Crônica – “Autorretrato”, de Rafael Fava Belúzio

Diz o espelho: 

Rafael Fava Belúzio é um prosador medíocre. Desses de ilusões perdidas. Assinou algumas crônicas que podem revelar certo conhecimento de formas e tradições – mas os críticos dizem que nele falta originalidade e sobre parasitismo intelectual. Rafael teima em não escutar essa lição e a todo momento oferece mesquinhas produções nesse gênero menor, a crônica.

Rafael passa por cronista frequente. Na realidade, quase nenhum escrito pertence a ele. Com efeito, quem examinar seu texto verificará que se trata tão-somente de repetição sistemática de cronistas brasileiros. E alguns outros textos, inclusive poemas, recontextualizados no tempo e no espaço. Não há nisso crônica alguma, boa ou má. Há apenas a paródia-paráfrase-pastiche de alguns escritos que podem ser encontrados em qualquer volume de história da literatura brasileira.

Esse pequeno fato – literário? – faz despertar em alguns julgadores a suspeita de que se trata de um plagiador. Há por vezes a impressão de que Rafael se diverte com essa conversa miúda, fofoca e opinião a seu respeito: “É um burro”, “É um louco”, “É inferior a uma carniça”.

Alguns traços – pessoais? – do referido escritor contribuem para aumentar as dúvidas. Rafael é um indivíduo oculto, como certos sujeitos de oração, ausente mesmo, usa no trato social palavras poucas e frias. Não é visto em festas. Uns o acham autista; outros, enrustido. Em geral, não ri.

Como professor, dizem que pode ser visto falando aqui e ali o que já foi dito por Álvares de Azevedo e Paulo Leminski. Alguns prejudicados pelas notas do professor o caluniam como se ele não fosse uma personagem, ou insinuam que toda sua atividade é fictícia, e que os alunos caminhariam da mesma maneira, ou melhor, se ele, em vez de lecionar, fosse a uma sessão de cinema. Outro ponto a esclarecer.

Rafael Fava Belúzio

Não há muito o que dizer sobre Rafael, que já não tenha sido dito na crônica aqui disponibilizada. A não ser que é o autor de seu próprio texto, que agora você lê.

Não há muita coisa interessante na vida de Rafael, e ele concorda com isso. Tem explorado largamente o fato de ter nascido em Carangola, cidade mineira de coisa nenhuma, como se isso constituísse uma singularidade. Dizem que o prosador imitador de poeta alimenta recusas, entre elas a recusa da novidade. Vive na velha Carangola, rompendo a tradição da ruptura, vive com os mortos, já deixou de ser uma originalidade. 

É, pelo menos, um sujeito esquisito. 

1929 e a “literatura especializada”

A crônica “Autorretrato” é uma das 29 que compõem o livro 1929, de Rafael Fava Belúzio, publicado em 2021, pela editora Impressões de Minas, de Belo Horizonte. Para leitores pouco acostumados com o gênero, ou que estão pouco acostumados com a tradição e a historiografia literária nacional, as crônicas de Belúzio podem ser obscuras. Porém, para os que já têm certa familiaridade com este “gênero menor”, e também para aqueles inseridos nas discussões a respeito de influência, intertextualidade e formação da literatura brasileira, a coletânea de Belúzio é uma dessas joias da crônica contemporânea no Brasil. 

O livro pode ser adquirido no site da editora.

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Título: 1929
Autor:
Rafael Fava Belúzio
Editora:
Impressões de Minas.
Ano: 2021

“306 a 1929”, crônica por G. R. Martins

para Rafael Fava Belúzio

— Timinho difícil esse — o papai dizia, eu sem entender. Mas o diminutivo não era tanto por conta do tamanho do time – jogadores eram onze, do mesmo jeito, de um lado e de outro; ele dizia aquilo assim, porque aquele time tinha saído de lugar nenhum de dentro de Minas: “timinho”, do interior, era isso, ainda que vindo jogar na capital. A coisa do “difícil”, essa era mais fácil, porque, mesmo sendo “timinho”, a província vinha dar trabalho para a metrópole de um jeito que meu pai nem imaginava, e que mesmo eu mesmo ainda nem sei bem como, mas que, vira e mexe, aparece no gramado.

Neste ano, o time do meu pai atropelou província por província, capital por capital, e foi campeão mineiro e, agora, brasileiro, depois de cinquenta anos sem nem cheiro. Mas, para a sua decepção, eu não sou tão dado a futebol, comemorei pouco, me comovi com a derrota dos que eram menores. A verdade é que eu fico num jogo de quero e não quero saber da vitória e da derrota, jogo que me afunda e me levanta. Daí, enquanto ele comemorava a vitória, posso dizer, rebolando sobre as teclas, eu carangolava pela casa afora, mesmo que em festa de campeão seja difícil achar lugar para carangolices.

Se não são um verbo e um substantivo saborosos, uma mistura de calango, carambola e parabólica, que conheci desde há pouco. Nada eles têm a ver com futebol, eu acho; são um empréstimo útil que faço do último livro que li, que talvez nada tenha a ver comigo também, mas que, por ter gostado um tanto, vou pelo menos tentar resenhar de um jeito diferente, e timidamente, por aqui.

Título: 1929
Autor:
Rafael Fava Belúzio
Editora:
Impressões de Minas.
Ano: 2021

— Livrozinho difícil esse — eu dizia, ainda sem entender a frase muito bem. Deve ser porque também nunca fui dado à crônica, que tem lá sua coisa de futebol, e que é gênero menor da literatura. Nem sei muito bem como eu ando lendo… sei só que li as 29 crônicas que fazem 1929, e que fiquei sabendo um pouco sobre a cidade de Carangola, cidade mineira de coisa nenhuma, e que “1929” é o número do apartamento onde mora o autor do livro, na cidade grande, um tanto longe daquela Princesinha da Zona da Mata. Carangola: 50% é melancosmopolitismo. Outros 50%, carongolidade, numa conta que, quem sabe, não dá pra fechar com números bestas. A chance de vitória contra o time da casa é baixa, mas não sou matemático e nem comentarista esportivo, e, mesmo estudando literatura, o que sei eu de crônica pra falar alguma coisa sobre? Só que é um gênero menor da literatura.

— No sentido deleuziano? — perguntou minha noiva.

Não sei… Mas tem qualquer coisa no livro de disputa entre campeão do campeonato contra time que tenta evitar o rebaixamento. E qualquer outra coisa que se desprendeu de Carangola, de dentro do interior, pra ocupar meu gramado. Ontem encontrei um carangolense no pedinte do sinal, e nas crianças do playground no prédio, e outra comprando remédios com o balconista da farmácia… Nenhum deles deve conhecer Carangola, que eu saiba, mas a gente nunca sabe mesmo o que está fazendo com a nossa vida… Eu mesmo, nasci na cidade grande em que, hoje, o autor de 1929 tem morado; e vivi a maior parte da minha vida (até aqui) bem aqui. Isso, na verdade, nem tem importância nenhuma para Carangola, que não me conhece e nem precisa… Que sei eu de você, Carangola? Tanto quanto sei de crônica, que é o que me contou um livro, apenas.

Eu nunca fui até Carangola, mas acho que, algumas muitas vezes, ela veio visitar minha casa. Foi num domingo, bem no fim da tarde, na última cerveja do freezer, que congelou. Veio também numa quarta, à noite, quando li um verso de Drummond, e num outro dia, quando li um de Mário, e até num romance de Lygia Fagundes, num poema que escrevi, e detestei.

— Belo Horizonte, 2021.

Crônica – “O Túmulo de Eros”, de Paulo Bittencourt

Trilhar um caminho que consiga fazer encontrarem-se pensamento e escrita. Essa é a função a que me dedico quando me ponho, vez ou outra, frente a essa atividade. Sair de um emaranhado fragmentado e incompreensível de ideias e sensações amalgamadas para a organização funcional da comunicação. Não, não se pode restringir o estado bruto do sentimento à sua função comunicativa; isso seria diminuí-lo e poderia até retirar-lhe aquilo que guarda de mais elegante – seu caráter poético.

A tarefa da qual hoje me encarrego é talvez autorreflexiva, pois que se debruça justamente sobre essa transição. E sempre me atento a buscar um ponto palpável para que, daí, seja possível dar o primeiro passo rumo àquele espectro último, ainda invisível para a consciência. Todos nós, com maior ou menor regularidade, cedemos ao impulso da racionalização. Digo, é muito comum que tentemos colocar todo o pensamento em ordem, por vezes até criando diálogos imaginários dos quais sempre saímos “vitoriosos”, nessa fantasiosa missão retórica de persuasão. É o famoso argumento debaixo do chuveiro, que na prática nunca é repetido à perfeição.

A perfeição é atributo das coisas em seu estado imaginativo. Prender-se dessa maneira à expectativa idealizada pode representar para o caminho um obstáculo intransponível – a prisão em potencial que o pensamento representa para a ação. Se o desejo é a entrega a esse estado musical, primevo, de desorganização, em que sentimos à flor da pele a espontaneidade do prazer, a embriaguez essencial do corpo; a racionalização, o domínio da potência, minariam essa a força ativa, restringindo-a a seu estado de potência, sempre limitada à consciência. Eros jaz nas mais profundas esferas do pensamento; as correntes mais rígidas o impedem de manifestar sua atração – o próprio desejo. Um grande fantasma – essa dúvida permanente – acaba por se tornar o conforto tranquilizador contra o impulso erótico. Fonte de equilíbrio e sobriedade.

Creio fielmente que há em todos nós um pouco de Orfeu – devoção à embriaguez e à desordem, à música e à poesia. Mas o fim leva-nos a um estado tal de melancolia que o próprio selo dionisíaco se torna refém do Sol, e o destino não pode ser senão trágico, como o fora na mitologia. A maldição da eterna dúvida, a condição essencial de sempre estar à frente daquilo a que se quer dedicar, a quem se quer amar, para, ao final, virar-se e experimentar o desaparecimento do desejo. Seria possível atribuir a ele próprio o erro maldito, ou seria já desde o início plano punitivo dos deuses contra sua irreverência?

Já não consigo distinguir – e já não sei até que ponto vale a pena fazê-lo. A música não se apresenta mais senão sob o silêncio; as musas já não oferecem a sua graça para a poesia. Sinto-me completamente dominado pelo exercício da razão, de colocar todas as peças do quebra-cabeças em seus devidos lugares, mentalmente, e de me contentar com esse estado. De gozar desse estado. Essa parte essencial de nós em que se encontra a dança – eu a mereço, sou-lhe digno? Fato é que esse peso se encontra posto sobre mim, mas tenho apenas duas mãos…


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Crônica – Latência, de Paulo Bittencourt

Venho apenas dizer-te da carta por escrever

Marta Chaves

Desperto. E à luz do primeiro raio de sol que penetra através da janela recobro a consciência que estivera por alguns instantes suspensa em universo onírico. Conforto, serenidade? Não. Desespero, ansiedade? Ainda não. Latência. Estado não manifesto do meio; inatividade entre os estímulos que se vão acumulando e a resposta subliminar por eles provocada. Experimento quase que diariamente essa sensação irrequieta de confrontar-me com a ampla miríade de responsabilidades de maior ou menor escala ou importância; mas a dúvida que paira é comum: de onde vem e por que persiste o sentimento de dívida?

Imóvel. Acalme-se… A projeção do dever é fruto de suas próprias inseguranças. Acalme-se… Uma coisa de cada vez. Essa pedra no meio do caminho é muito mais do que um obstáculo para atingir qualquer objetivo. A verdade é que ela é, em si mesma, a finalidade da caminhada. É no processo que se encontra o fim, ou nos prenderíamos todos às imagens projetadas e, assim, nada haveria de ser feito. Veja: essa passageira alegria, esse conforto momentâneo é produto mesmo da metade, e não do resultado! Mas então por que diabos a tão aguardada resposta simplesmente não dá o ar da graça?

Inerte. Ainda está tudo muito confuso; a visão, nublada. O que quero dizer é o seguinte: sinto ao acordar uma imobilidade, uma paralisia que me choca os nervos. Aparento calma e segurança, como me é esperado; ajo conforme o cumprimento de quase tudo aquilo que me é dado para o designado dia, cumpro os prazos. Mas sempre, sempre guardo em mim a insuficiência. Atraso. Aquilo que poderia, mas não foi. Entende?

Estático. O maior estranhamento acompanha a dissociação disruptiva entre o pensamento e a ação. Sei que para completar alguma coisa, preciso planejar, dividir, me contentar até com o pouco que posso, ainda mais num estado desses, de pululante nervosismo. Sei que nunca os objetivos se equivalem às expectativas; as idealizações que projetamos se distanciam sempre do resultado material, que por vezes até mesmo as supera — quem diria?! Tudo o que precisa ser feito, agora, não é muito. Não posso antecipar todo o universo para o aqui, agora. Tempo (ah! Tempo!). Mas é simplesmente isto: o corpo não vai, não sai do lugar… Será que o problema é com a cadeira?

Suspenso. Penso, penso, penso… Diminuo a quantidade de tarefas. Ninguém aguenta tudo isso, não. Eu me cobro demais. Tento em vão controlar a ansiedade e o desespero. Desistir? Jamais! Mas não-vai-de-jeito-nenhum. Inferno! O que precisa ser feito para que a racionalização de toda a situação de inatividade, para que todas essas conclusões sobre o que precisa ou não ser feito em cada momento, para que a tão pensada paciência da atividade diária, concentrada e organizada, desperte no meu corpo o prazer momentâneo daquilo que eu mais admiro? Será que é isso mesmo o que eu admiro, será isso o que me traz felicidade? Ou não seria o meu gozo fruto mesmo do estado de latência?

Reincido numa arquitetura que privilegia as faltas…

27 de abril de 2021.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Ode ao humor

Fascinante experiência é ver-se através de um espelho! A produção virtual de uma realidade, na qual se reflete de forma mais ou menos precisa a imagem própria do indivíduo, sem dúvidas lhe provoca alguma espécie de inquietação. Essa ocorrência — que por vezes se dá nas mais fugazes das circunstâncias, como que numa espera dentro de um elevador para atingir o andar do prédio em que se trabalha ou do apartamento em que se mora, ou até mesmo no breve reflexo produzido pelas janelas de um ônibus que passa à frente, enquanto se espera a luz verde do sinal de pedestres para atravessar avenida — é o estalo de narciso mais ou menos duradouro que habita a todos nós.

A experiência narcísica não se reduz somente a uma admiração própria ou a uma fixação contemplativa inelutável rumo à imagem própria. Não. Ela se mistura a uma certa agonia, um amálgama entre a recusa e o desejo de si. Divididos numa fração de segundo, essas duas metades inseparáveis agora se encaram na indissolúvel contradição entre atração e repulsa de nós para conosco — a segurança apaziguadora do que em cada um é unidade agora fragmenta-se em duplo.

Dir-se-ia que há uma vontade hesitante do espírito em se reconhecer nesta unidade que representa o corpo, mas a consciência de nossa multiplicidade interior rapidamente a desconfigura. É angustiante e, por vezes, até mesmo revoltante quando somos resumidos a um estereótipo; a definição redutora que rotineiramente nos é atribuída como arquétipos de somente uma das faces do prisma que compõe a nossa natureza provoca a reação quase que instantânea de erro — não somos limitados ou definidos (somente) por isso.

Encarar a imagem própria coloca em conflito, então, essas várias facetas de um mesmo “eu”, agora dividido no confronto com seu reflexo — este estranho familiar que passa a representar o “outro”. Eu e outro frente a frente, reprimindo-se, julgando-se, reconciliando-se na medida do possível, pois que guardam diferenças fundamentais entre si. A parte em mim que concentra todo o espírito de completude, de estabilidade, de equilíbrio, impõe represálias àquela outra em cujo desejo inebriante de retorno ao instintivo, à aventura, à solidão e à embriaguez se aflora.

Passado o veículo coletivo, aberta a porta do elevador, essas duas metades tornam a se tensionar dentro dessa aparente unidade física que é o nosso corpo. Condenados a viver neste eterno pêndulo de luz e sombra que nos habita a essência desde o reconhecimento inicial do pensamento. Reduzimo-nos àqueles bons dias em que se cumprem todas as obrigações e o retorno à casa se dá pacificamente para o descanso merecido após algumas horas de dedicação. Esses dias que se nos apresentam sem maiores êxtases, sem maiores dores. Cada vez mais frequentes — invisíveis.

O reflexo já se foi, não nos resta mais brigar, mas alguma coisa ainda carece, ainda estamos em dívida com nosso outro interior. A dívida é eterna, e sábio é aquele que vê a divisão primordial como ironia de si, e a transforma numa grande peça de humor.

20 de Abril de 2021.

Imagem da capa: O espelho falso (1928) – René Magritte


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Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Aperte os cintos

Houve uma época em que usar o cinto de segurança quando se estava no assento de trás do carro era uma veleidade. Algo tido como mera formalidade opcional. As viagens, por mais longas que fossem ou por mais sinuosas que as estradas se apresentavam à frente no trajeto, sempre guardavam um quê de perigo iminente, por mais que não nos atentássemos a isso. Quando o porte físico ainda me permitia, revezava a posição entre um cochilo encolhido deitado ao banco, desconfortável mas aconchegante pela sensação de velocidade e pelo vento que entrava turbulento pela janela, e um estado de espera suspensa e ansiosa pela chegada ao destino, em que ficava assentado, apoiando o queixo sobre as mãos. O olhar fixava-se através do vidro da janela para uma paisagem que passava muito rapidamente e cuja configuração se alterava entre árvores e pequenas casas de distritos isolados.

Imagino que nesse olhar algo monótono, a mente tenda a criar formas de se entreter para preencher aquele excesso do qual é difícil absorver alguma imagem real perene. Constantemente me punha com olhar fixo a uma árvore ou a um poste de luz muito adiante na estrada, e aquele curto espaço tornava-se o objetivo último do percurso: “sairei vitorioso dessa corrida assim que ultrapassarmos aquele objeto estático, logo então ficarei em primeiro lugar e atingirei o mais alto lugar do pódio”. E a corrida tornava-se uma competição pessoal, individualizada, inexistente para os outros passageiros, silenciosa. A tensão era crescente à medida que se aproximava o concorrente inanimado. Os últimos momentos antes da ultrapassagem faziam prender a respiração, e numa passagem quase invisível o poste era deixado para trás e a missão estava concluída com sucesso: alívio; sensação de dever cumprido — antes de retornar à monotonia e alterar a posição para tentar um novo sono vigilante.

Jovem e inocente, ainda havia muito o que aprender… Sempre ouvira a seguinte fala, dos mais diversos adultos: “Você entenderá quando ficar mais velho”. Quando finalmente chegaria esse momento em que o entendimento das coisas, de súbito, instalar-se-ia em mim e transformaria minha infância em minha maturidade? Esse estado de espera por algo que nunca se sabe exatamente quando cria uma angústia. O caminho se mostra cada vez mais estreito, a ansiedade torna-se parte constituinte da espera. Os objetos do cotidiano são realizados de maneira cada vez mais rotineira e irrefletida, como um caminho já traçado a ser percorrido com maiores ou menores obstáculos pouco a pouco transpassados. É como a construção de um edifício interminável, sua fundação parece nunca ter fim. O castelo na areia, a terra absorta, movediça, absorve lentamente a esperança de transformação. A árvore na estrada parece nunca chegar: Zenão — sempre metade, metade, metade… ao infinito.

Passa. Está terminada a corrida, já me encontro na primeira posição; o edifício está concluído. Nada mais está adiante, o caminho está aberto. Mas a visão está em choque, fixada atrás, nostalgicamente observando o que passara num piscar de olhos. O tempo chega — de absoluta depuração. O que resta é a saudosa memória do poste que ficou para trás. O objetivo tão aclamado se desfez em tédio, em remembranças incertas, em dúvidas. Ficou para trás a criança e sua inocência — o olhar passa quase desapercebido por este exato momento em que, lado a lado, encontram-se o ser e o seu duplo, até que sua velha metade é deixada ao longe, e sua memória travessa trai o agora impossível ímpeto pelo seu retorno. Assim deixamos para trás grande parte de nós mesmos, de uma esperança aflitiva para atingir o momento tal em que tudo se alteraria para sempre, e quando finalmente se chega, o que nos resta é a sensação vã de que aquela esperança sempre fora uma grandíssima inocuidade. Os olhos que agora deveriam contemplar o vale imenso de possibilidades à frente não conseguem senão tornar-se para a trilha estreita que passou. Não nos foi dado tempo o suficiente para contemplarmos a passagem, aquele instante perfeito em que o “eu” se divide para sempre. Não nos é dada a oportunidade de dar adeus a uma parte querida de nós mesmos, que eternamente estará perdida no abismo do tempo. O canto harmônico — ode à existência do instante em que se tem completa a vida –; este preciso momento praticamente inexistente, pois que os olhos não o conseguem captar sob tamanha velocidade, é o que se chama — eternidade.

Mas passou…


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

“À Deriva”

Há alguns dias ou semanas, lembro-me de ter visto em algum portal digital uma reportagem sobre um determinado ponto do Oceano Pacífico cuja localidade exata guardaria a maior distância com relação a qualquer porção de terra continental na face do planeta. Se me recordo com alguma precisão, havia menção a uma tendência de maior migração de animais marinhos e aves, dirigindo-se a esse ermo absoluto por diversas razões relacionadas à ação antrópica, como a pesca predatória e uma maior concentração de poluentes nas águas e no ar.

Imaginei-me sentado de pernas cruzadas neste exato ponto, como que flutuando por sobre a mais vasta imensidão do oceano, sentindo o fluxo das correntes marítimas sob minhas pernas, sem me afundar na água ou ser violentamente dilacerado pela vida animal que pouco tomaria nota da minha presença inútil ali. Imagino-me assim, pois, em um completo estado de distanciamento, de olhos bem abertos, experienciando a mais terrivelmente sublime das imensidões solitárias e das solidões imensas do ser.

Assim naufrago no isolamento ensimesmado dentro de meu próprio desengano, mas com a sutil diferença de sentir a traição dos sentidos, pois que eles não me permitem ausentar-me a essa maneira da grande máquina que gira à revelia de qualquer intervenção – humana, animal, cósmica ou divina. A atração gravitacional que assola os impulsos do meu corpo em direção a essa roda incessante faz do retorno ambiguidade: em qual dos dois estados se estaria mais próximo da realidade?

Levantar o olhar novamente através das grades da janela para a maré de prédios sob a cacofônica rapsódia de construções civis, veículos automotores e vozes alheias fez cruzar em meus pensamentos versos daquele a quem gosto de apelidar “O Poeta Desterrado”:

Eu me engano: a região esta não era; 
Mas que venho a estranhar, se estão presentes 
Meus males, com que tudo degenera. 

É de muito difícil compreensão e racionalização a experiência do isolamento. Criou-se uma dependência vital de controle, planejamento, que por ora escapa completamente às nossas ações e segue rumo peremptório desconhecido – talvez muito mais próximo do retorno ao vazio imenso do qual somos provenientes do que se possa prever ou sequer imaginar. A completa modificação do espaço se confunde com a total virgindade da paisagem oceânica: daqui, de dentro, o que altera a experiência, o que degenera o espaço com o qual convivemos é o olhar atordoado de quem se viu perdido em um universo de rumos randômicos.

Não há, nem aqui, nem lá, possibilidade de construção de sentido – por mais que se empenhe toda a energia humana na construção deste trilho, a distância (aparente ou não) é infinita, e a terra firme não passa de uma ilusão. Sinto como se o fluxo das correntes marítimas naquele ponto, o mais distante do oceano, fosse subitamente interrompido, e meu corpo, atônito, finalmente afundasse.

13 de abril de 2021.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

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