A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector: a barata, O Mistério e o neutro

Já faz algum tempo que nós começamos a disponibilizar dois gêneros importantes aqui no Duras Letras: as resenhas e os artigos acadêmicos, em uma tentativa de aproximar ainda mais os leitores e leitoras de nossos colaboradores. E, justamente pensando nessa relação e nos gêneros, preparamos agora um tipo diferente de publicação, que se faz entre uma coisa e outra, entre a resenha e o artigo científico. Considerem, portanto, que esta publicação tem um quê de experimental e não deixem de comentar e curtir, pois será esse o nosso termômetro.

Ah, Clarice Lispector, escritora densa, mas extremamente poderosa e de um lirismo sem igual… Quem nunca se afogou em um de seus muitos livros? Você não? Bom, então o texto que disponibilizamos aqui oferece essa chance! Pode ser sua porta de entrada para a obra da autora brasileira. Produzido por Lorena Camilo a convite do Duras Letras, a resenha acadêmica “A (teo)poética em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector” propõe uma análise literária mais densa e demorada da escrita de Clarice e – sem se preocupar com os spoilers e emprestando uma boa dosagem do lirismo típico da obra clariciana – coloca sobre a lupa três elementos muito significativos do livro: a barata (ou o animal, em larga medida), O Mistério (o metafísico, o divino, o enigma) e o neutro (a suspensão das polaridades, o ponto entre uma coisa e outra).

Para baixar o texto e conferir, clique no botão abaixo:

Nós do Duras Letras agradecemos à querida Lorena, por dividir conosco e com vocês essa leitura tão instigante, e que funciona como uma entrada para a obra analisada. Esperamos que, como nós aqui do blog, vocês tenham aproveitado a leitura.

“Fractal”, um poema de Paulo Bittencourt

O pensamento como quebra-cabeças de vidro estilhaçado que me corta a cada movimento de peças e cujo encaixe é ilimitado para extrair dos meus dedos o pouco de sangue que lhes resta. Dar ao oceano a medida certa de urina para salgar-lhe o sexo reptício das areias submarinas cristalizar a rocha dos cotovelos animais e dos cancros-utensílios de ferir a alma alheia dos homens. Abandonar completamente a esperança ao penetrar no reino surdo das palavras sem nexo afogadas no mais brilhante desespero soturno da vida que brota no deserto.

A solidão infinita dos peixes que se esquecem de nadar.

A paixão infinita dos seres que se esquecem de amar.

A tração infinita dos bois que se esquecem de marchar.

Pintura de René Magritte (1926)

Eis a imagem fundamental do silêncio-tormento do tiroteio si-por-si entre flores sorridentes só para testar quem resta por último aberta e finalmente poder fechar-se em si vitoriosa do sofrimento. Matar não para conquistar enrijecer dominar submeter cativar embrutecer animalizar escarnecer mas para livrar.

Andar com a faca presa aos mil elos dentais que brotam da gengiva.

O olhar fixado na saliva que se acumula ao canto da boca última gota de mar que escorre violentamente sobre o queixo como feixe de azul que escancara o meio dia das dores e que faz brotar outras mil por debaixo da língua. Ceifar o corvo sem penas que paira fênix do mais virginal edênico paraíso celeste em que deuses e putas ejaculam seus orgasmos pernósticos.

E por fim fazer crescerem os prédios mais altos cujos cumes atingem as verdades sobre a pilha de corpos pútridos que produzem incontáveis litros do mais negro chorume. O paraíso titânico do vidro que escancara as tripas abrindo o esterno com máquinas tracionadas hidraulicamente deixam à vista crua do sol o último batimento cardíaco o último suspiro de morte.

Finalmente.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Conto – “O Palácio de Cristal”, de Paulo Bittencourt

Os portões do Palácio de Cristal estavam intactos, mesmo seus arredores estando completamente arruinados. Apesar de os escombros dificultarem a chegada até os arcos metálicos que circundavam a entrada, o fenômeno era misterioso de uma maneira tal que se me apresentava irresistível em seu convite. Com um pouco de esforço e levado pela curiosidade, cheguei frente à aldraba — um condor esculpido em prata, encardida pela poeira circundante e pelo efeito do tempo, cuja argola pendia do bico como uma presa inevitável.

Adentrei, e a impressão foi atravessar logo a barreira do tempo alguns séculos atrás. A disparidade era visível: o local estava impecavelmente limpo, o que ressaltou ainda mais o contraste com o lado de fora, que agora se apresentava para mim como um local longínquo, mesmo estando ainda há poucos metros da entrada já fechada. Mas para além mesmo da notável diferença nas condições do local, adentrá-lo reservou a meu corpo uma mudança súbita de estado — antes, o escuro tomava conta, e a criança chorava toda sua angústia em desespero, imprimindo sobre o escândalo sua energia; agora, o calor do peito da mãe acalentava, e é como se nada mais existisse nos arredores e a escuridão nunca houvera existido. Dentre as várias portas à minha vista, apenas uma delas estava entreaberta, e de lá emanava um parco feixe de luz capaz de iluminar parcialmente o trajeto até o local.

Mesmo com o coração em ritmo acelerado, estranhamente à medida que me aproximava daquele cômodo, aumentava em mim o sentimento de segurança. Não houve sequer hesitação ao lançar impávido a mão sobre a maçaneta e lentamente abrir a pesada porta de madeira ornada em metal ondulado, simulando colunas jônicas, ao melhor estilo neoclássico. Lá se viam duas poltronas de couro marrom separadas por uma pequena mesa de centro, à altura dos braços, em cuja superfície fixava-se um candelabro com espaço para até cinco velas de tamanho médio, apesar de apenas três estarem lá fixadas e uma acesa, tornando o ambiente mal iluminado, mas suficientemente visível aos olhos.

À cadeira esquerda assentava-se um homem de feição apagada, à sombra de seu chapéu estilo fedora, de abas curtas e levemente curvadas à esquerda, que impedia a luz da vela de fazer claros os contornos de seu rosto. Nenhum centímetro de pele ficava à vista: o fraque e as luvas, as calças e o sapato, cobriam finamente o corpo bem ajustado e de pernas cruzadas do silencioso sujeito. Sentei-me na poltrona à sua esquerda com a perna arqueada e levemente irrequieta. A cena era convidativa à conversa, pois me pus a falar, rompendo primeiro a barreira do silêncio:

“Atlas Turned to Stone” – Edward Burne-Jones (1878)

— O senhor aparentemente está no mais pleno conforto aqui, em seu isolamento, cercado pela estrutura intocável deste palácio… Confesso que ao adentrar seu recinto, um inédito sentimento de segurança se apossou de meu corpo e, sem hesitar ou sequer me preocupar com qualquer formalidade de etiqueta, cá me apresento ao seu lado. Diga-me, como posso chamar-lhe? A quem devo prestar meu mais sincero respeito? — Procurei dirigir as palavras com serenidade e num tom algo grave, demonstrando ao mesmo tempo seriedade e empatia, para não causar nenhum tipo de constrangimento ao ambiente tão pacífico que construíra o homem.

Silêncio absoluto. A sombra tampava perfeitamente a feição deste estático senhor, o que tornava sua presença algo espectral.

— Sei que aqui, sentado ao seu lado, nada mais para mim se parece necessário. Você está absolutamente cercado da mais bela salvaguarda. Absteve-se da vulnerabilidade atormentadora do exterior, que agora encontra-se em ruínas. As espessas paredes de vidro que o separam daquele universo sequer sofreram um arranhão, e a calma rígida deste quarto, do seu corpo em estrutura formosíssima, seduzem-me à semelhança de uma torre de marfim, dentro da qual não há a menor exposição às intempéries daquele caos. O senhor me desperta uma aura de tão cristalina serenidade; mesmo o caráter lúgubre deste cômodo interior, em contraste à arquitetura translúcida do palácio, sequer traduz a impressão de qualquer solidão. Creio que este é um dos motivos que me levaram à desinibição de assentar-me aqui, ao seu lado. — Esta fala respeitosa com o mesmo tom da anterior, ao mesmo tempo suscitava um possível diálogo sobre aquela condição tão perfeita ao passo que pretendi de forma tangente um certo pedido de desculpas por minha entrada abrupta e desavisada.

Novamente nenhuma reação ou som procedeu de minha tentativa de estabelecer a comunicação. Cruzei as pernas de forma bastante similar àquele senhor, e mesmo na situação de silêncio um tanto quanto constrangedora a olhos alheios, meu corpo ainda se sentia plenamente seguro diante daquela figura, sem nenhuma vontade de levantar-me e sair.

— Sabe… O senhor é que está certo. Não há razão para se aventurar naquela selvageria. O mundo nunca se mostra da maneira como esperamos. De forma geral, há sempre um receio oculto das mais imprevisíveis surpresas. Por mais que por vezes avistemos belas flores a desabrocharem, virginais, à sorte das florestas, as rédeas nunca parecem corresponder aos nossos comandos, e o trote ligeiro imprime uma passagem invencível. Se junto àquela flor deixo minha alma, jamais a recobro; sigo com o corpo fechado, em estado de vertigem.

Senti aquelas finas camadas da mais perfeita segurança se sedimentando lentamente e transformando-se, de súbito, num tremor em minha mão direita, que repousava até então no braço de couro da poltrona. O estranhamento se me apossou ao perceber que esse mesmo tremor que agora tomava conta do meu corpo também assolava o fino senhor ao meu lado. Era como se a longa exposição àquele colo de mãe perdesse seu calor pelo costume banal, e fosse necessário agora negá-lo friamente, somente assim tornando-se possível a avaliação da perda. Impetuosamente dirigi àquele sujeito minha mão, que nervosa e flácida se aproximava da sua. O toque frio rapidamente desfez à minha frente sua imagem, e o espelho que nos separava estilhaçou-se. O fraque e o chapéu, as calças e o sapato, vestiam-me perfeitamente, como se feitos sob medida. O último suspiro da vela não me permitiu identificar a forma do meu próprio rosto. Agora a escuridão toma conta deste Palácio de Cristal, intransponível.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Lirismo enquanto doença

Na nossa cultura, o conhecimento (segundo uma antinomia que Aby Warburg acabou diagnosticando como a “esquizofrenia” do homem ocidental) está cindido entre um pólo estático-inspirado e um pólo racional-consciente, sem que nenhum dos dois consiga reduzir integralmente o outro.

– Giorgio Agamben, em Estâncias  

No poema “Num monumento à aspirina” é possível tomar como mote o movimento metafórico entre o remédio e o sol. A predicação do primeiro caminhando em direção ao segundo, mas a partir de uma polifonia que alça o astro-rei para o papel de consciência formal, superego de uma tradição poética que através da lírica indisciplinou o consciente. Leio, portanto, este poema concentrado nas possibilidades metapoéticas da antilírica cabralina.

Antes, contudo, transcrevo-o abaixo, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo:

Num monumento à aspirina – João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

“O sol de um comprimido de aspirina”, exuberante sol, desvelador das formas, patrono de uma clareza cristalina, capaz de cegar o intuitivo, o dito natural. O sol é o pressuposto de uma operação que assume o criar enquanto oficina, é perigoso manipular máquinas em meio ao breu, lesões, acidentes e imprecisões deformam a forma.

O latejar do crânio, preambulo da aspirina, é anterior ao poema, o remédio demanda a doença e a doença faz par com o remédio. Exatamente pelo aflorar orgânico da imprecisão das formas, suas abstrações pretéritas ao nome, faz-se preciso um fármaco solar: consciência, método.

O poema articula-se enquanto o elogio do remédio “Principalmente porque, sol artificial”.  Elogio, pois, afirma-se contra o crescer vertiginoso da linguagem. O fármaco, como produto do espírito, formaliza a distância radical entre a espontaneidade e o labor. Ode, portanto, ao artifício.  

A antilírica prossegue na defesa do botânico contra o jardineiro, o método em recusa da inspiração, afinal, somente o sol em pílula é “(..) imune às leis da meteorologia”. A técnica poética, o cálculo, é apresentado como gesto ou prática capaz de se não abolir ao menos driblar a contingência romântica imposta pela inspiração.   

Convergem: a aparência e os efeitos 
da lente do comprimido de aspirina: 
o acabamento esmerado desse cristal, 
polido a esmeril e repolido a lima, 
prefigura o clima onde ele faz viver 
e o cartesiano de tudo nesse clima.

“Convergem: a aparência e os efeitos”, a luz, como lâmina, propõe, escolhe, recorta, qual sombra deve dilatar-se pelas páginas abertas da mente-oficina. Exatamente por ser conflito entre o doer e o anestesiar o momento ímpar, aquele de mais perene equilíbrio, é quando o fármaco se encontra como ao meio dia. Luz total, meridiana e penetrante, mas já antevendo o ascender das sombras, o porvir da lua. Nesse sentido, a aspirina surge enquanto emergência, objeto de uso crónico, espécie de reparo ou dique que impede que aquelas ondas fortes do oceano lírico roubem ainda mais areia à praia.

O poeta antilírico sofre como se fosse lírico pois contínua recebendo as ofensivas incoordenadas da linguagem, o sentir que precede a forma.  É como em um haikai de Matsuo Basho, que traduzo com honesta imprecisão a partir do inglês,

Nuvens 
Uma chance 
Desver a lua  
Clouds - 
a chance to dodge 
moonviewing. (Poema disponível aqui)

A perturbação aumenta a nitidez do objeto, nada melhor do que ocultar para acabar revelando. O interessante, no sentido romântico do termo, capacidade de ser gerador de interrogações, é o poema abordar uma ferida crónica, uma dor que passa somente para voltar mais forte e que por isso mesmo mantem o poeta atento, firme, na espera da derrota final contra a linguagem.

De outro lado, porque lente interna, 
de uso interno, por detrás da retina, 
não serve exclusivamente para o olho 
a lente, ou o comprimido de aspirina: 
ela reenfoca, para o corpo inteiro, 
o borroso de ao redor, e o reafina.

O remédio solar funciona tal qual lente, “Ela reenfoca, para o corpo inteiro”, cindindo interioridade e exterioridade em um todo formal, como se almejasse que a palavra fosse capaz de dar unidade ao todo.  “Lente interna”, pois no exercício de desembaraçar “o barroso de ao redor” reforça a capacidade ordenadora da linguagem poética.

A construção desse poema, suas imagens, me fazem pensar que existe algo de utópico, algo além do humanismo romântico que deu forma ao lirismo moderno. Só que no caso de Cabral eu apostaria que mais do que alcançar outro lugar, o utópico assume uma espécie de não geografia, a poesia mais interessada em ser dis-topíca do que lugar: somente nessa estância dissociada de endereço que a criação poderia assumir o rigor demiúrgico almejado pelo poeta.

Claramente: o mais prático dos sóis, 
o sol de um comprimido de aspirina: 
de emprego fácil, portátil e barato, 
compacto de sol na lápide sucinta.

Resenha – “O exército de um homem só”, de Moacyr Scliar

Um delírio, uma realidade

Confesso que meu interesse pela obra O exército de um homem só (1974), de Moacyr Scliar, surgiu por conta da canção homônima, presente no álbum O papa é pop (1990), da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii. Sendo um dos meus discos favoritos dessa banda, fui logo convidado à leitura com altas expectativas quanto ao conteúdo do livro, como se o compositor e vocalista, Humberto Gessinger, estivesse dialogando diretamente com a obra do escritor judeu, radicado em Porto Alegre, em suas composições.

Ao fim da leitura, consegui estabelecer de fato algumas relações entre canções e texto, mas são pontos que não vão muito longe e que talvez merecessem um texto mais longo e demorado. De qualquer modo, aos que não conhecem, deixo abaixo a música do(s) Engenheiros do Hawaii.

https://durasletras.com/wp-content/uploads/2022/07/01.-o-exercito-de-um-homem-so.mp3
Primeira faixa do álbum O papa é pop (1990) – Engenheiros do Hawaii

Resumo

Na história, acompanhamos alguns dos anos de vida de Mayer Guinzburg, um judeu de origem russa, excêntrico, que, vivendo no bairro do Bom Fim, em Porto Alegre, pretende criar “uma nova sociedade”, a Nova Birobidjan: uma comuna judaico-comunista em terras brasileiras e que é inspirada na Birobidjan russa, terra de judeus do antigo país soviético.

Tendo por parâmetro o socialismo de Stalin, mas tomando atitudes grotescas e muitas vezes antipopulares, nós assistimos Mayer fracassar diversas vezes, passeando entre ascensões econômicas e falências abruptas, alucinações e confrontos verdadeiros com as autoridades locais, a família, as amantes e os amigos.

O livro começa e termina no ano de 1970, com a suposta internação e morte do “Capitão Birobidjan”, apelido pelo qual Mayer é conhecido.

Bônus

Trata-se de um livro curto e muito dinâmico, ou seja, a leitura avança com velocidade e os problemas vencidos pelo personagem central vão rapidamente dando lugar a novos problemas e renovando nosso interesse pela narrativa. Além disso, é incrível estar em contato com aspectos da cultura judaica, tão presente no país, mas desconhecida por muitos. Por fim, acho interessantíssima a forma narrativa escolhida por Scliar, construída a partir de fragmentos intertextuais e múltiplos narradores, compondo, de fato, um exército de um homem só.

Ônus

Mas não são só flores esse exército! O aspecto fragmentário e as inúmeras maluquices do Capitão Birobidjan deixam algumas partes da obra muito confusas, exigindo que o leitor retome o fio da meada páginas atrás, sem saber quem está falando ou sobre o quê, ou que aceite a confusão toda da personagem e da forma narrativa. Existem também alguns trechos tediosamente longos dentro das alucinações de Guinzburg, que muitas vezes me pareceu um personagem antipático e insensível.

Comentário Final

Foi a primeira obra de Moacyr Scliar lida por mim e, em linhas gerais, eu gostei bastante. Como não tinha grandes expectativas quanto ao que encontraria em termos especificamente literários, já que minha leitura estava guiada pela canção do Engenheiros do Hawaii, topar com um estilo tão “pós-moderno” e com uma literatura de cultura judaico-brasileira foi gratificante. Aos que não sentem muita dificuldade com textos fragmentários, e que ao mesmo tempo se interessam por questões históricas ligadas ao socialismo e pela história de uma parcela do povo judeu no Brasil, recomendo fortemente a leitura de O exército de um homem só.

5 poemas de amor para o Dia dos Namorados

Ah, o Amor! Um dos temas mais explorados pela literatura e pelas outras artes – que vem nos acompanhando desde os tempos mais antigos, não deixando de alcançar também as inventivas ficções futuristas – sem jamais esgotar-se, contudo. No post de hoje, dedicado ao Dia dos Namorados, nós do Duras Letras separamos cinco poemas que trabalham o Amor, lhe dando cara e cabelo, nome e brilho, voz e silêncio. A seleção é composta apenas por poetas brasileiras e brasileiros, alguns do século XIX, outros do século XX. E sabemos, é claro, que muitas joias preciosas poderiam ter entrado nessa lista, sendo ela, como qualquer outra, incapaz de dar conta de uma temática tão vasta ou mesmo de apreender toda a chama do Amor, que devora os corações. De qualquer modo, esperamos que os poemas abaixo, se não servirem de chama, pelo menos despertem uma fagulha.

Poema sem título, de Álvares de Azevedo (1831-1852)

Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era a mais bela! Seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Poema Os cisnes, de Júlio Salusse (1878-1948)

A vida, manso lago azul algumas
vezes, algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós constantemente
um lago azul sem ondas, sem espumas.

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
matinais, rompe um sol vermelho e quente,
nós dois vagamos indolentemente,
como dois cisnes de alvacentas plumas.

Um dia um cisne morrerá, por certo:
quando chegar esse momento incerto,
no lago, onde talvez a água se tisne,

que o cisne vivo, cheio de saudade,
nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nade nunca ao lado de outro cisne!

Poema V, de Hilda Hilst (1930-2004)

Aos amantes é lícito a voz desvanecida. 
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido: 
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora, 
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês 
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo 
Ronda escurecida? 

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento 
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor 
Quando tudo anoitece? Antes lamenta 
Essa teia de seda que a garganta tece. 

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito 
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome 
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido 
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.

Poema Eros II, de Orides Fontela (1940-1998)

O amor não
vê

o amor não
ouve

o amor não 
age

o amor
não.

Poema Escritura, de Armando Freitas Filho (1940- )

No escuro eu não apuro 
o que de você existe entrelaçado 
neste muro: no escuro o que procuro
é a cruz do seu corpo, a cicatriz,
o punho, a palma no instante
da abertura, o espaço tão vazio
onde situo, a perda, a rutura,
a veia degolada, e gota a gota
o inútil rumo do meu sangue: 
– um derrame de ramos feito de sussurros –
e esta ferida que não cessa,
e que tanto me custa descrevê-la,
e quanto mais eu grito, mais ela fura:
– sanha, descostura de mim, – amor,
eu sangro aqui, sob a lâmina
da sua fala, assim, punhal,
palavra que não seguro e se enterra
até o fundo, até o cabo, em toda a treva, 
e na esplanada de areia da memória 
o que escrevo é somente um risco,
um corte que a lembrança recorda, 
ou este acorde que suas garras tocam.

Crônica – “O Túmulo de Eros”, de Paulo Bittencourt

Trilhar um caminho que consiga fazer encontrarem-se pensamento e escrita. Essa é a função a que me dedico quando me ponho, vez ou outra, frente a essa atividade. Sair de um emaranhado fragmentado e incompreensível de ideias e sensações amalgamadas para a organização funcional da comunicação. Não, não se pode restringir o estado bruto do sentimento à sua função comunicativa; isso seria diminuí-lo e poderia até retirar-lhe aquilo que guarda de mais elegante – seu caráter poético.

A tarefa da qual hoje me encarrego é talvez autorreflexiva, pois que se debruça justamente sobre essa transição. E sempre me atento a buscar um ponto palpável para que, daí, seja possível dar o primeiro passo rumo àquele espectro último, ainda invisível para a consciência. Todos nós, com maior ou menor regularidade, cedemos ao impulso da racionalização. Digo, é muito comum que tentemos colocar todo o pensamento em ordem, por vezes até criando diálogos imaginários dos quais sempre saímos “vitoriosos”, nessa fantasiosa missão retórica de persuasão. É o famoso argumento debaixo do chuveiro, que na prática nunca é repetido à perfeição.

A perfeição é atributo das coisas em seu estado imaginativo. Prender-se dessa maneira à expectativa idealizada pode representar para o caminho um obstáculo intransponível – a prisão em potencial que o pensamento representa para a ação. Se o desejo é a entrega a esse estado musical, primevo, de desorganização, em que sentimos à flor da pele a espontaneidade do prazer, a embriaguez essencial do corpo; a racionalização, o domínio da potência, minariam essa a força ativa, restringindo-a a seu estado de potência, sempre limitada à consciência. Eros jaz nas mais profundas esferas do pensamento; as correntes mais rígidas o impedem de manifestar sua atração – o próprio desejo. Um grande fantasma – essa dúvida permanente – acaba por se tornar o conforto tranquilizador contra o impulso erótico. Fonte de equilíbrio e sobriedade.

Creio fielmente que há em todos nós um pouco de Orfeu – devoção à embriaguez e à desordem, à música e à poesia. Mas o fim leva-nos a um estado tal de melancolia que o próprio selo dionisíaco se torna refém do Sol, e o destino não pode ser senão trágico, como o fora na mitologia. A maldição da eterna dúvida, a condição essencial de sempre estar à frente daquilo a que se quer dedicar, a quem se quer amar, para, ao final, virar-se e experimentar o desaparecimento do desejo. Seria possível atribuir a ele próprio o erro maldito, ou seria já desde o início plano punitivo dos deuses contra sua irreverência?

Já não consigo distinguir – e já não sei até que ponto vale a pena fazê-lo. A música não se apresenta mais senão sob o silêncio; as musas já não oferecem a sua graça para a poesia. Sinto-me completamente dominado pelo exercício da razão, de colocar todas as peças do quebra-cabeças em seus devidos lugares, mentalmente, e de me contentar com esse estado. De gozar desse estado. Essa parte essencial de nós em que se encontra a dança – eu a mereço, sou-lhe digno? Fato é que esse peso se encontra posto sobre mim, mas tenho apenas duas mãos…


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

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