Sobre presenças, ausências e a polêmica literária da vez

Nos últimos dias tem se discutido bastante sobre presenças e ausências, na polêmica literária da vez. Para quem não sabe do que estamos falando, recentemente a FUVEST divulgou uma lista com aquelas que serão as autoras lidas no seu vestibular do próximo triênio (2026-2028). Dizemos aqui “autoras” porque a lista é composta só por mulheres (a maioria delas já muito consagrada no meio literário), o que gerou um mal estar entre acadêmicos, que escreveram uma carta contra a fundação que organiza a prova, pedindo a mudança da lista.

Não estamos de acordo com a posição defendida pelos autores da carta, que aliás está assinada por nomes importantíssimos para os estudos de literatura no Brasil. Por isso, como não houve abaixo-assinado de acadêmicos contra as listas anteriores da FUVEST, decidimos deixar alguns pontos em que viemos pensando, para contribuir com o debate:

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Antes de qualquer coisa, é importante dar um google nas listas anteriores… Elas falam por si sós. (Deixamos no carrossel abaixo algumas das mais recentes. Apenas observem.)

Lista de 2016
Lista de 2017
Lista de 2020
Lista de 2021
Lista de 2022


Os dados podem ser sintetizados da seguinte forma: 2016 e 2017 (nenhuma autora); 2020, 2021 e 2022 (entra Helena Morley, em 2018, e em 2021, Cecília Meireles, apenas). Note-se a ausência absoluta de autoras não brancas antes de 2026. As quatro imagens finais são as novas listas (de 2026, 2027, 2028 e 2029).

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Uma lista composta apenas por autoras não é uma lista de literatura precária. Estamos falando de grandes nomes da literatura de língua portuguesa, que com frequência ganham menos destaque na historiografia literária que seus pares do sexo masculino. Não dá para comparar a projeção (de mercado e de estudos) entre a literatura escrita por homens e a escrita por mulheres: segundo a pesquisa de Regina Dalcastagnè, no Brasil, 72,7% dos autores são homens, 93,9% brancos.

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Vale a pena dar uma olhada na composição das listas de 2026 a 2028. São autoras como Rachel de Queiroz, Sophia de Mello Breyner Andersen, Lygia Fagundes Telles, Conceição Evaristo e Clarice Lispector, por exemplo, além de outras de menor projeção. Ou seja: não estamos falando de estreantes, mas de nomes consagrados e de muito prestígio no meio literário.

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Trazer uma lista de autoras, incluindo autoras negras, também significa trazer perspectivas diversas das que vêm sendo trazidas até aqui para o debate. Não é apenas reparação histórica ou representatividade, mas abertura para olhares e pontos de vista distintos no universo da literatura.

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Em tempo, parece preciso dizer: o fato de existir num livro uma grande personagem (Medeia, Antígona, Julieta, Hedda Gabler, Anna Karenina ou Capitu) não faz do autor do livro uma mulher. Por isso, não traz a perspectiva feminina, destacada no tópico anterior. Outra coisa, ser ou não feminista também não resolve, ainda que seja, claro, um ponto positivo. (Ou seja, o apelo a Machado e Capitu não dá conta das ausências no quadro geral).

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De qualquer forma, Machado estará de volta à lista já em 2029, junto com Érico Veríssimo e Luís Bernardo Honwana, além das autoras que ainda estiverem na composição do triênio. E nesse meio tempo, podem estar tranquilos, os grandes nomes do cânone não deixarão de ser lidos nos muitos outros espaços em que continuam sendo regra.

Aliás, serão só três anos das tais listas apenas com autoras. Quantos foram os anos com duas, uma ou nenhuma mulher na lista? A pergunta não é retórica: tentamos calcular e não conseguimos, já que são muitos.

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É sintomático que uma lista só de autoras cause tanto rebuliço, quando a maior parte das disciplinas da graduação em Letras (sem falar na estilística do Ensino Médio) é composta quase exclusivamente por autores homens (à exceção, claro, de Clarice, que aparece como menção honrosa ao gênero, para não dizer que não falamos das flores).

Por que essas listas incomodam tanto?

Sabemos: vão falar da literatura em perigo, da sociologização da literatura, da literatura como documento, da importância irrevogável de determinados nomes (tão seguramente indispensáveis quanto dispensáveis os das autoras até então ausentes), ou da militância errática, da injustiça com os autores (que de nada têm culpa), dos meios inadequados de buscar reparação, da perda do valor da literatura em si mesma, da pouca importância do gênero e da cor de quem escreveu (pois “o que importa é a qualidade”), dos ressentimentos (Harold Bloom mandou lembranças), etc etc etc.

Mas tudo isso está aí há muito tempo: a literatura está “em perigo” desde que nasceu. E tem se mantido pelo desejo de quem a ama. Por isso, repetimos a pergunta: por que tanto incômodo?

Às vezes, é preciso sustentar o mal-estar para continuar caminhando. 

A passos lentos, mas firmes, caminhamos. Avante.

Três poemas de Henriqueta Lisboa

Desde que entrei na Faculdade de Letras da UFMG e tomei conhecimento do Acervo de Escritores Mineiros (AEM), criei um caso antigo com alguns dos autores e autoras que estão naquela casa. O espaço, uma mistura de museu, biblioteca, galeria de arte e arquivo, ficava àquele tempo na Biblioteca Central da universidade, sendo aberto para visitações do público em geral. Em um dos passeios que fiz lá, conheci Henriqueta Lisboa.

Melhor dizendo: aprendi seu nome, pois levaria uns anos para entrar em contato com a obra que a escritora produziu. Lembro-me agora de que chamou minha atenção àquela época o fato de ser um dos maiores acervos do AEM: com livros, cartas, objetos, mobília etc., tudo da autora. Também fiquei encantado com o fato de um dos meus professores, Reinaldo Marques, estar então organizando a publicação da obra completa de Henriqueta Lisboa, o que colocava toda aquela pilha de papeis em um formato condensado e mais acessível, que podia levar para casa.

Henriqueta Lisboa. Reprodução Arquivo AEM.

Isso tudo foi em 2016… Mas só agora, ao fim de 2023, adquiri a obra reunida da autora. 

Trata-se de uma box, organizada em três volumes e publicada pela Editora Peirópolis. Tendo saído da esfera do privado para o público, quando o acervo chegou à UFMG, agora, com a organização de Reinaldo Marques e Wander Melo, a obra de Henriqueta faz o caminho contrário e volta, do público para o privado. 

É com a intenção de entrar nessa equação, que não só gravei um vídeo sobre a obra completa de Henriqueta Lisboa, comentando dois de seus textos, como também compartilho aqui no Duras Letras três poemas da autora.

Serenidade

Serenidade. Encantamento.
A alma é um parque sob o luar.
Passa de leve a onda do vento,
fica a ilusão no seu lugar.

Vem feito flor o pensamento,
como quem vem para sonhar.
Gotas de orvalho. Sentimento.
Névoas tenuíssimas no olhar.

Tombam as horas, lento e lento,
como quem não nos quer deixar.
Êxtase. Vésperas. Advento.

Ouve! O silêncio vai falar!
Mas não falou…Foi-se o momento…
E não me canso de esperar”.

Convite

Eu sou amiga dos que sofrem.

Aproxima-te do meu coração, Amado.
Amado, conta-me teus segredos.
Onde nasceu a tristeza que nos teus olhos mora,
que causa tem a palidez que unge teus lábios
e esse tremor que tuas mãos comunicam às minhas?

Por que não vens, à hora confidencial do crepúsculo
sobre o banco de pedra esquecido entre as árvores,
junto à fonte chorosa
e os afagos do vento perfumado de flores,
derramar no meu coração
as palavras reveladoras
que me fariam participar da tua amargura,
do teu desespero,
ou simplesmente do teu cansaço de viver?…

Quando desfalecesse a tua voz em sussurro
e o luar surgisse acariciando o céu em penumbra,
talvez, Amado, talvez sorrisses,
vendo aflorar nos meus olhos noturnos
a lua pequenina da lágrima.

Prisioneira da noite

Eu sou a prisioneira da noite.
A noite envolveu-me nos seus liames, nos seus musgos,
as Pelas atiraram-me poeira nas pestanas,
s dedos do luar partiram-me os fios do pensamento,
os ventos marinhos fecharam-se ao redor de minha cintura.

Quero os caminhos da madrugada e estou presa,
quero fugir aos braços da noite e estou perdida.
Onde fica a distância? Dizei-me, ó Peregrinos,
K e. fica a distância da qual me chegam misteriosos apelos?
Alguém me espera, alguém me esperará para sempre,
porque sou a prisioneira da noite.

A noite me adormenta com suas flautas esflorando veludos de pêssego,
a noite me enerva com suas grandes corolas desmaiadas nos caules,
vejo madressilvas com os pequenos dentes de pérola sorrindo enlaçadas aos troncos fortes,
e o frio da noite é um desejo de faces aconchegadas,
e há tepidez nas grotas verde-negras, tão próximas… 

Oh forças para caminhar! Forças para vencer o inebriamento da noite,
forças para desprender-me da areia que canta sob meus pés como cordas de violino,
forcas para pisar a relva macia e tenra com suas gotas de sereno,
forças para desvencilhar-me dos afagos numerosos do vento!

Na noite não posso ficar como uma rosa pendida 
porque o homem solitário viria tomar-me pela mão
imaginando que sou a que procura amor.

Na noite não ficarei com a túnica esvoaçante e os cabelos em desordem,
porque uma criança poderia pensar que sou a louca sem pouso,
na noite não, porque a velhinha trêmula viria perguntar-me se acaso sou a sua filha desaparecida.

Oh! Quem me ensina os caminhos da madrugada?
Por que não se acendem agora, sim, agora, os candelabros das igrejas?
Por que não se iluminam as casa onde há noivas felizes?
Por que de tantas estrelas no céu ao menos uma não se desprende
para vir pousar no meu ombro como um sinal de esperança?

Tenho um encontro marcado há longo, longo tempo…

Mas não chegarei porque sou a prisioneira da noite.

Conto – “A usina atrás do morro”, de José J. Veiga

Apresentação

Gabriel Reis Martins

Recentemente, lendo o estudo Alegorias da derrota, de Idelber Avelar, eu me reencontrei com José J. Veiga. Foi um reencontro bem feliz e impressionante, porque, da primeira vez que li o autor goianiense, achei tudo muito fora de lugar, e não conseguia reconhecer aquela beleza e qualidade que amigos e colegas comentavam haver na obra dele. Felizmente, Idelber Avelar conseguiu criar um fio condutor que me ligou à obra de J. Veiga, fio que pude seguir ao reler Os cavalinhos de Platiplanto (1959), primeira obra publicada do autor.

O conto que disponibilizamos aqui – “A usina atrás do morro” – é um dos doze que compõe essa coletânea de 1959. Escolhi esta, porque me deixou realmente tocado seu caráter antecipador, oracular. Digo isso pensando que “A usina atrás do morro”, mesmo que tenha sido publicado alguns anos antes da ditadura militar, se converteu em uma alegoria para o regime e, mais especificamente, para a situação nacional após a proclamação do AI-5. Com isso, a crítica que parece simples resistência à modernização (com certeza, e muitas vezes, violenta) se transformou em uma representação simbólica da derrota e da derrocada do país. 

Abertura para o estrangeiro, renovações, segredos, “traições”, perseguições… Tudo isso acontece em “um lugarzinho no meio do nada”, um tipo de vila que, um dia, passa a conviver com a presença de uma usina, fábrica, base militar (ou seja lá o que é que seja) que vai estrangulando e modificando o espaço.

Feitas essas breves considerações, segue abaixo o conto completo.

A usina atrás do morro

José J. Veiga

Lembro-me quando eles chegaram. Vieram no caminhão de Geraldo Magela, trouxeram uma infinidade e caixotes, malas, instrumentos, fogareiros e lampiões, e se hospedaram na pensão de D: Elisa. Os volumes ficaram muito tempo no corredor, cobertos com uma lona verde, empatando a passagem.

De manhãzinha saíam os dois, ela de culote e botas e camisa com abotoadura nos punhos, só se via que era mulher por causa do cabelo comprido aparecendo por debaixo do chapéu; ele também de botas e blusa cáqui de soldado, levava uma carabina e uma caixa. de madeira com alça, que revezavam no transporte. Passavam o dia inteiro fora e voltavam à tardinha, às vezes já como o escuro. Na pensão, depois do jantar, mandavam buscar cerveja e trancavam-se no quarto até altas horas. D. Elisa olhou pelo buraco da fechadura e disse que eles ficavam bebendo, rabiscando papel e discutindo numa língua que ninguém entendia.

Todo mundo na cidade andava animado com a presença deles, dizia-se que eram mineralogistas e que tinham vindo fazer estudos para montar uma fábrica e dar trabalho para muita gente, houve até quem fizesse planos para o dinheiro que iria ganhar na fábrica; mas S tempo passava e nada de fábrica, eram só aqueles passeios todos os dias pelos campos, pelos morros, pela beira do rio. Que queriam eles, que faziam afinal?

Encontrando-os um dia debruçados na grade da ponte, apontando qualquer coisa na pedreira lá embaixo, meu pai cumprimentou-os e puxou conversa; eles olharam-no desconfiados, viraram as costas e foram embora. Meu pai achou que talvez eles não entendessem a língua, mas depois vimos que a explicação não servia: quando encontraram o preto Demoste de volta do pasto com a mula do padre eles conversaram com ele e perguntaram se lobeira era fruta de comer. E como poderiam viver na pensão se não conhecessem um pouco da língua? Por menos que falassem, tinham que falar alguma coisa.

O que me preocupou desde o início foi eles nunca rirem. Entravam e saíam da pensão de cara amarrada, e o máximo que concediam a D. Elisa, só a ela, era um cumprimento mudo, batendo a cabeça como lagartixas. Aprendi com minha vó que gente que ri demais, e gente que nunca ri, dos primeiros queira paz, dos segundos desconfie; assim, eu tinha uma boa razão para ficar desconfiado.

Com o tempo, e vendo que a tal fábrica não aparecia — e não sendo possível indagar diretamente, porque eles não aceitavam conversa com ninguém — cada um foi se acostumando com aquela gente esquisita e voltando a suas obrigações, mas sem perde-los de vista. Não sabendo o que eles faziam ou tramavam no sigilo de seu quarto ou no mistério de suas excursões, tínhamos medo que o resultado, quando viesse, pudesse não ser bom. Vivíamos em permanente sobressalto. Meu pai pensou em formar uma comissão de vigilância, consultou uns e outros, chegaram a fazer uma reunião na chácara de Seu Aurélio Gomes, do outro lado do rio, mas Padre Santana pediu que não continuassem. Achava ele que a vigilância ativa seria um erro perigoso; supondo-se que os tais descobrissem que estava havendo articulações contra eles, o que seria de nós que nada sabíamos de seus planos? Era melhor esperar. Naquele dia mesmo ele ia iniciar uma novena particular, para não chamar atenção, e esperava que o maior número possível de pessoas participasse das preces. Na sua opinião, essa era a providência mais acertada no momento.

Estêvão Carapina achou que um bom passo seria interceptar as cartas deles e lê-las antes de serem entregues, mas isso só podia ser feito com a ajuda do agente André Góis. Consultado, André ficou cheio de escrúpulos, disse que o sigilo da correspondência estava garantido na Constituição, e que um agente do correio seria a última pessoa a violar esse sigilo; e para matar de vez a sugestão falou em duas dificuldades em que ninguém havia pensado: a primeira era que, nos dias de correio, só um dos dois saía em excursão, o outro ficava de sobreaviso para ir correndo à agência quando o carro do correio passasse; a segunda dificuldade era que as cartas com toda certeza vinham em língua que ninguém na cidade entenderia. Que adiantava portanto abrir as cartas? Era mais um plano que ia por água abaixo.

Sem dúvida o perigo que receávamos nesses primeiros tempos era mais imaginário do que real. Não conhecendo os planos daquela gente, e não podendo estabelecer relações com eles, era natural que desconfiássemos de suas intenções e víssemos em sua simples presença uma ameaça a nossa tranquilidade. Às vezes eu mesmo procurava explicar a conduta deles como esquisitice de estrangeiros, e lembrava-me de um alemão que apareceu na fazenda de meu avô de mochila às costas, chapéu de palha e botina cravejada. Pediu pouco e foi ficando, passava o tempo apanhando borboletas para espetar num livro, perguntava nomes de plantas e fazia desenhos delas num caderno. Um dia despediu-se e sumiu. Muito tempo depois meu avô recebeu carta dele e ficou sabendo que era um sábio famoso. Não podiam esses de agora ser sábios também? Talvez estivéssemos fantasiando e vendo perigo onde só havia inocência.

Imaginem portanto o meu susto e a minha indignação com o que me aconteceu uma tarde. Eu tinha ido à pensão receber o dinheiro de uns leitões que minha mãe havia fornecido a D. Elisa e na saída aproveitei a ocasião para dar uma olhada nos caixotes empilhados no corredor. Levantei uma beirada da lona e vi que eram todos do mesmo tamanho e com os mesmos letreiros que não entendi. Ia puxando novamente a lona quando notei uma fenda em um deles, e como não passava ninguém no momento resolvi levar mais longe a minha inspeção. Abri o canivete e estava tentando alargar a fenda quando senti o corredor escurecer. Pensei que fosse a passagem de alguma nuvem, como às vezes acontece, e esperei que a claridade voltasse. Voltou mas foi uma mão pesada agarrando-me pelo pescoço e jogando-me contra a parede. O puxão foi tão forte que eu bati com a cabeça na parede e senti minar água na boca e nos olhos. Antes que a vista clareasse, um tapa na cabeça do lado esquerdo, apanhando o pescoço e a orelha, mandou-me de esguelha pelo corredor até quase a porta da rua. Apoiei-me na parede para me levantar, e um pontapé nas costelas jogou-me esparramado na calçada. Erguendo a cabeça ralada do raspão na laje, vi o homem de culote e blusa cáqui em pé na porta, com as mãos na cintura, olhando-me mais vermelho do que de natural. Com a cabeça tonta, o ouvido zumbindo e o corpo doendo em vários lugares, e o canivete perdido não sei onde, não me senti com disposição para reagir. Apanhei umas coisas caídas dos bolsos, bati o sujo da roupa e desci a rua mancando o menos que pude.

Felizmente não passava ninguém por perto. Se alguém soubesse da agressão haveria de querer saber o motivo, e como poderia eu contar tudo e ainda esperar que me dessem razão?

Para não chegar em casa com sinais de desordem no corpo desci até o rio, lavei o sangue dos ralões do punho e da testa e o sujo do paletó e dos joelhos da calça, enquanto pensava um plano eficiente de vingança. Uma pedrada bem acertada na cabeça, ou uma porretada de surpresa, resolveria o meu caso. Ele não perderia por esperar.

Mas eu estava enganado quando supunha que ninguém tinha visto. Em casa encontrei mamãe aflita. Meu pai tinha saído à minha procura, armado com a bengala de estoque. Fiquei sabendo então que D. Lorena costureira tinha visto tudo de sua janela do outro lado da rua e fora correndo contar à vizinha dos fundos — e a notícia espalhou-se como fogo em capim seco. Foi por isso que meu pai, ao dobrar a primeira esquina, foi cercado por um grupo de amigos que não o deixaram prosseguir. Achavam todos, e com razão, que ele não devia agir enquanto não me ouvisse. Tive então que contar tudo, mas achei bom não dizer que tinha sido apanhado escarafunchando o caixote; disse apenas que tinha dado uma palmada nele por cima da lona.

Isso trouxe uma longa discussão sobre o possível conteúdo dos caixotes, e concordamos que devia ser qualquer coisa muito preciosa, ou muito delicada, a ponto de uma palmada por fora deixar o dono alarmado. Mas que coisa poderia ser que preenchesse essa ampla hipótese?

Meu pai achou que estávamos perdendo tempo em aceitar a situação passivamente, enquanto em algum lugar, sabe-se lá onde, gente desconhecida podia estar trabalhando contra nós; era evidente que aqueles dois não agiam sozinhos. As cartas que recebiam e os relatórios que mandavam eram provas de que eles tinham aliados. O que devíamos fazer sem demora, propôs meu pai, era procurar o delegado ou o juiz e pedir que mandasse abrir os caixotes, devia haver alguma lei que permitisse isso. Se não fosse tomada uma providência, às coisas iriam passando de mal a pior, e um dia quando acordássemos nada mais haveria a fazer.

O delegado, como sempre, estava fora caçando. O juiz foi compreensivo, mas disse que dentro da lei nada se podia fazer, e acrescentou, mais aconselhando que perguntando:

— Naturalmente não vamos querer sair fora da lei, não é verdade?

Quanto à agressão, se meu pai quisesse fazer uma queixa, o delegado teria que abrir inquérito — desde que houvesse testemunhas.

Como a única pessoa que tinha visto parte do incidente era D. Lorena, meu pai foi o primeiro a reconhecer que contar com ela seria perder tempo. D. Lorena era dessas pessoas que têm medo até de enxotar galinha. No inquérito, na presença do agressor, ela cairia em pânico e juraria nada ter visto. Assim, a despeito de toda atividade continuávamos sem um ponto de partida.

De repente a situação começou a evoluir com rapidez, e fomos percebendo para onde éramos levados. O primeiro a se passar para o outro lado foi o carpinteiro Estêvão. Estêvão tinha uma chácara do outro lado do rio, atrás do morro de Santa Bárbara. Quando os filhos chegaram à idade de escola ele alugou a chácara a Seu Marcos Vieira, escrivão aposentado, e veio morar na cidade. Seu Marcos vinha insistindo com Estêvão para vender-lhe a chácara, mas Estêvão recusava, dizia que quando os filhos estivessem mais crescidos deixaria o ofício e voltaria para a lavoura.

Pois não é que Estêvão achou de vender a chácara para aqueles dois, num negócio feito em surdina? Meu pai disse que o procedimento dele não tinha explicação, nem pela lógica nem pela moral. Houve mistério na transação, isso era fora de dúvida. Apertado um dia por meu pai, Estêvão respondeu com estupidez, disse que fez o negócio porque a chácara era dele e ele não tinha tutor; depois, vendo o espanto de meu pai, seu amigo de tanto tempo, caiu em si e disse:

— Vendi porque não tive outro caminho, Maneco. Não tive outro caminho.

Quando meu pai insistiu por uma explicação mais positiva, ele abriu a boca para falar, mas apenas suspirou, virou as costas e foi-se embora.

Seu Marcos teve que se mudar a bem dizer a toque de caixa. Quem fez a exigência foi o próprio Estêvão, que já estava servindo como uma espécie de procurador dos compradores. Seu Marcos pediu um mês de prazo, queria colher o milho e o feijão e precisava de calma para arranjar uma casa em condições na cidade. Estêvão respondeu que não estava autorizado a conceder tanto tempo, que uma semana era o máximo que podia dar. Quanto às plantações, Seu Marcos não se incomodasse, os compradores indenizariam o que ele pedisse; e se Seu Marcos tivesse dificuldade em encontrar casa, poderia mudar provisoriamente para a do próprio Estêvão, que ia para a chácara ajudar os compradores nas obras.

Todo mundo reprovou o procedimento dos compradores, e mais ainda o de Estêvão, que na qualidade de antigo proprietário e amigo poderia ter dito uma palavra em favor do velho Marcos; mas Estêvão era agora todo do outro lado, e nada mais se poderia esperar dele. Meu pai achou que não se devia dizer mais nada na frente de Estêvão, pois não seria de admirar que ele estivesse contratado para espião. Se quiséssemos nos organizar para a resistência, convinha não esquecer essa hipótese.

No mesmo dia que Seu Marcos, triste e ressentido, arriou seus pertences na casa desocupada por Estêvão, o caminhão de Geraldo Magela roncou na subida da ponte levando os estrangeiros na boleia e o carpinteiro Estêvão atrás, em cima da carga. Ao vê-los passar em nossa porta, meu pai virou o rosto, enojado; disse que nunca vira um espetáculo mais triste, um homem de bem como Estêvão, competente no seu ofício, largar tudo para acompanhar aquela gente como menino recadeiro.

Mas não deixou de ser um alívio vê-los fora da cidade. Agora podíamos novamente frequentar a pensão de D. Elisa, conversar com os hóspedes, saber quem chegava e quem saia, sem necessidade de falar baixo nem de nos esconder.

Durante muitos dias, quase um mês, não vimos aqueles dois nem tivemos notícias deles. Estêvão de vez em quando vinha à cidade, mas não sei se por influência dos patrões, ou se por vergonha, ou remorso, não conversava com ninguém; fazia o que tinha de fazer, ia ao correio apanhar a correspondência, sempre uns envelopes muito grandes, e voltava no mesmo dia. Nem passava mais por nossa porta, que seria o caminho natural; dava uma volta grande, passando pela rua de cima.

Outro que também sumiu foi Geraldo Magela, parece que agora estava trabalhando só para os estrangeiros. Quando íamos pescar bem em cima no rio, ou apanhar cajus no morro, podíamos ouvir o ronco do caminhão trabalhando do outro lado. Uma vez eu e Demoste saímos escondidos para apurar o que estava se passando na chácara, mas quando chegamos na crista do morro achamos melhor não continuar. Haviam levantado uma cerca de arame em volta da chácara, muito mais alta do que as cercas comuns, e de fios mais unidos, e vimos sentinelas armadas rondando. Ficamos de voltar outro dia levando a marmota do padre, mas nem isso chegamos a fazer porque soubemos que o André gaguinho, que andara apanhando lenha do outro lado, fora alvejado com um tiro de sal na popa.

Um dia correu a notícia de que o casal não estava mais na chácara, havia subido o rio à noite num barco a motor. Devia ser verdade, porque Geraldo Magela voltou a aparecer na cidade. Achamos que agora, com ele ali à disposição íamos afinal saber o que se passava na chácara de Estêvão. Geraldo sempre fora amigo de todos, deixava a meninada subir no caminhão, trazia encomendas para todo mundo, e quando o padre organizava passeios para os alunos de catecismo, fazia questão de contratar Geraldo, não aceitava oferecimento de nenhum outro, nem que tivéssemos de esperar dias quando calhava de Geraldo estar viajando.

Mas não levamos muito tempo para descobrir que Geraldo também era agora do outro lado. Ele que fora trabalhador e prestativo, sempre preocupado em poupar a mãe — desde que comprara o caminhão exigiu que D. Ritinha deixasse de lavar roupa para fora — agora ficava horas no bilhar jogando ou bebendo cerveja e zombando dos pexotes. Quanto às obras que estavam sendo feitas na chácara, ele não dizia coisa com coisa. A meu pai ele disse que estavam apenas armando um pari, a outro disse que estavam instalando uma olaria. Quando Seu Marcos o interpelou com energia, ele deu uma resposta malcriada:

— Vocês esperem. Vocês esperem que não demora.

E ficou olhando para Seu Marcos e assoviando, uma coisa que se D. Ritinha visse haveria de chorar de desgosto.

Vendo-o ali bebendo, fazendo gracinhas, faltando ao respeito com os mais velhos, e dando cada hora uma resposta, achei que ele estava apenas querendo fazer-se de importante, de sabedor de coisas misteriosas, talvez pelo desejo de imitar os patrões. Foi essa também a opinião de Padre Santana quando soube da resposta de Geraldo a Seu Marcos.

Foi mais ou menos nessa época que D. Ritinha apareceu lá em casa para desabafar com mamãe. Começou rodeando, falando nas mudanças que estava havendo em toda parte, e entrou no capítulo do procedimento dos filhos quando crescem.

— Para muita gente, ter filhos resulta num castigo, D. Teresa — disse ela. — Os desgostos acabam sendo maiores do que as alegrias.

Vi que mamãe ficou embaraçada, com medo de dizer alguma coisa que pudesse magoar D. Ritinha. Por fim, disse vagamente:

— Os antigos diziam que filho criado, trabalho dobrado.

— Muito certo, D. Teresa. Veja o meu Geraldo. Um rapaz bem criado, inveja de muitas mães; de repente, esquece tudo o que eu e o pai lhe ensinamos.

Mamãe procurou consolá-la dizendo que o procedimento de Geraldo devia ser resultado de uma influência passageira. A culpa era daqueles dois, que deviam estar enfiando coisas na cabeça dele; quando ela menos esperasse, ele mesmo ia abrir os olhos e arrepender-se. D. Ritinha tivesse paciência e confiasse em Deus. AÍ D. Ritinha caiu no choro, disse que a culpa era dela, que o aconselhara a ir trabalhar para aquela gente. Ele não queria; mas ela insistira porque o ordenado era bom, até falara áspero com ele. Agora estava aí o resultado. De que adiantava o dinheiro sem a consideração do filho?

Quando mamãe começou a chorar também, eu fiquei meio encabulado e saí sem destino.

Ao passar pelo chafariz encontrei Geraldo divertindo-se com um gato que havia jogado dentro do tanque. O bichinho esgoelava e pelejava para sair, e cada vez que ia chegando à beirada Geraldo cercava e dava-lhe um papilote na orelha. Fiquei olhando, com medo de salvar o pobrezinho e ter de brigar com Geraldo. Mas quando o pobrezinho veio subindo no ponto onde eu estava, e Geraldo gritou para eu cercar, eu estendi o braço e apanhei-o pela nuca, como fazem as gatas. Pensei que Geraldo ia querer tomá-lo, mas ele apenas olhou e foi-se embora dando gargalhadas e imitando o miado do gato, parecia coisa de louco.

Geraldo sabia o que estava dizendo quando mandou Seu Marcos esperar, porque um belo dia chegaram os caminhões. Chegaram de madrugada, e eram tantos que nem pudemos contá-los. A nossa lavadeira, que morava no alto do cemitério, disse que desde as três da madrugada eles começaram a descer um atrás do outro de faróis acesos. Atravessaram a cidade sem parar, descendo cautelosamente as ladeiras, sacudindo as paredes das casas nas ruas estreitas, passaram a ponte e tomaram o caminho da chácara como uma enorme procissão de vaga-lumes.

Daí por diante não tivemos mais sossego. Desde que amanhecia até que anoitecia eram aqueles estrondos atrás do morro, tão fortes que chegavam a chacoalhar as panelas nas cozinhas apesar da distância, nas paredes não ficou um espelho inteiro. Mamãe vivia rezando e tomando calmante, não queria mais que eu fosse além da ponte em meus passeios. Achei que fosse receio exagerado dela, mas verifiquei depois que a proibição era geral, de todas as mães.

Geraldo andava ocupado novamente lá do outro lado, e quando aparecia na cidade era guiando uns caminhões enormes, de um tipo que ainda não tínhamos visto, e sempre com uns sujeitos esquisitos na boleia, uns homens muito altos e vermelhos, os braços muito cabeludos aparecendo por fora da manga curta da camisa. Ficavam olhando para tudo com olhos espantados, entortavam o pescoço até o último grau para olhar a gente quando o caminhão já ia lá adiante. Paravam no botequim ou no armazém e metiam caixas e mais caixas de cerveja para dentro do caminhão, latas grandes de bolachas, caixotes de cigarros. Uma vez levaram todo o sortimento de cigarros da praça e os fumantes tiveram que picar fumo e enrolar palha durante quase um mês.

Quando os caminhões paravam em alguma casa de comércio e nós fazíamos grupos de longe para olhar, Geraldo ficava na frente fazendo palhaçadas para nos provocar. Seu Marcos disse que ele havia perdido toda a compostura, e se não fosse por causa de D. Ritinha, era o caso de se dar uma surra nele.

E toda noite agora era aquele ruído tremido que vinha de trás do morro, parecia o ronronar de muitos gatos. Não dava para incomodar porque não era forte, mas assustava pela novidade. De dia não o ouvíamos, talvez por causa dos barulhos da cidade, mas quando batia a Ave-Maria, e todo mundo cessava o trabalho, lá vinha ele. Então a gente olhava para os lados da chácara e via um enorme clarão no céu, como o de uma queimada vista de longe, só que não tinha fumaça.

Mas a grande surpresa foi quando Geraldo veio à cidade montado numa motocicleta vermelha. Não vinha mais de roupa cáqui de trabalho e botina de vaqueta, mas de parelho de casimira azul-marinho, sapatos de verniz e gravata. Parou no bilhar, cumprimentou todo mundo e convidou para tomarem cerveja. Uns aceitaram, outros ficaram de longe, ressabiados. Ele disse que não havia motivo para malquerenças, reconhecia que havia se excedido nas brincadeiras, mas não fizera nada com a intenção de ofender. Os tempos agora eram outros, acabaram-se as brincadeiras. Ele estava ali como amigo para dar uma notícia que devia contentar a todos. AÍ os mais desconfiados foram se chegando também, Geraldo mandou uns dois ou três saírem na porta e convidarem quem mais encontrassem por perto. Num instante o salão estava cheio, quem estava jogando parou, havia gente até do lado de fora debruçada nas janelas.

Quando viu que não cabia mais ninguém, Geraldo subiu numa das mesas e comunicou que fora nomeado gerente da Companhia e que estava ali para contratar funcionários. Os ordenados eram muito bons, havia casa para todos, motocicletas para os homens, bicicletas para as crianças e máquinas de costura para as mulheres. Quem estivesse interessado aparecesse no dia seguinte ali mesmo para assinar a lista.

Como ninguém estava preparado para aquilo, ficaram todos ali apalermados, se entreolhando calados. Quando alguém se lembrou de pedir explicações sobre as atividades da Companhia, Geraldo já ia longe na motocicleta vermelha.

Após muita confabulação ali mesmo no bilhar, depois nas muitas rodas formadas nos pontos de conversa da cidade, e finalmente nas casas de cada um, muitos se apresentaram no dia seguinte, acredito que a maioria apenas para ter uma oportunidade de saber o que se passava na chácara. Já no segundo dia os caminhões vieram buscá-los, e foi a última vez que os vimos como amigos: quando começaram a aparecer novamente na cidade, ninguém os reconhecia mais. Entravam e saíam como foguetes, montados em suas motocicletas vermelhas, não paravam para falar com ninguém.

Essas máquinas eram uma verdadeira praga. Ninguém podia mais sair à rua sem a precaução de levar uma vara bem forte com um ferrão na ponta para se defender dos motociclistas, que pareciam se divertir atropelando pessoas distraídas. Nem os cachorros andavam mais em sossego, quase todos os dias a Intendência recolhia corpos de cachorros estraçalhados. E quanta gente morreu embaixo de roda de motocicleta! O caso que mais me impressionou foi o de D. Aurora. Um dia eu ia atravessando o largo com ela, carregando um cesto de ovos que ela havia comprado lá em casa para a festa do aniversário do padre, quando vimos dois motociclistas que vinham descendo emparelhados. Já sabendo como eles eram, D. Aurora atrapalhou-se, correu para a frente, depois quis recuar, e um deles separou se do outro e veio direito em cima dela, jogando-a no chão, e trilhando-a pelo meio. Quando me abaixava para socorrê-la, ouvi as gargalhadas dos dois e o comentário do criminoso:

— Você viu? Estourou como papo-de-anjo.

D. Aurora morreu ali mesmo, e eu tive de voltar com o cesto de ovos para casa.

A impressão que se tinha era a de haver pessoas ocupadas unicamente em perturbar o nosso sossego, com que fim não sei. Ainda bem não havíamos tomado fôlego de um susto, outro artifício era aplicado contra nós. Mas não havendo motivo para tanta perseguição, também podia ser que os responsáveis pelas nossas aflições nem estivessem pensando em nós, mas apenas cuidando de seu trabalho; nós é que estávamos atrapalhando, como um formigueiro que brota num caminho onde alguém tem que passar e não pode se desviar. Depois do estrago é que vinha a curiosidade de ver como é que estávamos resistindo.

Foi o que verificamos quando as nossas casas deram para pegar fogo sem nenhum motivo aparente. Primeiro era um aquecimento repentino, os moradores começavam a suar, todos os objetos de metal queimavam quem os tocasse, e do chão ia minando um fumaceiro com um chiado tão forte que até assoviava. Pessoas e bichos saíam desesperados para a rua engasgados com a fumaça, sem saberem exatamente o que estava acontecendo. Ouvia-se um estouro abafado, e num instante a casa era uma fogueira. Tudo acontecia tão depressa que em muitos casos os moradores não tinham tempo de tugir.

Depois de cada incêndio aparecia na cidade uma comissão de funcionários da Companhia, remexia nas cinzas, cheirava uma coisa e outra, tomava notas, recolhia fragmentos de material sapecado, com certeza para examiná-los em microscópios. Pelo destino dos moradores não mostravam o menor interesse. Para não perder tempo em casos de emergência, passamos a dormir vestidos e calçados.

Embora sem muita esperança, meu pai foi procurar o delegado para ver se conseguia dele uma providência contra a Companhia. O delegado estava assustado como coelho, piscava nervoso e repetia como falando sozinho:

— Uma providência. É preciso uma providência.

Meu pai quis saber que espécie de providência ele pensava tomar, e ele não saía daquilo:

— É, uma providência. É uma providência.

Meu pai sacudiu-o para ver se o acordava, ele agarrou meu pai pelo braço e disse desesperado, quase chorando:

— Eu estou de pés e mãos amarradas, Maneco. De pés e mãos amarradas. Que vida! Quanta coisa!

Os espiões eram outra grande maçada. Não sei com que astúcia a Companhia conseguiu contratar gente do nosso meio para informá-la de nossos passos e de nossas conversas. O número de espiões cresceu tanto que não podíamos mais saber com quem estávamos falando, e o resultado foi que ficamos vivendo numa cidade de mudos, só falávamos de noite em nossas casas, com as portas e janelas bem fechadas, e assim mesmo em voz baixa.

Eu estava quase perdendo a esperança de voltarmos à vida antiga, e já não me lembrava mais com facilidade do sossego em que vivíamos, da cordialidade com que tratávamos nossos semelhantes, conhecidos e desconhecidos. Quando eu pensava no passado, que afinal não estava assim tão distante, tinha a impressão de haver avançado anos e anos, sentia-me velho e deslocado. Para onde nos estariam levando? Qual seria o nosso fim? Morreríamos todos queimados, como tantos parentes e conhecidos?

Passávamos os dias com o coração apertado, e as noites em sobressalto. Ninguém queria fazer mais nada, não valia a pena. As casas andavam cheias de goteiras, o mato invadia os quintais, entrava pelas janelas das cozinhas. Nos vãos do calçamento, que cada qual antigamente fazia questão de manter sempre limpo em frente a sua casa, arrancando a grama com um toco de faca e despejando cal nas fendas, agora cresciam tufos de capim. O muro do pombal desmoronou numa noite de chuva, ficaram os adobes na rua fazendo lama, quem queria passar rodeava ou pisava por cima, arregaçando as calças. Não valia a pena consertar nada, tudo já estava no fim.

Mas a esperança, por menor que seja, é uma grande força. Basta um fiapinho de nada para dar alma nova à gente. Eu estava remexendo um dia na tulha de feijão à procura de uma medalha que caíra do meu pescoço e encontrei umas caixas de papelão quadradinhas, escondidas bem no fundo. Abri uma e vi que estava cheia de cartuchos de dinamíte. Guardei tudo depressa e não disse nada a ninguém nem deixei meu pai saber, porque não queria colocá-lo na triste situação de ter de prevenir-se contra mim. Tudo era possível naqueles dias.

Agora que nada mais há a fazer, arrependo-me de não ter falado abertamente e entrado na intimidade dos planos, se é que havia algum. Hoje é que imagino a aflição que minha mãe deve ter passado na noite em que em vão esperamos meu pai para a ceia. Com uma indiferença que não me perdoo eu tomei a minha tigela de leite com beiju e fui dormir. Mamãe ficou acordada fiando, e quando tomei-lhe a bênção no dia seguinte notei que estava pálida e com os olhos vermelhos de quem não havia dormido. Não tenho muito jeito para consolar, fiquei remanchando em volta dela, bulindo numa coisa e noutra, irritando-a com o meu nervosismo inarticulado. Ela mandava-me sair, passear, fazer alguma coisa fora, mas eu tinha medo de deixa-la sozinha estando tão deprimida.

Não me lembro de outro dia tão triste. Uma neblina cinzenta tinha baixado sobre a cidade, cobrindo tudo com aquele orvalho de cal. As galinhas empoleiradas nos muros, nos galhos baixos dos cafezeiros, ou encolhidas debaixo da escada do quintal, pareciam aguardar tristes notícias, ou lamentar por nós algum acontecimento que só elas sabiam por enquanto. Em frente a nossa janela de vez em quando passava uma pessoa, as mãos roxas de frio segurando o guarda-chuva, ou um menino em serviço de recado, protegendo-se com um saco de estopa na cabeça. E nos quintais molhados os sabiás não paravam de cantar.

Em dias de sol nós ainda podíamos resistir, podíamos olhar para os lados da usina e apertar os dentes com ódio, e assim mostrar que ainda não havíamos nos entregado; mas num dia molhado como aquele só nos restava o medo e o desânimo.

A notícia chegou antes do almoço. Uns roceiros que tinham vindo vender mantimentos na cidade encontraram o corpo na estrada, a barriga celada no meio pelas rodas de uma motocicleta.

— Depois do enterro mamãe mandou-me esconder as caixas de dinamite num buraco bem fundo no quintal, vendeu tudo o que tínhamos, todas as galinhas, pelo preço de duas passagens de caminhão e no mesmo dia embarcamos sem dizer adeus a ninguém, levando só a roupa do corpo e um saquinho de matula, como dois mendigos.

Poema em prosa – “Moços”, de Otávio Moraes

E o assunto era o sexo, falavam, falavam, falavam demais, mais que demais, um acinte. Sentados os três, me subtraio da equação pois eu em nada estava presente, diziam de foder e de transar, delícias, enfim. O leitor não me interprete mal, não sou dessas alminhas recatadas, gosto sim de sexo, sexo não me cai mal.

Porém, me interesso muito pouco por aquilo que virou o sexo. Sim, eu sei, pareço um desses velharões costurando saudades, remoendo uma vida inteira do que poderia ter sido, mas não foi. Tenho lá minha bagagem, deixei algo na estrada, mas quem não tem? Ao fundo, em tons retorcidos de aparelho de áudio moribundo, Caetano canta:

Mas não tem revolta, não
Eu só quero que você se encontre
Ter saudade até que é bom
É melhor que caminhar vazio.

Voltemos ao sexo, sim, pois bem. O que me incomoda, talvez sim velharão, é que não, tudo às claras. Não, tudo em palavras. Não censuro, indecências, insolências, maledicências. Também tenho minha porção de palavras boas, fortes e frágeis com as quais canto, delicado, meus desejos de homem maduro. Mas acontece que, talvez ridículo, romântico, raquítico no amor, eu busque algo de ninar entre os cochichos ao pé do ouvido. Nada me desconvence de que gemer é chamar a mãe.

Afinal, a nudez é algo tão frágil, tão forte. O corpo, só corpo, deslizando aos borbotões entre o suor e o sêmen. Pensando assim, é bonito, mas bonito em silêncio. Eles, do silêncio não sabem nada. Ficam narrando e narrando e narrando. Não sabem os moços nada sobre o silêncio. Não sabem os moços que o fundamental, para muito além desse papo de pau, se diz calado, ainda que o silêncio assuma um idioma de ruídos, gemidos, mordidas, saliva e ruminação.

Agora canta Lupicínio:

Esses moços, pobres moços.
Ah! Se soubessem o que eu sei.

Eu vou embora.

Três poemas de “Educação pela pedra”, de João Cabral de Melo Neto

Há certa convenção de que Educação pela pedra é o livro no qual o poeta João Cabral de Melo Neto levou mais longe sua “engenharia poética”. Livro formado por vinte e quatro poemas com uma simetria que encanta – sendo quatro seções, de seis poemas cada e muitas repetições de forma e de sentido –, o livro lançado em 1966 é considerado um marco divisório para a lírica de Cabral, para a qual elementos que vinham sendo apresentados em obras anteriores ganham uma dimensão diferente e um tanto quanto desafiadoras. Educação pela pedra conta ainda com alguns dos poemas mais emblemáticos e aclamados do autor pernambucano, entre os quais estão o próprio poema homônimo: “Educação pela pedra”, mas também “O sertanejo falando”, “Tecendo a manhã” e “Catar feijão”.

Na publicação de hoje, resolvi trazer outros textos também de altíssima qualidade e que fogem um pouco dessa “santíssima quaderna” que está presente no livro de 1966: “Duas das festas da morte”, “O urubu mobilizado” e “A fumaça no Sertão”. Os três fazem parte da primeira seção do livro de Cabral – intitulada Nordeste A – e versam sobre alguns dos temas mais caros ao escritor: a morte e a vida sertaneja, já canonizada em sua lírica, pelo menos desde Morte e vida Severina.

No mais, espero que vocês aproveitem a leitura!

Duas das festas da morte

Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua,
ora seu próprio vivo, em dia de posse.

Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique,
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e, aliás, com uma boneca de verdade.

O urubu mobilizado

Durante as secas do Sertão, o urubu,
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.

Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.

A fumaça no Sertão

Onde tampouco a fumaça encorpa muito;
onde nem pode o barroco mil folheiro
da mangueira matriarca, corpopulenta,
de que na Mata a fumaça finge o jeito.
Nem o barroco, mais torto mas rasteiro,
de quando a fumaça se faz em cajueiro.

Onde também a fumaça encorpa pouco;
onde nem pode encopar-se de tão rala,
tanto quanto o ar ralo por que arvora
o fio da árvore que pode, desfiapada.
Onde porém, porque não pode o barroco,
ela pode empinar-se essencial, unicaule;
unicaule, mas bem diversa do coqueiro,
incapaz de ir linheiro ao empinar-se;
unicaule mais bem de palmeira a prumo,
de uma palmeira coluna, sem folhagem.

Resenha – “Anos de Chumbo e Outros Contos”, de Chico Buarque de Hollanda

Chico Buarque de Hollanda é o típico caso de artista que não precisa fazer qualquer esforço para estar entre os mais vendidos e lidos na semana de sua publicação, seja com um novo disco ou mesmo com sua prosa. Recentemente, vimos o fenômeno se repetir, quando o autor carioca lançou pela Companhia da Letras uma coletânea de contos, que recebeu o instigante título de Anos de Chumbo e Outros Contos (2021), livro cuja resenha você encontra a seguir.

Do chumbo antigo ao chumbo novo

Parentes descontrolados, violentos e abusadores; crianças perversas e em situação familiar de desamparo e negligência; moradores de rua delirantes, apaixonados por tempos idos e inalcançáveis; e relacionamentos desencontrados. Composto por oito narrativas curtas e a princípio sem relação, Anos de chumbo e Outros Contos joga luz sobre um Rio de Janeiro marcado pela violência da milícia, pela corrupção e pelas ambições e frustrações amorosas e familiares, não deixando de lado, é claro, uma boa dose da comicidade – própria ao cotidiano ordinário – e também de melancolia, adequada a um senhor que viveu para ver o Brasil frustrar suas expectativas no que diz respeito à elaboração dos traumas históricos nacionais. (E que, pelo contrário, aparenta dar continuidade a esses traumas.)

O nome Anos de Chumbo sugere imediatamente uma relação com a realidade repressiva de boa parte do governo imposto pela Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985). Entretanto, na realidade pintada pelo escritor, a repressão que outrora fora exercida pelo governo militar aparece diluída e penetra todas as esferas da vida privada, na qual as decisões passam a ser tomadas muitas vezes a partir de pontos de vista egoístas e simplistas, nos quais o outro sempre aparece ou como aliado ou como inimigo definitivo do “Estado” – e aqui as palavras de Luiz XIV reverberam nas atitudes: L’état c’est moi ou, em bom português, “O estado sou eu”.

Essa escolha por “Anos de Chumbo” – título do conto-vitrine da coletânea – ostenta mais uma intenção editorial e mercadológica do que inteligência literária, uma vez que apenas o conto título traz como cenário os tempos sombrios da década de 1970, dialogando diretamente com o problema histórico nacional, ainda latente. Com toda certeza, entre os títulos que compõem o livro, é “Anos de Chumbo” o mais chamativo deles, além de possibilitar um deslocamento muito significativo, no qual a porta para o mundo contemporâneo é aberta com uma chave que também leva aos anos exílio, censura e perseguição por parte de um Estado opressor e assumidamente militarista.

A pobreza na escrita, a relevância da história

Ainda que Chico faça em Anos de chumbo e e Outros Contos uma releitura de temas caros à “alta” literatura brasileira – como a disputa de classes, o ciúme e a paixão cega, por exemplo –, esse novo trabalho me causou a mesma impressão que tenho de outras obras do autor: são boas histórias, mas não trazem consigo muito brilho próprio. Para começar, mesmo se valendo de um vocabulário invejável, achei o uso da linguagem pouco inventivo, caindo muitas vezes em descrições excessivas e desnecessárias, que parecem querer reforçar a atualidade do cotidiano dos contos, mas acabam sendo uma tentativa de perfumar a flor: máscaras de Covid, carros chiques, mesas de plástico, aeroportos etc. não espantam tanto a essa altura do século XXI quanto o autor parece supor e enfatizar. Outro ponto que me incomodou foi a construção dos personagens, que, de modo geral, não têm complexidade, cumprindo papeis que mais se parecem com tipos (na maioria esmagadora, violões, no caso dos homens, e cúmplices tolas, no caso das mulheres) do que de fato com sujeitos em si. Esse traço talvez não se aplique apenas aos narradores, que, contudo, por mais que os contos se diversifiquem, são parecidíssimos, independendo de sua idade e realidade social.

Dois dos oito contos: “O sítio” e “Cida”, para mim, são verdadeiras joias, por justamente escaparem ou pelo menos margearem os problemas que coloquei no parágrafo anterior. De todo modo, entre problemas e soluções, no fim, não acredito que a falta de capricho quanto a algumas das propriedades literárias diminua a importância do livro enquanto conjunto, ainda mais levando em conta que a obra dá continuidade a um movimento de Chico Buarque de trabalhar com temáticas mais contemporâneas (e principalmente a crise política). A obra, como coletânea, procura nos apresentar algumas das consequências da falta de elaboração do trauma histórico, e nisso ela é muito feliz, dá conta do recado, e faz a leitura não só valer a pena, como também ser necessária.

Antes de partir, queria fazer um convite a você, que tem interesse tanto pela obra de Chico Buarque, quanto pela vereda da literatura de testemunho, e principalmente aquela que trabalha com o obscuro período da Ditadura Civil-Militar brasileira. Aqui no Duras Letras, nós disponibilizamos um texto do pesquisador Alexandre Fonseca, no qual ele faz justamente uma exposição de como a literatura nacional contemporânea tem trabalhado com a(s) memória(s) da ditadura militar, publicação que traz, ainda, uma lista de indicações de leitura sobre/para o tema.

Ficou interessado? Então acesse a publicação!

Resenha – “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk

Entre a literatura e o manifesto

Desde o momento em que li o título, vi a capa e li a sinopse de O som do rugido da onça (2021), livro de Micheliny Verunschk, tive vontade de lê-lo. Demorou, mas aconteceu, e agora trago essa pequena resenha, para a apreciação (ou não) de vocês.

Iatucasaua

Particularmente, acho difícil resumir a narrativa do livro de Micheliny – por ser fragmentada e costurada com uma linguagem única. Em síntese, eu diria que O som do rugido da onça faz uma reescritura da odisseia vivida pela personagem Iñe-e: uma jovem do grupo indígena Miranha, sequestrada – junto de outras crianças – por dois exploradores alemães que vieram ao Brasil, no século XIX. Tirada da família, de seu povo, terra e do mundo que conhecia, Iñe-e tem por companhia os espíritos e divindades de sua tradição, além dos pensamentos e impressões de um lugar cada vez mais estranho. Tem, também, como companheiro, o menino Juri, outra criança sequestrada, que, apesar de dividir o mesmo destino desgraçado, não fala a língua dela.

Mas não se trata só disso a história. Micheliny também amarra o passado ao presente, ao colocar a personagem Josefa (um alterego da própria autora?) em trânsito paralelo com as duas crianças, confrontando este nosso Brasil contemporâneo, que se mascara de “novo”, mas que continua, depois de tantos e tantos anos, massacrando as lutas e silenciando as reinvindicações indígenas sobre terra, sobre moradia, sobre dignidade, sobre seus direitos mais básicos.

“Ruindade não acaba” – diz Tipai uu, a Onça Grande, para Iñe-e.

Nheen eé, Nheen ayua

Como eu disse no começo, particularmente, eu não gostei do livro, porém acho que ele traz coisas de muita qualidade que precisam ser mencionadas. Para começar, acho que o adjetivo que melhor descreve a narrativa é: necessária, não só por tematizar e colocar como protagonistas personagens indígenas e feridas históricas ainda abertas, como também por lançar um novo olhar sobre estes machucados, lendo uma história do Brasil à contrapelo. Ao lado disso, está uma linguagem brilhante, que deixa evidente a inspiração no lirismo derramado que atravessa algumas das obras de Guimarães Rosa. O uso desta língua específica para narrar, que mescla prosa, poesia e vocabulário nheengatu, deixa a leitura dinâmica, rica e, por mais estranho que pareça, mais fácil: uma vez que a gente pega o ritmo, o livro flui muito bem.

Só que, para mim, O som do rugido da onça não teve apenas flores. Achei a narrativa incompatível com o nível da escrita, já que é excessivamente didática, a ponto de se transformar quase em um manifesto que afoga parte da força literária do livro. Trechos como: “como pode ser bom alguém que compra outras pessoas? Que as leva para longe dos seus parentes?” ou “por que Iñe-e, que era livre, agora tinha donos?” aparecem com certa frequência e seriam totalmente dispensáveis, uma vez que fica claro o ponto de vista que o narrador (e a autora e nós, “leitores esperados”) defende. Fora que, com exceção de Iñe-e, os outros personagens que aparecem são pouquíssimo significantes e quase desaparecem da memória ao fim do texto, talvez por sua falta de complexidade na tomada de decisões e na forma como são percebidos pelo olhar de Iñe-e.

Mas nenhum desses pontos desqualifica ou dispensa a leitura do romance de Micheliny. Volto a dizer: leia Osom do rugido da onça e tire suas impressões; é extremamente necessário, como todas as releituras que propõem um questionamento da chamada “história oficial”, feita por mãos brancas, colonizadoras e patriarcalistas.

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