espectador da fria indiferença do destino; quando, em suma, a despeito de saber que a vida não conduz a nada de certo ou positivo, ela vale como drama ou espetáculo.” (REALE, 1982)

Conduzindo a uma conclusão, Memórias Póstumas de Brás Cubas se mostra uma obra de alto valor histórico, em que Machado foi capaz da artimanha de construir uma narrativa em que os valores e as vilezas da sociedade colonial fossem expostos e ridicularizados, sem jamais perder a sua ironia e a sua postura de outsider, provando ser não só um enorme mestre da literatura brasileira, mas um homem que se coloca ao lado da justiça, mesmo que para isso precisasse rejeitar as conveniências sociais de que poderia usufruir. Sua visão, cética, não demonstra uma derrota pela sociedade, mas um desapego pelas imposturas e recalques da vida mundana. Com o justo comentário de Miguel Reale, esse ensaio se conclui:

“De certa forma, Machado de Assis foi um ‘heideggeriano’ avant la lettre, sobretudo pelo desconsolado sentimento de que a cada ser humano toca viver uma vida que ele não escolheu, e cujo começo e fim lhe escapam.” (REALE, 1982)

Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 1ª Ed. São Paulo: MEDIAfashion, 2016.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
COUTO, Elvis. Roberto Schwarz e a crítica social na literatura de Machado de Assis. Revista Florestan Fernandes, UFSCar, Ano 3, N. 5, 2016, p. 151-163. Disponível em <http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/issue/view/8> (Acesso em 21/01/2017)
MARCÍLIO, Fernando. Memórias Póstumas de Brás Cubas <http://educacao.globo.com/literatura/assunto/resumos-de-livros/memorias-postumas-de-bras-cubas.html> (Acesso em 21/01/2017)
MISKOLCI, Richard. Machado de Assis, o outsider estabelecido. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 15, jan/jun 2006, p. 352-377. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/soc/n15/a13v8n15.pdf>. (Acesso em 21/01/2017)
REALE, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis: Antologia Filosófica de Machado de Assis. São Paulo: Pioneira, 1982.


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