“Fractal”, um poema de Paulo Bittencourt

O pensamento como quebra-cabeças de vidro estilhaçado que me corta a cada movimento de peças e cujo encaixe é ilimitado para extrair dos meus dedos o pouco de sangue que lhes resta. Dar ao oceano a medida certa de urina para salgar-lhe o sexo reptício das areias submarinas cristalizar a rocha dos cotovelos animais e dos cancros-utensílios de ferir a alma alheia dos homens. Abandonar completamente a esperança ao penetrar no reino surdo das palavras sem nexo afogadas no mais brilhante desespero soturno da vida que brota no deserto.

A solidão infinita dos peixes que se esquecem de nadar.

A paixão infinita dos seres que se esquecem de amar.

A tração infinita dos bois que se esquecem de marchar.

Pintura de René Magritte (1926)

Eis a imagem fundamental do silêncio-tormento do tiroteio si-por-si entre flores sorridentes só para testar quem resta por último aberta e finalmente poder fechar-se em si vitoriosa do sofrimento. Matar não para conquistar enrijecer dominar submeter cativar embrutecer animalizar escarnecer mas para livrar.

Andar com a faca presa aos mil elos dentais que brotam da gengiva.

O olhar fixado na saliva que se acumula ao canto da boca última gota de mar que escorre violentamente sobre o queixo como feixe de azul que escancara o meio dia das dores e que faz brotar outras mil por debaixo da língua. Ceifar o corvo sem penas que paira fênix do mais virginal edênico paraíso celeste em que deuses e putas ejaculam seus orgasmos pernósticos.

E por fim fazer crescerem os prédios mais altos cujos cumes atingem as verdades sobre a pilha de corpos pútridos que produzem incontáveis litros do mais negro chorume. O paraíso titânico do vidro que escancara as tripas abrindo o esterno com máquinas tracionadas hidraulicamente deixam à vista crua do sol o último batimento cardíaco o último suspiro de morte.

Finalmente.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Conto – “O Palácio de Cristal”, de Paulo Bittencourt

Os portões do Palácio de Cristal estavam intactos, mesmo seus arredores estando completamente arruinados. Apesar de os escombros dificultarem a chegada até os arcos metálicos que circundavam a entrada, o fenômeno era misterioso de uma maneira tal que se me apresentava irresistível em seu convite. Com um pouco de esforço e levado pela curiosidade, cheguei frente à aldraba — um condor esculpido em prata, encardida pela poeira circundante e pelo efeito do tempo, cuja argola pendia do bico como uma presa inevitável.

Adentrei, e a impressão foi atravessar logo a barreira do tempo alguns séculos atrás. A disparidade era visível: o local estava impecavelmente limpo, o que ressaltou ainda mais o contraste com o lado de fora, que agora se apresentava para mim como um local longínquo, mesmo estando ainda há poucos metros da entrada já fechada. Mas para além mesmo da notável diferença nas condições do local, adentrá-lo reservou a meu corpo uma mudança súbita de estado — antes, o escuro tomava conta, e a criança chorava toda sua angústia em desespero, imprimindo sobre o escândalo sua energia; agora, o calor do peito da mãe acalentava, e é como se nada mais existisse nos arredores e a escuridão nunca houvera existido. Dentre as várias portas à minha vista, apenas uma delas estava entreaberta, e de lá emanava um parco feixe de luz capaz de iluminar parcialmente o trajeto até o local.

Mesmo com o coração em ritmo acelerado, estranhamente à medida que me aproximava daquele cômodo, aumentava em mim o sentimento de segurança. Não houve sequer hesitação ao lançar impávido a mão sobre a maçaneta e lentamente abrir a pesada porta de madeira ornada em metal ondulado, simulando colunas jônicas, ao melhor estilo neoclássico. Lá se viam duas poltronas de couro marrom separadas por uma pequena mesa de centro, à altura dos braços, em cuja superfície fixava-se um candelabro com espaço para até cinco velas de tamanho médio, apesar de apenas três estarem lá fixadas e uma acesa, tornando o ambiente mal iluminado, mas suficientemente visível aos olhos.

À cadeira esquerda assentava-se um homem de feição apagada, à sombra de seu chapéu estilo fedora, de abas curtas e levemente curvadas à esquerda, que impedia a luz da vela de fazer claros os contornos de seu rosto. Nenhum centímetro de pele ficava à vista: o fraque e as luvas, as calças e o sapato, cobriam finamente o corpo bem ajustado e de pernas cruzadas do silencioso sujeito. Sentei-me na poltrona à sua esquerda com a perna arqueada e levemente irrequieta. A cena era convidativa à conversa, pois me pus a falar, rompendo primeiro a barreira do silêncio:

“Atlas Turned to Stone” – Edward Burne-Jones (1878)

— O senhor aparentemente está no mais pleno conforto aqui, em seu isolamento, cercado pela estrutura intocável deste palácio… Confesso que ao adentrar seu recinto, um inédito sentimento de segurança se apossou de meu corpo e, sem hesitar ou sequer me preocupar com qualquer formalidade de etiqueta, cá me apresento ao seu lado. Diga-me, como posso chamar-lhe? A quem devo prestar meu mais sincero respeito? — Procurei dirigir as palavras com serenidade e num tom algo grave, demonstrando ao mesmo tempo seriedade e empatia, para não causar nenhum tipo de constrangimento ao ambiente tão pacífico que construíra o homem.

Silêncio absoluto. A sombra tampava perfeitamente a feição deste estático senhor, o que tornava sua presença algo espectral.

— Sei que aqui, sentado ao seu lado, nada mais para mim se parece necessário. Você está absolutamente cercado da mais bela salvaguarda. Absteve-se da vulnerabilidade atormentadora do exterior, que agora encontra-se em ruínas. As espessas paredes de vidro que o separam daquele universo sequer sofreram um arranhão, e a calma rígida deste quarto, do seu corpo em estrutura formosíssima, seduzem-me à semelhança de uma torre de marfim, dentro da qual não há a menor exposição às intempéries daquele caos. O senhor me desperta uma aura de tão cristalina serenidade; mesmo o caráter lúgubre deste cômodo interior, em contraste à arquitetura translúcida do palácio, sequer traduz a impressão de qualquer solidão. Creio que este é um dos motivos que me levaram à desinibição de assentar-me aqui, ao seu lado. — Esta fala respeitosa com o mesmo tom da anterior, ao mesmo tempo suscitava um possível diálogo sobre aquela condição tão perfeita ao passo que pretendi de forma tangente um certo pedido de desculpas por minha entrada abrupta e desavisada.

Novamente nenhuma reação ou som procedeu de minha tentativa de estabelecer a comunicação. Cruzei as pernas de forma bastante similar àquele senhor, e mesmo na situação de silêncio um tanto quanto constrangedora a olhos alheios, meu corpo ainda se sentia plenamente seguro diante daquela figura, sem nenhuma vontade de levantar-me e sair.

— Sabe… O senhor é que está certo. Não há razão para se aventurar naquela selvageria. O mundo nunca se mostra da maneira como esperamos. De forma geral, há sempre um receio oculto das mais imprevisíveis surpresas. Por mais que por vezes avistemos belas flores a desabrocharem, virginais, à sorte das florestas, as rédeas nunca parecem corresponder aos nossos comandos, e o trote ligeiro imprime uma passagem invencível. Se junto àquela flor deixo minha alma, jamais a recobro; sigo com o corpo fechado, em estado de vertigem.

Senti aquelas finas camadas da mais perfeita segurança se sedimentando lentamente e transformando-se, de súbito, num tremor em minha mão direita, que repousava até então no braço de couro da poltrona. O estranhamento se me apossou ao perceber que esse mesmo tremor que agora tomava conta do meu corpo também assolava o fino senhor ao meu lado. Era como se a longa exposição àquele colo de mãe perdesse seu calor pelo costume banal, e fosse necessário agora negá-lo friamente, somente assim tornando-se possível a avaliação da perda. Impetuosamente dirigi àquele sujeito minha mão, que nervosa e flácida se aproximava da sua. O toque frio rapidamente desfez à minha frente sua imagem, e o espelho que nos separava estilhaçou-se. O fraque e o chapéu, as calças e o sapato, vestiam-me perfeitamente, como se feitos sob medida. O último suspiro da vela não me permitiu identificar a forma do meu próprio rosto. Agora a escuridão toma conta deste Palácio de Cristal, intransponível.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Ode ao humor

Fascinante experiência é ver-se através de um espelho! A produção virtual de uma realidade, na qual se reflete de forma mais ou menos precisa a imagem própria do indivíduo, sem dúvidas lhe provoca alguma espécie de inquietação. Essa ocorrência — que por vezes se dá nas mais fugazes das circunstâncias, como que numa espera dentro de um elevador para atingir o andar do prédio em que se trabalha ou do apartamento em que se mora, ou até mesmo no breve reflexo produzido pelas janelas de um ônibus que passa à frente, enquanto se espera a luz verde do sinal de pedestres para atravessar avenida — é o estalo de narciso mais ou menos duradouro que habita a todos nós.

A experiência narcísica não se reduz somente a uma admiração própria ou a uma fixação contemplativa inelutável rumo à imagem própria. Não. Ela se mistura a uma certa agonia, um amálgama entre a recusa e o desejo de si. Divididos numa fração de segundo, essas duas metades inseparáveis agora se encaram na indissolúvel contradição entre atração e repulsa de nós para conosco — a segurança apaziguadora do que em cada um é unidade agora fragmenta-se em duplo.

Dir-se-ia que há uma vontade hesitante do espírito em se reconhecer nesta unidade que representa o corpo, mas a consciência de nossa multiplicidade interior rapidamente a desconfigura. É angustiante e, por vezes, até mesmo revoltante quando somos resumidos a um estereótipo; a definição redutora que rotineiramente nos é atribuída como arquétipos de somente uma das faces do prisma que compõe a nossa natureza provoca a reação quase que instantânea de erro — não somos limitados ou definidos (somente) por isso.

Encarar a imagem própria coloca em conflito, então, essas várias facetas de um mesmo “eu”, agora dividido no confronto com seu reflexo — este estranho familiar que passa a representar o “outro”. Eu e outro frente a frente, reprimindo-se, julgando-se, reconciliando-se na medida do possível, pois que guardam diferenças fundamentais entre si. A parte em mim que concentra todo o espírito de completude, de estabilidade, de equilíbrio, impõe represálias àquela outra em cujo desejo inebriante de retorno ao instintivo, à aventura, à solidão e à embriaguez se aflora.

Passado o veículo coletivo, aberta a porta do elevador, essas duas metades tornam a se tensionar dentro dessa aparente unidade física que é o nosso corpo. Condenados a viver neste eterno pêndulo de luz e sombra que nos habita a essência desde o reconhecimento inicial do pensamento. Reduzimo-nos àqueles bons dias em que se cumprem todas as obrigações e o retorno à casa se dá pacificamente para o descanso merecido após algumas horas de dedicação. Esses dias que se nos apresentam sem maiores êxtases, sem maiores dores. Cada vez mais frequentes — invisíveis.

O reflexo já se foi, não nos resta mais brigar, mas alguma coisa ainda carece, ainda estamos em dívida com nosso outro interior. A dívida é eterna, e sábio é aquele que vê a divisão primordial como ironia de si, e a transforma numa grande peça de humor.

20 de Abril de 2021.

Imagem da capa: O espelho falso (1928) – René Magritte


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

“À Deriva”

Há alguns dias ou semanas, lembro-me de ter visto em algum portal digital uma reportagem sobre um determinado ponto do Oceano Pacífico cuja localidade exata guardaria a maior distância com relação a qualquer porção de terra continental na face do planeta. Se me recordo com alguma precisão, havia menção a uma tendência de maior migração de animais marinhos e aves, dirigindo-se a esse ermo absoluto por diversas razões relacionadas à ação antrópica, como a pesca predatória e uma maior concentração de poluentes nas águas e no ar.

Imaginei-me sentado de pernas cruzadas neste exato ponto, como que flutuando por sobre a mais vasta imensidão do oceano, sentindo o fluxo das correntes marítimas sob minhas pernas, sem me afundar na água ou ser violentamente dilacerado pela vida animal que pouco tomaria nota da minha presença inútil ali. Imagino-me assim, pois, em um completo estado de distanciamento, de olhos bem abertos, experienciando a mais terrivelmente sublime das imensidões solitárias e das solidões imensas do ser.

Assim naufrago no isolamento ensimesmado dentro de meu próprio desengano, mas com a sutil diferença de sentir a traição dos sentidos, pois que eles não me permitem ausentar-me a essa maneira da grande máquina que gira à revelia de qualquer intervenção – humana, animal, cósmica ou divina. A atração gravitacional que assola os impulsos do meu corpo em direção a essa roda incessante faz do retorno ambiguidade: em qual dos dois estados se estaria mais próximo da realidade?

Levantar o olhar novamente através das grades da janela para a maré de prédios sob a cacofônica rapsódia de construções civis, veículos automotores e vozes alheias fez cruzar em meus pensamentos versos daquele a quem gosto de apelidar “O Poeta Desterrado”:

Eu me engano: a região esta não era; 
Mas que venho a estranhar, se estão presentes 
Meus males, com que tudo degenera. 

É de muito difícil compreensão e racionalização a experiência do isolamento. Criou-se uma dependência vital de controle, planejamento, que por ora escapa completamente às nossas ações e segue rumo peremptório desconhecido – talvez muito mais próximo do retorno ao vazio imenso do qual somos provenientes do que se possa prever ou sequer imaginar. A completa modificação do espaço se confunde com a total virgindade da paisagem oceânica: daqui, de dentro, o que altera a experiência, o que degenera o espaço com o qual convivemos é o olhar atordoado de quem se viu perdido em um universo de rumos randômicos.

Não há, nem aqui, nem lá, possibilidade de construção de sentido – por mais que se empenhe toda a energia humana na construção deste trilho, a distância (aparente ou não) é infinita, e a terra firme não passa de uma ilusão. Sinto como se o fluxo das correntes marítimas naquele ponto, o mais distante do oceano, fosse subitamente interrompido, e meu corpo, atônito, finalmente afundasse.

13 de abril de 2021.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas com as quais se possa identificar e a partir das quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

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