De um jeito bastante fragmentado, em Estrela distante nós acompanhamos uma história com ares policiais que apresenta a vida de alguns poetas chilenos dos períodos de Salvador Allende e da ditadura de Pinochet, no Chile. O foco principal dessa trama é a trajetória de Alberto Ruiz-Tagle, jovem escritor e frequentador assíduo de algumas oficinas de poesia da cidade de Concepcion, e que sempre pareceu misterioso, frio e distante aos olhos do narrador e de seus outros colegas de oficina.
Entre desaparecimentos de professores, amigos e conhecidos, o narrador de Estrela distante segue as pegadas e as manchas de sangue deixadas por Ruiz-Tagle ao longo de sua história, que se confunde com a do próprio Chile. Descobrimos, nesse caminho, que Ruiz-Tagle na verdade se chama Carlos Wieder, que é um poeta vanguardista e piloto da força aérea chilena, mas sobretudo (e por que não dizer?) um fascista.
Naqueles dias, enquanto os últimos botes salva-vidas da Unidade Popular se afundavam, fui preso. As circunstâncias de minha detenção são banais, se não grotescas, mas o fato de estar ali, e não na rua ou num café ou trancado no meu quarto sem querer sair da cama (e esta era a possibilidade maior), permitiu-me presenciar o primeiro ato poético de Carlos Wieder, embora na ocasião eu ainda não soubesse quem era Carlos Wieder nem qual tinha sido o destino das irmãs Garmendia.
Comentários soltos
De maneira geral, não sou um grande fã de narrativas policiais ou de detetives. Mas me interesso bastante pela história e pela memória da/na América Latina, o que, na minha opinião, é uma das cerejas do bolo preparado por Roberto Bolaño. Apesar de grande parte das personagens que compõem a trama serem ficcionais, o autor consegue reconstruir o contexto e simular a sensação de repressão, desamparo e fracasso vivida pelas pessoas resistentes ao governo de Pinochet.
Além disso, a forma pós-moderna com que Bolaño construiu seu livro me cativou bastante durante a leitura: são estratégias narrativas complexas, com o uso frequente de histórias dentro da história principal, traço que estilhaça a estrutura, fazendo da memória do Chile um mosaico de horrores, que sempre nos deixa com a impressão de que está faltando alguma coisa.
O silêncio é como a lepra, afirmou Wieder, o silêncio é como o comunismo, o silêncio é como uma bela tela branca que precisa ser preenchida.
Por último, a obra me colocou para pensar bastante na relação do Brasil com os outros países não só da América Latina, mas mais especificamente da América do Sul. Isso porque as semelhanças entre Chile e Brasil vão muito além das políticas e da histórica conturbada, atravessada por ditaduras militares, estúpidas e truculentas: há uma similaridade no silêncio com que alguns temas são tratados.
O mais importante é que Roberto Bolaño desenha (mais uma vez) um caminho possível para lidar com as memórias nacionais traumáticas, ponto no qual o Brasil tem fracassado perenemente.
Nas suas Cartas a um jovem terapeuta (2008), Contardo Calligaris escreve sobre a psicanálise com um tom descontraído e pouco acadêmico, que serve tão bem aos não iniciados quanto aos que já pegaram o bonde (sempre andando) da psicanálise.
Em dezesseis cartas e alguns bilhetes, somos convidados a refletir sobre questões práticas e filosóficas da análise e das psicoterapias, num texto fluido e bem articulado que traz referências históricas, anedotas e “causos” sobre as vivências do autor.
Ao longo delas, Contardo tece comentários sobre as modas entre analistas, tanto as do passado como algumas mais recentes, a história da psicanálise francesa, da qual fez parte, nos anos 1960 e 1970, sua decisão de enveredar por esse caminho e suas ideias sobre o que (se) pode ou não esperar (de) quem deseja seguir a mesma via.
Não deixam de estar presentes, também, reflexões sobre o que é o “normal” para a psicanálise, o que se pode esperar enquanto “cura”, a relação do psicanalista com a ética da sua clínica, tópicos mais ou menos polêmicos – como a importância da infância e da sexualidade para a psicanálise, ou a inutilidade dos conflitos entre psicanálise e neurociências, ou psicanálise e religião –, e sobre as características que o autor considera desejáveis em quem considera a ideia de se tornar analista, as quais reproduzo parcialmente aqui:
Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por mais diferentes que sejam de você.
Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito.
(…) uma certa quilometragem rodada; e
(…) uma boa dose de sofrimento psíquico.
Pessoalmente, adorei as provocações. Se não for pra concordar, se prestam, no mínimo, a deixar as ideias fermentando… Um prazer que não me recuso, mesmo que não seja, de todo, inofensivo.
A Filha Perdida é uma obra da genial Elena Ferrante, lançada em 2006, e ganhou visibilidade após o lançamento da adaptação feita pela Netflix. Acompanhamos a história, presente e passada, de Leda, mãe de duas filhas e professora universitária. A vida tranquila e estável que Leda vivia após as filhas se mudarem para o Canadá com o pai é arrancada de si mesma quando, de férias na Itália, conhece Nina, a jovem mãe de Elena, que trata como filha sua inseparável boneca.
Há variações bruscas que nenhum gráfico é capaz de reproduzir, um momento é luminoso, outro é obscuro.
De longe, Leda idealiza Nina, sua maternidade suave, leve, cheia de carinhos. E, na medida em que se aproximam, Leda começa a se recordar de seu passado, de segredos escondidos no próprio intimo, de arrependimentos e escolhas que ainda pesam imensamente em sua existência. Da relação com a própria mãe à relação com suas filhas, Leda passa a enxergar em Nina os conflitos comuns a várias mães, a maternidade bruta e real, as culpas e conflitos de ser definida não mais como Leda, professora e acadêmica bem sucedida, mas Leda, mãe de Martha e Bianca.
Naquela época, eu tinha uma dor de estômago constante por causa da tensão. Era o sentimento de culpa: eu achava que todo sofrimento que atingia as minhas filhas era fruto do já comprovado fracasso do meu amor.
Na medida em que o passado se revela, em que o presente se apresenta como é, Leda agarra a oportunidade de novamente ser mãe, encontrando em Nina, Elena, e em um certo objeto, uma forma de traçar paralelos com sua própria história. O que antes estava superado, agora retorna, enfim, a superfície. A carga de ser mãe novamente a arrebata e a confunde, e traz para nós, leitores, questionamentos importantes sobre o papel materno diante da sociedade.
Quantas coisas estragadas, perdidas havia em meu passado, mas, naquele instante, ainda estavam presentes em um turbilhão de imagens
MINHAS IMPRESSÕES
Esse foi meu primeiro contato com a escrita de Elena Ferrante, e me surpreendi muito com a semelhança entre essa obra e Laços, de Starnone. Não nas histórias em si mesmas, mas na forma como ambos os autores relatam os conflitos internos, de forma um pouco bruta, um pouco sensível, que permite ao leitor colocar ali a própria subjetividade.
Além disso, a forma como a autora apresenta a maternidade é excepcional. No meu trabalho como psicóloga, percebo que uma questão comum às mães é a carga excessiva de se sentirem obrigadas a se definir assim, como mães. Não mais pessoas com uma subjetividade única, mas apenas mães. E Leda mostra como ser reduzida a isso pode ser problemático, o quão importante é para uma mulher ser algo além desse papel social, que parece tirar de nós as possibilidades de sermos mais.
Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu estivesse caindo para trás na direção de minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava.
Elena Ferrante, com todo o seu brilhantismo, mostra aos leitores as diversas nuances da maternidade, arrancando de nós a ideia romantizada de uma mãe saudável, amorosa, completa e feliz apenas por ter filhos. Ela mostra que, apesar de esses sentimentos poderem sim existir, eles não anulam o lado humano comum a todos nós, a possibilidade de se frustrar, de se arrepender, de querer voltar para uma vida que é só sua. É um abraço em todas as mães que se sentem desamparadas e culpadas por não quererem mais ser reduzidas apenas a isso, por não sentirem a magia da maternidade como por tanto tempo nos foi pregada. E, no fim das contas, a filha perdida pode ser Nina, Leda, Martha, Bianca, Elena, eu, você.
Eu estava como alguém que conquista a própria existência e sente um monte de coisas ao mesmo tempo, entre elas uma ausência insuportável.
Chico Buarque de Hollanda é o típico caso de artista que não precisa fazer qualquer esforço para estar entre os mais vendidos e lidos na semana de sua publicação, seja com um novo disco ou mesmo com sua prosa. Recentemente, vimos o fenômeno se repetir, quando o autor carioca lançou pela Companhia da Letras uma coletânea de contos, que recebeu o instigante título de Anos de Chumbo e Outros Contos (2021), livro cuja resenha você encontra a seguir.
Do chumbo antigo ao chumbo novo
Parentes descontrolados, violentos e abusadores; crianças perversas e em situação familiar de desamparo e negligência; moradores de rua delirantes, apaixonados por tempos idos e inalcançáveis; e relacionamentos desencontrados. Composto por oito narrativas curtas e a princípio sem relação, Anos de chumbo e Outros Contosjoga luz sobre um Rio de Janeiro marcado pela violência da milícia, pela corrupção e pelas ambições e frustrações amorosas e familiares, não deixando de lado, é claro, uma boa dose da comicidade – própria ao cotidiano ordinário – e também de melancolia, adequada a um senhor que viveu para ver o Brasil frustrar suas expectativas no que diz respeito à elaboração dos traumas históricos nacionais. (E que, pelo contrário, aparenta dar continuidade a esses traumas.)
O nome Anos de Chumbo sugere imediatamente uma relação com a realidade repressiva de boa parte do governo imposto pela Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985). Entretanto, na realidade pintada pelo escritor, a repressão que outrora fora exercida pelo governo militar aparece diluída e penetra todas as esferas da vida privada, na qual as decisões passam a ser tomadas muitas vezes a partir de pontos de vista egoístas e simplistas, nos quais o outro sempre aparece ou como aliado ou como inimigo definitivo do “Estado” – e aqui as palavras de Luiz XIV reverberam nas atitudes: L’état c’est moi ou, em bom português, “O estado sou eu”.
Essa escolha por “Anos de Chumbo” – título do conto-vitrine da coletânea – ostenta mais uma intenção editorial e mercadológica do que inteligência literária, uma vez que apenas o conto título traz como cenário os tempos sombrios da década de 1970, dialogando diretamente com o problema histórico nacional, ainda latente. Com toda certeza, entre os títulos que compõem o livro, é “Anos de Chumbo” o mais chamativo deles, além de possibilitar um deslocamento muito significativo, no qual a porta para o mundo contemporâneo é aberta com uma chave que também leva aos anos exílio, censura e perseguição por parte de um Estado opressor e assumidamente militarista.
A pobreza na escrita, a relevância da história
Ainda que Chico faça em Anos de chumbo e e Outros Contos uma releitura de temas caros à “alta” literatura brasileira – como a disputa de classes, o ciúme e a paixão cega, por exemplo –, esse novo trabalho me causou a mesma impressão que tenho de outras obras do autor: são boas histórias, mas não trazem consigo muito brilho próprio. Para começar, mesmo se valendo de um vocabulário invejável, achei o uso da linguagem pouco inventivo, caindo muitas vezes em descrições excessivas e desnecessárias, que parecem querer reforçar a atualidade do cotidiano dos contos, mas acabam sendo uma tentativa de perfumar a flor: máscaras de Covid, carros chiques, mesas de plástico, aeroportos etc. não espantam tanto a essa altura do século XXI quanto o autor parece supor e enfatizar. Outro ponto que me incomodou foi a construção dos personagens, que, de modo geral, não têm complexidade, cumprindo papeis que mais se parecem com tipos (na maioria esmagadora, violões, no caso dos homens, e cúmplices tolas, no caso das mulheres) do que de fato com sujeitos em si. Esse traço talvez não se aplique apenas aos narradores, que, contudo, por mais que os contos se diversifiquem, são parecidíssimos, independendo de sua idade e realidade social.
Dois dos oito contos: “O sítio” e “Cida”, para mim, são verdadeiras joias, por justamente escaparem ou pelo menos margearem os problemas que coloquei no parágrafo anterior. De todo modo, entre problemas e soluções, no fim, não acredito que a falta de capricho quanto a algumas das propriedades literárias diminua a importância do livro enquanto conjunto, ainda mais levando em conta que a obra dá continuidade a um movimento de Chico Buarque de trabalhar com temáticas mais contemporâneas (e principalmente a crise política). A obra, como coletânea, procura nos apresentar algumas das consequências da falta de elaboração do trauma histórico, e nisso ela é muito feliz, dá conta do recado, e faz a leitura não só valer a pena, como também ser necessária.
Antes de partir, queria fazer um convite a você, que tem interesse tanto pela obra de Chico Buarque, quanto pela vereda da literatura de testemunho, e principalmente aquela que trabalha com o obscuro período da Ditadura Civil-Militar brasileira. Aqui no Duras Letras, nós disponibilizamos um texto do pesquisador Alexandre Fonseca, no qual ele faz justamente uma exposição de como a literatura nacional contemporânea tem trabalhado com a(s) memória(s) da ditadura militar, publicação que traz, ainda, uma lista de indicações de leitura sobre/para o tema.
Apesar de ser uma escritora já consagrada no cenário literário de língua inglesa, Angela Carter não é tão conhecida no Brasil. Eu mesmo só tomei conhecimento de sua obra, porque minha companheira desenvolve atualmente uma pesquisa sobre o livro mais aclamado de Carter: A câmara sangrenta (Bloody Chamber, 1979), que saiu nos últimos anos em uma das edições da TAG – Experiências Literárias. Por esse motivo, é bem provável que você nunca tenha ouvido falar de Carter e muito menos de Noites no circo (Nights at the Circus), escrito por ela em 1984, um livro feminista de segunda onda e de estilo bastante fragmentado. Assim, com essa resenha, eu espero contribuir para diminuir essa falta que a autora faz nas prateleiras nacionais.
Ah, o circo! E que circo!!
Fazer uma síntese da narrativa é bem difícil, já que ela tem incontáveis deslocamentos, temporais, narrativos e espaciais. Mesmo assim, vou arriscar um resumo, pelo menos para dar um dimensão do que se trata.
Noites no circo conta a história de vida, as peregrinações e as inúmeras transformações de uma mulher-pássaro e trapezista chamada Sophie, de nome artístico Fevvers, que – acompanhada de ora irmã, ora mãe adotiva e ora cúmplice de crime, Lizzie, e de outros muitos personagens extravagantes – compõe o Circo do Coronel Kearney. Sendo a atração principal desse show exótico, Fevvers, a gigante com asas, conquista todos os jornais do último ano do século XIX, época em que a história se passa. E é justamente por conta dessa enorme midiatização e mitificação da imagem de Fevvers que o circo de Kearney desperta o interesse de um jovem jornalista estadunidense, de nome Jack Walser, disposto a atravessar o oceano, até a Inglaterra, só para fazer uma longa entrevista com a ídolo do circo, com o objetivo de responder a pergunta: você é de verdade ou você é uma farsa?
Essa tensão entre o real e o imaginário, jamais respondida, é o fio condutor da narrativa. É ela que leva Walser ao camarim de Fevvers para a entrevista e a se apaixonar pela atriz entrevistada. Leva Walser também a entrar no circo atrás de Fevvers, e a entreter uma plateia de São Petersburgo como palhaço. Leva ele, por fim, a se perder no deserto glacial da Sibéria, onde é capturado por um grupo de nativos e transformado em uma espécie de xamã. Mas a tensão também serve como síntese para as contradições de Sophie/Fevvers, que, vivendo uma vida paralela à de Walser, mas também totalmente de cabeça para baixo, é prostituta e é virgem, é mulher e é pássaro, é interesseira e é apaixonada, é violenta e é meiga, é gigante e é pequena, é loira e é morena, que voa e que não voa.
Bem, poderia dizer que constituíamos um microcosmo da humanidade, que éramos um conjunto simbólico, cada um significando uma proposição diferente no grande silogismo da vida. Os acasos da viagem nos reduziram a um pequeno grupo de peregrinos abandonados na imensidão deserta sobre os quais a imensidão deserta atuou como uma lente de aumento moral, exagerando os defeitos de uns e ressaltando as melhores características daqueles que pensávamos serem desprovidos delas. Aqueles dentre nós que aprenderam as lições da experiência já terminaram a sua viagem. Os que nunca aprenderão estão voltando aos trambolhões para a civilização o mais depressa que podem e tão bem-aventuradamente ignorantes quanto eram. Mas, quanto a você, Sophie, parece ter adotado o lema: viajar com esperança é melhor do que chegar.
Viajar com esperança de chegar
É… é a esperança o que nos leva adiante na leitura. Porque, sinceramente, é preciso ser persistente, ter fôlego, pois a sensação da obra vai de divertida, a vertiginosa, a confusa. O estilo pós-moderno da autora não segue uma estrutura tradicional e linear. Não que seja difícil, mas o caráter fragmentário faz do livro uma grande roda gigante: nos vemos diante de eventos incríveis, com narradores singulares, que nos fazem não querer largar o livro nem por um minuto – mas esses episódios se intercalam com longas divagações filosóficas, com metáforas e simbolismos malucos e de difícil entendimento, e com partes arrastadas, que parecem nunca mais acabar.
De todo modo, o livro tem uma pretensão muito adequada à época em que foi escrito e à ideologia social e política da autora. No interior de uma narrativa impressionante e de uma linguagem cheia de altos e baixos, Angela Carter dilui várias ideias das correntes feministas da época, problematizando questões como o male gaze (olhar masculino objetificante), o estereótipo de gênero e a desigualdade entre mulheres e homens quanto a direitos trabalhistas. É claro que, em leituras mais contemporâneas, muitos dos pontos levantados por Carter vão parecer um pouco fora do lugar, mas ainda assim Noites no circo continua sendo uma boa literatura feminista.
Agora, o fato de ser um livro feminista não deve ser entendido como um impeditivo para você, caro leitor, não se sentir convidado à leitura. Muito pelo contrário, estar tão intensamente atravessado pelo discurso feminista de segunda onda só faz com que seja ainda mais interessante a história de Fevvers, por mais que Carter a desloque no tempo, situando os acontecimentos no século dezenove.
Mas tenho uma péssima notícia para as leitoras e leitores que se interessaram: infelizmente, a edição brasileira de Noites no circo, publicada em 1991, pela editora Rocco, está fora de catálogo há um tempo e nunca ganhou reimpressão ou reedição. O jeito é procurar a obra em alguma biblioteca ou correr na Estante Virtual, para ver se salva algum exemplar perdido em algum sebo.
Antes de encerrar a resenha, queria fazer um convite. Se você ficou com curiosidade sobre a escrita de Angela Carter, nós temos uma publicação aqui no blog que pode te ajudar. Trata-se de um pequeno conto da autora, inspirado pela história da Branca de Neve, que está entre as narrativas de A câmara sangrenta. Ainda que seja bem diferente de Noites no circo, esse conto consegue dar uma dimensão da qualidade literária da escritora inglesa.
Desde o momento em que li o título, vi a capa e li a sinopse de O som do rugido da onça (2021), livro de Micheliny Verunschk, tive vontade de lê-lo. Demorou, mas aconteceu, e agora trago essa pequena resenha, para a apreciação (ou não) de vocês.
Iatucasaua
Particularmente, acho difícil resumir a narrativa do livro de Micheliny – por ser fragmentada e costurada com uma linguagem única. Em síntese, eu diria que O som do rugido da onça faz uma reescritura da odisseia vivida pela personagem Iñe-e: uma jovem do grupo indígena Miranha, sequestrada – junto de outras crianças – por dois exploradores alemães que vieram ao Brasil, no século XIX. Tirada da família, de seu povo, terra e do mundo que conhecia, Iñe-e tem por companhia os espíritos e divindades de sua tradição, além dos pensamentos e impressões de um lugar cada vez mais estranho. Tem, também, como companheiro, o menino Juri, outra criança sequestrada, que, apesar de dividir o mesmo destino desgraçado, não fala a língua dela.
Mas não se trata só disso a história. Micheliny também amarra o passado ao presente, ao colocar a personagem Josefa (um alterego da própria autora?) em trânsito paralelo com as duas crianças, confrontando este nosso Brasil contemporâneo, que se mascara de “novo”, mas que continua, depois de tantos e tantos anos, massacrando as lutas e silenciando as reinvindicações indígenas sobre terra, sobre moradia, sobre dignidade, sobre seus direitos mais básicos.
“Ruindade não acaba” – diz Tipai uu, a Onça Grande, para Iñe-e.
Nheen eé, Nheen ayua
Como eu disse no começo, particularmente, eu não gostei do livro, porém acho que ele traz coisas de muita qualidade que precisam ser mencionadas. Para começar, acho que o adjetivo que melhor descreve a narrativa é: necessária, não só por tematizar e colocar como protagonistas personagens indígenas e feridas históricas ainda abertas, como também por lançar um novo olhar sobre estes machucados, lendo uma história do Brasil à contrapelo. Ao lado disso, está uma linguagem brilhante, que deixa evidente a inspiração no lirismo derramado que atravessa algumas das obras de Guimarães Rosa. O uso desta língua específica para narrar, que mescla prosa, poesia e vocabulário nheengatu, deixa a leitura dinâmica, rica e, por mais estranho que pareça, mais fácil: uma vez que a gente pega o ritmo, o livro flui muito bem.
Só que, para mim, O som do rugido da onça não teve apenas flores. Achei a narrativa incompatível com o nível da escrita, já que é excessivamente didática, a ponto de se transformar quase em um manifesto que afoga parte da força literária do livro. Trechos como: “como pode ser bom alguém que compra outras pessoas? Que as leva para longe dos seus parentes?” ou “por que Iñe-e, que era livre, agora tinha donos?” aparecem com certa frequência e seriam totalmente dispensáveis, uma vez que fica claro o ponto de vista que o narrador (e a autora e nós, “leitores esperados”) defende. Fora que, com exceção de Iñe-e, os outros personagens que aparecem são pouquíssimo significantes e quase desaparecem da memória ao fim do texto, talvez por sua falta de complexidade na tomada de decisões e na forma como são percebidos pelo olhar de Iñe-e.
Mas nenhum desses pontos desqualifica ou dispensa a leitura do romance de Micheliny. Volto a dizer: leia Osom do rugido da onça e tire suas impressões; é extremamente necessário, como todas as releituras que propõem um questionamento da chamada “história oficial”, feita por mãos brancas, colonizadoras e patriarcalistas.