Conto – “Nuvens”, de Graciliano Ramos

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, A quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou.

Houve uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi muitas caras, palavras insensatas. Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, andava em dois ou três anos. A recordação de uma hora ou de alguns minutos longínquos não me faz supor que a minha cabeça fosse boa. Não. Era, tanto quanto posso imaginar, bastante ordinária. Creio que se tornou uma péssima cabeça. Mas daquela hora antiga, daqueles minutos, lembro-me perfeitamente.

Achava-me numa vasta sala, de paredes sujas. Com certeza não era vasta, como presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas. Contudo pareceu-me enorme. Defronte alargava-se um pátio, enorme também, e no fim do pátio cresciam árvores enormes, carregadas de pitombas. Alguém mudou as pitombas em laranjas. Não gostei da correção: laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam.

A sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam folhas de papel e esgoelavam-se:

— Um b com um a b, a: ba; um b com um e — b, e: be.

Assim por diante, até u. Em escolas primárias da roça ouvi cantarem a soletração de várias maneiras. Nenhuma como aquela, e a toada única, as letras e as pitombas convencem-me de que a sala, as árvores, transformadas em laranjeiras, os bancos, a mesa, o professor e os alunos existiram. Tudo é bem nítido, muito mais nítido que o vaso. Em pé, junto ao barbado, uma grande moça, que para o futuro adquiriu os traços de minha irmã natural, tinha nas mãos um folheto e gemia:

— A, B, C, D, E.

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos desceram ao quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também. Resisti: o degrau que me separava do terreiro era alto demais para as minhas pernas. Transportaram-me — e adormeci, não cheguei a pisar no barro vermelho. Acordei numa espécie de cozinha, sob um teto baixo, de palha, entre homens que vestiam camisas brancas. Um deles perguntou como se havia de assar o bacalhau e outro respondeu:

— Faz-se um grajau de madeira.

Grajau? Que seria grajau? Tornei a mergulhar no sono, um sono extenso.

Disseram-me depois que a escola nos servira de pouso numa viagem.

Tínhamos deixado a cidadezinha onde vivíamos, em Alagoas, e entrávamos no sertão de Pernambuco, eu, meu pai, minha mãe, duas irmãs. Mas pai e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma natural, mais velha que eu, a outra legítima, direita, dois anos mais nova, eram manchas paradas.

Positivamente havia pitombas e um vaso de louça, esguio, oculto atrás de um móvel a que a experiência deu o nome de porta. Surgiram repentinamente a sala espaçosa, o velho, as crianças, a moça, bancos, mesa, árvores, sujeitos de camisas brancas. E sons estranhos também surgiram: letras, sílabas, palavras misteriosas. Nada mais.

E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro.

Passam através desses rasgões figuras indecisas: Amaro Vaqueiro, caboclo triste, encourado num gibão roto;  Sinha Leopoldina, companheira dele, vistosa na chita cor de sangue; mulheres que fumavam cachimbo. Mais vivo que todos, avulta um rapagão aprumado e forte, de olhos claros, risonho.

Calçava alpercatas, vestia a camisa branca de algodão que usa o sertanejo pobre do Nordeste, áspera, encardida, ordinariamente desabotoada, as pontas das aberturas laterais presas em dois nós. Chamava-se José Baía e tornou-se meu amigo, com barulho, exclamações, onomatopéias e gargalhadas sonoras.

Sentado, escanchava-me nas pernas e sacudia-me, sapateava, imitando o galope de um cavalo; em pé, segurava-me os braços, punha-se a rodopiar, cantando:

Eu nasci de sete meses, 
Fui criado sem mamar. 
Bebi leite de cem vacas 
Na porteira do curral

Quando me soltava, eu cambaleava, zonzo. Um dia, livre dos giros vertiginosos, saí aos tombos, esbarrei com um esteio e ganhei um calombo grosso na testa.

Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou.

Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio. A cabeçada valente que dei, solto das garras de José Baía, firmou o copiar, sustentado por colunas robustas, de aroeira ou sucupira. Ali perto era a sala, de janelas sempre fechadas, armas de fogo e instrumentos agrícolas pelos cantos, arreios suspensos em ganchos, teias de aranha, a rede segura em armadores de pau, grosseiros caixões verdes, depósitos de cereais, se não me engano. No corredor desembocavam camarinhas cheias de treva e a sala de jantar. A cozinha desapareceu, mas o quintal subsiste, duro e nu, sem flores, sem verdura, tendo por único adorno, ao fundo, junto a montes de lixo, um pédeturco, ótimo para a gente se esconder nas perseguições. Desse lado o pédeturco marcava o limite do mundo. Do outro lado a terra se estendia por longas distâncias. A casa, de material rijo, estava completa por dentro. Mas exteriormente havia nela singularidades. O oitão esquerdo era de altura incrível; à direita faltava oitão, não sei como o telhado podia equilibrar-se. Talvez currais e chiqueiros, construídos na vizinhança, ocultassem um dos muros. Chiqueiros e currais esvaíram-se.

Durante um redemoinho brabo notei esquisitices. Nuvens de poeira enrolaram-se em briga feia, escureceu, um rumor diferente dos outros rumores cresceu, espalhou-se, e no meio da terrível desordem um couro de boi espichado quebrou o relho que o amarrava a um galho e voou no turbilhão. Uma senhora magra, minha indistinta mãe, tentou com desespero fechar uma porta balançada pela ventania. Folhas e garranchos entraram na sala, um bicho zangado soprou ou assobiou, a mulher agitou-se pendurada na chave. Findo o despropósito, vi a pessoinha com a mão envolta em panos. Um dedo inchou demais, e foi necessário que lhe cortassem o anel com lima. Em seguida perdi a moça de vista. E a letargia continuou.

O pátio, que se desdobrava diante do copiar, era imenso, julgo que não me atreveria a percorrê-lo. O fim dele tocava o céu. Um dia, entretanto, achei-me além do pátio, além do céu. Como cheguei ali não sei. Homens cavavam o chão, um buraco se abria, medonho, precipício que me encolhia apavorado entre montanhas erguidas nas bordas. Para que estariam fazendo aquela toca profunda? Para que estariam construindo aqueles montes que um pó envolvia como fumaça? Retraí-me na admiração que me causava o extraordinário formigueiro. As formigas suavam, as camisas brancas tingiam-se, enegreciam, ferramentas cravavam-se na terra, outras jogavam para cima o nevoeiro que formava os morros.

Nova solução de continuidade. As sombras me envolveram, quase impenetráveis, cortadas por vagos clarões: os brincos e a cara morena de Sinha Leopoldina, o gibão de Amaro Vaqueiro, os dentes alvos de José Baía, um vulto de menina bonita, minha irmã natural, vozes ásperas, berros de animais ligando-se à fala humana. O moleque José ainda não se tinha revelado. Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as finas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas — e os meus receios esmoreciam. As grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos.

O vozeirão que as comandava perdia a aspereza, um riso cavernoso estrondava — e os perigos ocultos em todos os recantos fugiam, deixavam em sossego os viventes miúdos: alguns cachorros, um casal de moleques, duas meninas e eu.

De repente surgiu a terceira irmã, insignificância, nos braços de Sinha Leopoldina. Não fiz caso disso.

O que então me pasmou foi o açude, maravilha, água infinita onde patos e marrecos nadavam. Surpreenderam-me essas criaturas capazes de viver no líquido. O mundo era complicado. O maior volume de água conhecido antes continha-se no bojo de um pote — e aquele enorme vaso metido no chão, coberto de folhas verdes, flores, aves que mergulhavam de cabeça para baixo, desarranjava-me a ciência. Com dificuldade, estabeleci relação entre o fenômeno singular e a cova fumacenta. Esta, porém, fora aberta numa região distante, e o açude se estirava defronte da casa. Estava ali, mas tinha caprichos, mudava de lugar, não se aquietava, era uma coisa vagabunda.

A vazante das abóboras, por exemplo, ficava longe. Sozinho, não me seria possível atingi-la. Dez ou vinte aboboreiras na terra de aluvião. Amaro havia dito que uma bastava. Se o inverno viesse, aquele despotismo seria estrago; chegando a seca, não se colheria um fruto, ainda que enterrassem na lama todas as sementes. Meu pai desprezou o conselho do caboclo — e o resultado foi uma praga de abóboras. A princípio uns cordõezinhos se torceram na vaza, enfeitaram-se de botões amarelos, de pequenas cabaças. Um homem carrancudo examinava-as, marchando vagaroso. Era um meu tio, hóspede, convidado para ser padrinho da insignificância que berrava nos cueiros.

Ofereceu-me uma caixa de fogos de artifícios, desapareceu — e no ponto onde o conheci as vergônteas floridas engrossaram, tornaram-se cordas robustas, peludas. E as abóboras cresceram, tantas que a gente andava na roça pisando em cima delas. Juntavam-se, enganchavam-se duas, três, num bloco, figuravam bela calçada movediça. Os caçuás enchiam-se. Acomodava-me numa carga e lá nos íamos sacolejando, eu e o animal, em caminhos esburacados. Abarrotaram-se os caixões da sala, fizeram-se tulhas no alpendre, nos quartos. E a produção levantava-se, espalhava-se, desvalorizada. Escancararam-se afinal as porteiras, houve licença para que toda a gente se abastecesse. Franqueza vã: saciada a população escassa, empanzinada a meia dúzia de porcos da fazenda, a safra inútil apodreceu no campo.

Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se. Na harmonia conjugai a voz dele perdia a violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no cocuruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém, ranger de dobradiça ou choro de criança, lhe restituía o azedume e a inquietação.

Zangava-se ouvindo alguém afastar-se da sua prosódia curiosa. Suponho que nunca houve outra igual. A sintaxe e o vocabulário também diferiam bastante do que usamos comumente. Nessa linguagem capenga, D. Maria matracava um longo romance de quatro volumes, lido com apuro, relido, pulverizado, e contos que me pareciam absurdos. De um deles ressurgem vagas expressões: tributo, papa-rato, maluquices que vêm, fogem, tornam a voltar.

Tento arredá-las, pensar no açude, nos mergulhões, nas cantigas de José Baía, mas os disparates me perseguem. Lentamente adquirem sentido e uma historieta se esboça:

Acorde, seu papa. ..

Papa quê? Julgo a princípio que se trata de papa-figo, vejo que me engano, lembro-me de papa-rato e finalmente de papa-hóstia. É papa-hóstia, sem dúvida:

Acorde, seu Papa-hóstia, 
Nos braços de...

Nova pausa. Três ou quatro sílabas manhosas dissimulam-se obstinadas.

Despontam algumas, que experimento e abandono, imprestáveis. Enquanto procuro desviar as idéias, a impertinência se insinua no meu espírito, arrasta-me para a sala escura, cheia de abóboras. Subitamente as fugitivas aparecem e com elas o início da narrativa:

Acorde, seu Papa-hóstia, 
Nos braços de Folgazona.

Aí temos uma alteração:

Levante, seu Papa-hóstia, 
Dos braços de Folgazona.

Outra emenda. O hábito de corrigir a língua falada instiga-me a consertar o primeiro verso:

Levante-se, Papa-hóstia.

Vacilo um minuto, buscando cá por dentro a forma exata da composição.

Persuado-me enfim de que minha mãe dizia:

Levante, seu Papa-hóstia.

E repete-se a aventura seguinte, que D. Maria recitava embalando-se na rede, perto dos caixões verdes. Um menino pobre foi recebido caridosamente em casa de certo Vigário amancebado. Temendo ver na rua os seus podres, o Reverendo ensinou ao pequeno uma gíria extravagante que baldaria qualquer indiscrição possível. Afirmou que se chamava Papa-hóstia e à amante deu o nome de Folgazona; gato era papa-rato, fogo era tributo. Esqueci o resto, e não consigo adivinhar por que razão tributo serviu para designar fogo. Seguros de que o rapaz não os denunciaria, o padre e a rapariga começaram a maltratá-lo.

Não se mencionou o gênero dos maus tratos, mas calculei que deviam assemelhar-se aos que meus pais me infligiam: bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas. Acostumaram-me a isto muito cedo — e em consequência admirei o menino pobre, que, depois de numerosos padecimentos, realizou feito notável: prendeu no rabo de um gato um pano embebido em querosene, acendeu-o, escapuliu-se gritando:

Levante, seu Papa-hóstia, 
Dos braços de Folgazona. 
Venha ver o papa-rato 
Com um tributo no rabo.

Falta meia dúzia de linhas, não chego a reconstituí-las. Sei que, tendo-se queimado roupas e móveis, a história finda assim, furiosamente:

Acuda com todos os diabos.

Esta obra de arte popular até hoje se conservou inédita, creio eu. Foi uma dificuldade lembrar-me dela, porque a façanha do garoto me envergonhava talvez e precisei extingui-la. Ouvindo a modesta epopéia, com certeza desejei exibir energia e ferocidade. Infelizmente não tenho jeito para violência.

Encolhido e silencioso, aguentando cascudos, limitei-me a aprovar a coragem do menino vingativo. Mais tarde, entrando na vida, continuei a venerar a decisão e o heroísmo, quando isto se grava no papel e os gatos se transformam em paparatos. De perto, os indivíduos capazes de amarrar fachos nos rabos dos gatos nunca me causaram admiração. Realmente são espantosos, mas é necessário vê-los à distância, modificados.


“Nuvens” é uma das narrativas que compõem o livro Infância, escrito e publicado por Graciliano Ramos, em 1945. A versão que reproduzimos aqui foi tirada da edição da editora Record, em sua 11ª edição, de 1976. O livro já recebeu uma análise especializada aqui no blog, escrita pelo autor Alexandre Fonseca, que discorre sobre o tema da narrativa memorialística.

“Infância”, de Graciliano Ramos: memória e transculturação narrativa

Texto de apresentação por Gabriel Reis Martins
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A memória, com seus funcionamentos e seus mistérios, é um tema que atravessa não só inúmeras obras da filosofia desde a antiguidade, como também se faz presente nos mais variados escritos da literatura. Quem não se lembra, por exemplo, dos três calhamaços que compõem Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, obra que, para além de sua beleza, funda inúmeros procedimentos narrativos, principalmente ligados à rememoração?

Pois bem, nesta publicação, gostaríamos de trazer um artigo que faz luz justamente na dimensão literária da memória – e, mais especificamente, da memória na literatura brasileira –, procurando entender de que maneira os autores frequentemente preenchem as lacunas, efeito natural do tempo, de suas lembranças. O artigo foi escrito pelo pesquisador de literatura brasileira Alexandre Fonseca, que analisa a obra Infância, de Graciliano Ramos, a partir de percepções extraídas do próprio livro e de considerações feitas por seus críticos.

Nós do Duras Letras agradecemos ao pesquisador pela redação do artigo e esperamos que suas palavras possam contribuir com a leitura de vocês, como contribuiu para a nossa!

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