Lirismo enquanto doença

Na nossa cultura, o conhecimento (segundo uma antinomia que Aby Warburg acabou diagnosticando como a “esquizofrenia” do homem ocidental) está cindido entre um pólo estático-inspirado e um pólo racional-consciente, sem que nenhum dos dois consiga reduzir integralmente o outro.

– Giorgio Agamben, em Estâncias  

No poema “Num monumento à aspirina” é possível tomar como mote o movimento metafórico entre o remédio e o sol. A predicação do primeiro caminhando em direção ao segundo, mas a partir de uma polifonia que alça o astro-rei para o papel de consciência formal, superego de uma tradição poética que através da lírica indisciplinou o consciente. Leio, portanto, este poema concentrado nas possibilidades metapoéticas da antilírica cabralina.

Antes, contudo, transcrevo-o abaixo, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo:

Num monumento à aspirina – João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

“O sol de um comprimido de aspirina”, exuberante sol, desvelador das formas, patrono de uma clareza cristalina, capaz de cegar o intuitivo, o dito natural. O sol é o pressuposto de uma operação que assume o criar enquanto oficina, é perigoso manipular máquinas em meio ao breu, lesões, acidentes e imprecisões deformam a forma.

O latejar do crânio, preambulo da aspirina, é anterior ao poema, o remédio demanda a doença e a doença faz par com o remédio. Exatamente pelo aflorar orgânico da imprecisão das formas, suas abstrações pretéritas ao nome, faz-se preciso um fármaco solar: consciência, método.

O poema articula-se enquanto o elogio do remédio “Principalmente porque, sol artificial”.  Elogio, pois, afirma-se contra o crescer vertiginoso da linguagem. O fármaco, como produto do espírito, formaliza a distância radical entre a espontaneidade e o labor. Ode, portanto, ao artifício.  

A antilírica prossegue na defesa do botânico contra o jardineiro, o método em recusa da inspiração, afinal, somente o sol em pílula é “(..) imune às leis da meteorologia”. A técnica poética, o cálculo, é apresentado como gesto ou prática capaz de se não abolir ao menos driblar a contingência romântica imposta pela inspiração.   

Convergem: a aparência e os efeitos 
da lente do comprimido de aspirina: 
o acabamento esmerado desse cristal, 
polido a esmeril e repolido a lima, 
prefigura o clima onde ele faz viver 
e o cartesiano de tudo nesse clima.

“Convergem: a aparência e os efeitos”, a luz, como lâmina, propõe, escolhe, recorta, qual sombra deve dilatar-se pelas páginas abertas da mente-oficina. Exatamente por ser conflito entre o doer e o anestesiar o momento ímpar, aquele de mais perene equilíbrio, é quando o fármaco se encontra como ao meio dia. Luz total, meridiana e penetrante, mas já antevendo o ascender das sombras, o porvir da lua. Nesse sentido, a aspirina surge enquanto emergência, objeto de uso crónico, espécie de reparo ou dique que impede que aquelas ondas fortes do oceano lírico roubem ainda mais areia à praia.

O poeta antilírico sofre como se fosse lírico pois contínua recebendo as ofensivas incoordenadas da linguagem, o sentir que precede a forma.  É como em um haikai de Matsuo Basho, que traduzo com honesta imprecisão a partir do inglês,

Nuvens 
Uma chance 
Desver a lua  
Clouds - 
a chance to dodge 
moonviewing. (Poema disponível aqui)

A perturbação aumenta a nitidez do objeto, nada melhor do que ocultar para acabar revelando. O interessante, no sentido romântico do termo, capacidade de ser gerador de interrogações, é o poema abordar uma ferida crónica, uma dor que passa somente para voltar mais forte e que por isso mesmo mantem o poeta atento, firme, na espera da derrota final contra a linguagem.

De outro lado, porque lente interna, 
de uso interno, por detrás da retina, 
não serve exclusivamente para o olho 
a lente, ou o comprimido de aspirina: 
ela reenfoca, para o corpo inteiro, 
o borroso de ao redor, e o reafina.

O remédio solar funciona tal qual lente, “Ela reenfoca, para o corpo inteiro”, cindindo interioridade e exterioridade em um todo formal, como se almejasse que a palavra fosse capaz de dar unidade ao todo.  “Lente interna”, pois no exercício de desembaraçar “o barroso de ao redor” reforça a capacidade ordenadora da linguagem poética.

A construção desse poema, suas imagens, me fazem pensar que existe algo de utópico, algo além do humanismo romântico que deu forma ao lirismo moderno. Só que no caso de Cabral eu apostaria que mais do que alcançar outro lugar, o utópico assume uma espécie de não geografia, a poesia mais interessada em ser dis-topíca do que lugar: somente nessa estância dissociada de endereço que a criação poderia assumir o rigor demiúrgico almejado pelo poeta.

Claramente: o mais prático dos sóis, 
o sol de um comprimido de aspirina: 
de emprego fácil, portátil e barato, 
compacto de sol na lápide sucinta.

Idade média em tecnicolor

Gabriel – autor e editor aqui do Duras Letras – me pediu uma lista, uma seleção, de três poemas medievais que me encantam. Eu adoro listas, acho que o desafio de encontrar alguma relação de equivalência entre números e textos tem valor por si mesmo. O norte, em suas próprias palavras, deveria ser o encantamento. O desafio ao qual eu me referi está em que a finitude implica escolhas e escolhas implicam em recusas. Isso é próprio da vida humana, infelizmente não é somente nos momentos em que temos que propor uma seleção de três poemas medievais demandados por nosso amigo Gabriel que acabamos tendo que fazer apostas. Com esse papo introdutório quero afirmar que a frustração decorrente das listas e seleções é que elas são um entrave objetivo para o nosso desejo de infinito.

Em um primeiro momento, minha ideia era buscar trechos de obras importantes, algum troubadour occitano com seus cantos sobre moças bonitas e passarinhos, me parece importante também terem goliardos, deboche e vinho para os leitores. A idade média também é, dizem, sobre coragem, tomem então o imperador da barba florida Carlos Magno acompanhada da sua espada joyeause, um objeto riquíssimo para a psicologia, dado o seu nome sugestivo. Mas, em um segundo momento, não me pareceu que o encantamento sugerido pelo Gabriel passa por aí. Muitas vezes uma certa ideia de cultura geral, a necessidade de divulgar, introduzir, ampliar, acaba sobrepondo o simples gozo da leitura. Nada contra a educação, nada contra o ensino de literatura, mas o texto pode ter como razão apenas o prazer, o Ocidente não precisa ser protegido das garras do prazer, nem tudo na vida é formação.

O meu encantamento anda muito voltado para os galegos, talvez mais por ofício, pesquiso sobre eles, do que algo súbito e apaixonado. Vou compartilhar com vocês o prazer em relação à três poemas, na verdade não são muito lá poemas, mas ao mesmo tempo são. No seu tempo, ou melhor, quando letra e voz coincidiram, lá pelos séculos XI, XII e XIII, eles eram canções, mas aqui, no presente em que escrevo, nós os lemos como poemas, dissociados de melodia. É louco pensar que nossa relação com esse objeto estético é bastante outra se comparada com os jogos de intenção de permearam sua composição. Nossa leitura é criativa, ela reinventa o texto aos olhos do nosso tempo. Penso que isso acaba tornado a idade média, a nossa idade média, dos contemporâneos, dos iphones, dos terroristas, do neofascismo e de um urgente ecosocialismo, uma idade média em tecnicolor.

O primeiro, não por acaso, foi o primeiro poema do trovadorismo galego-português que me convidou ao encantamento. Segue abaixo:

Ai ondas que eu vim veer,
se me saberedes dizer
por que tarda meu amigo sem mim?
Ai ondas que eu vim mirar,
se me saberedes contar
por que tarda meu amigo sem mim? (B 1284, N 7, V 890)

Desde então, Martim Codax ocupa um lugar muito intimo no meu imaginário. Gosto de pensar no Mar de Vigo, lugar geográfico, mas que na minha consciência é mais um lugar poético, enquanto um primeiro porto do meu imaginário amoroso. A posição do eu lírico, no caso um eu lírico feminino, saudosa do objeto de seu desejo, tal qual o gênero das cantigas de amigo demanda, combina uma simplicidade retórica com uma grande tensão. A partir da constituição do próprio mar enquanto interlocutor, um interlocutor que participa da cena a partir da sua própria mudez, a ideia da saudade assume uma formulação quase concreta, como se fosse algo possível de tocar.

O segundo poema é do rei e trovador Dom Dinis. Gosto muito desse poema pois ele aponta para outra possibilidade de tensão, penso aqui com meus botões que talvez o pulo do gato, quando o assunto é essa tradição poética, esteja na produção de uma poética do atrito entre o desejo e o impossível. Coloco o texto para vocês abaixo:

Senhor, dizem-vos por meu mal
que nom trobo com voss'amor,
mais ca m'hei de trobar sabor;
e nom mi valha Deus nem al
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar.
E essa que vos vai dizer
que trobo porque me pag'en
e nom por vós que quero bem,
mente; ca nom veja prazer,
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar.
E pero quem vos diz que nom
trobo por vós, que sempr'amei,
mais por gram sabor que m'end'hei,
mente; ca Deus nom mi perdom,
se eu trobo por m'en pagar:
mais faz-me voss'amor trobar. (B 509, V 92)

A questão ou problema pelo qual o enamorado passa é no mínimo paradoxal. Ele é acusado de trobar sabor, ou seja, cantar/compor pelo simples prazer de produzir arte verbal, poesia. Tal acusação é séria, se pensarmos que o texto tem como destino declarar o amor, mas recebe a fama de quem na verdade só tem amor pelo próprio cantar. Tal amante não estaria, portanto, interessado de fato pela moça, mas sim utilizando ela como pretexto para a poesia. Ele se defende, afinal, verdadeiramente sente amor e prova, ironicamente, através da sua competência de poeta/trovador.

Por fim, mas não menos encantadora, voltamos para o mundo da cantiga de amigo. Não consigo negar, o que mais me interessa no medieval é o amor. A burguesia cortou a cabeça da nobreza, posição ao meu ver muito razoável, mas não conseguiu demolir esse monumento medieval, tudo bem, ele foi retocado, aburguesado, mas a raiz dos nossos sentires está lá, nas trovas, no impossível tão bem cantado.

– Cabelos, los meus cabelos,
el-rei m'enviou por elos,
[ai] madre, que lhis farei?
– Filha, dade-os a el-rei.
– Garcetas, las mias garcetas,
el-rei m'enviou por elas,
[ai] madre, que lhis farei?
– Filha, dade-as a el-rei. (B 1154, V 756)

Na cantiga acima, atribuída ao trovador João Zorro, o texto constrói-se a partir de uma relação dialógica, mãe e filha. O rei demandou que a jovem entregasse para ele seus cabelos, alegoria sensual voltada tanto para a construção de uma relação intima quanto para o próprio matrimónio, era próprio das mulheres solteiras portarem os cabelos soltos e das casadas o guardarem sob um véu.  Garcetas, significam tranças, gosto de pensar nesse texto, na centralidade dos cabelos, na descrição das tranças, enquanto uma elaboração da tensão anterior ao encontro, a ambiguidade da jovem frente ao rio que deve cruzar, o rio da virgindade, da inocência.

Outro ponto de tensão está na própria posição de quem ambiciona os cabelos: um rei. Não fica claro até que ponto cumprir com os seus desejos equivale a própria vontade da amiga. A fala da mãe pode ser tanto um incentivo quanto uma resignação. Nesse sentido, a trova desvela sobre o corpo do erotismo o corpo político do mundo medieval. A ambiguidade de uma época que eleva o feminino ao campo da adoração enquanto simultaneamente faz da execração das filhas de Eva uma tópica literária e uma prática rotineira.

Ficamos por aqui, espero que essas três trovas sejam prazerosas. Não propus uma tradução para elas por pensar que no jogo de semelhança e diferença entre os dizeres do galego-português e o do nosso português brasileiro continua havendo possibilidade de compreensão. Elas podem ser lidas na seguinte página

Nesse link vocês podem acessar o projeto Littera, da Universidade Nova de Lisboa. O site é incrível e tem um farto material acerca dessa época.


Quer conhecer outra dessas cantigas?

“The pasture” de Robert Frost

THE PASTURE
(O pasto)

I’m going out to clean the pasture spring;
I’ll only stop to rake the leaves away
(And wait to watch the water clear, I may):
I sha’n’t be gone long.—You come too.

I’m going out to fetch the little calf
That’s standing by the mother. It’s so young,
It totters when she licks it with her tongue.
I sha’n’t be gone long.—You come too.

Eu vou sair: limpar o novo pasto;
é só varrer, nenhuma folha fica
(e posso ver a água clara e rica):
não vou demorar. — Vem também.

Eu vou sair: pegar o bezerrinho
que fica junto à mãe. Recém-nascido,
tropeça quando seu corpo é lambido.
Não vou demorar. — Vem também.

Tradução: Gabriel Reis Martins


Análise

Publicado pela primeira vez por Robert Frost (1874-1963) no livro North of Boston (1914), “The pasture” é um poema composto por apenas oito versos, que apresentam imagens precisas, sintetizando e demonstrando de maneira clara alguns aspectos temáticos e estilístico utilizados com frequência pelo poeta americano ao longo de sua vasta obra.

Com métrica e estrutura muito bem determinadas e diegeticamente pastoril e sazonal, “The pasture” não propõe uma mistura tão intensa entre as formas literárias lírica, épica e dramática – diferente do que acontece, por exemplo, em “The death of the hired man” e na maior parte dos outros poemas de North of Boston. Além disso, ele é o menor dentre os textos que compõem essa coletânea, atravessada por poemas longos, que chegam a passar as cinco páginas de extensão.

Em síntese, trata-se de um texto pequeno, direto e preciso; de fato, uma entrada muito bem armada para o conjunto poético ao qual pertence. E, já que não acredito na possibilidade de estar à altura do original (abaixo e à esquerda), espero que essa humilde tradução que elaborei seja também uma boa vitrine, para que você corra atrás de outras cabeças que correm soltas pelo pasto de Robert Frost.

Sobre o som

Dividido em duas quadras, o poema foi feito a partir de uma estrutura fixa que se repete, o que sugere um espelhamento dos dois únicos blocos do poema. Essa estrutura é composta por um verso branco, por dois versos rimados e por um refrão (o verso final de cada quadra), que coincide em forma e em sentido em cada uma delas. Enquanto esse se trata de um octossílabo, os outros três primeiros versos de cada quadra foram compostos como decassílabos, montando um esquema simples 10-10-10-8, que acontece duas vezes.

Se por um lado essa estrutura rígida auxilia a tradução, delimitando um espaço adequado à recriação do texto em português; por outro, cria algumas dificuldades, uma vez que o inglês, diferente de nossa língua, apresenta uma maior maleabilidade das sílabas poéticas, com palavras que se aglutinam e preservam uma gama lexical variada, perdida na transição de uma língua à outra.

Outro ponto de difícil tradução são as paronomásias (principalmente, rimas e aliterações) escolhidas por Frost. Observamos, a título de exemplo, uma repetição constante de fonemas e de vogais, como nas plosivas do primeiro verso (t e p); as alveolares do segundo (l e r); do som da vogal w, no terceiro; e da nasal (on), presente em sha’n’t, gone, long e come, do verso refrão. Quanto às rimas, ambas relacionam palavras de classe gramatical diferente e de difícil aproximação em português: a primeira, away (para longe, advérbio) e may (posso, verbo); e a segunda, young (jovem, predicativo) e tongue (língua, adjunto adverbial).

Um detalhe que se soma a esses, e que torna ainda mais interessante a forma desse poema, é o movimento de “versar”, de ir e voltar, presente em quebras de sentido (como na passagem do quinto para o sexto verso), mas também na antecipação dos fonemas principais, feita pela palavra final de cada frase, em relação ao verso seguinte.

Sobre o sentido

Para fazer uma análise mais atenta de cada verso, vou propor uma tradução literal de seu sentido, tentando com isso esclarecer ao mesmo tempo o poema em inglês e a proposta de tradução mostrada antes. Primeiro, vou analisar todos os versos decassílabos do poema, para só então trabalhar com o refrão. “O pasto” (a essa altura já podemos tratá-lo com nome traduzido), como vimos, começa com a seguinte sentença:

I’m going out to clean the pasture spring

Eu estou saindo para limpar o pasto primaveril

Nessa abertura, temos a exposição de uma tarefa a ser cumprida, tendo chegado uma nova estação, a primavera: limpar o pasto. Porém, sob o significado restrito desse trabalho, parece se esconder a ideia do renascimento, da atmosfera cíclica da natureza, expressa sobretudo na palavra spring (primavera/primaveril), uma das chaves de leitura para todo o conjunto de textos de North of Boston. Essa estação, subsequente ao inverno – que é tempo de reclusão, melancolia e descanso – pode ser lida como signo de nova vida, da chegada de outro tempo e de novos trabalhos.

Mas, se você voltar à tradução que propus (a não literal), vai perceber que suprimi essa palavra quase essencial de minha versão do poema. Justifico essa ausência lembrando que, em um país como o Brasil, cujas estações não possuem diferenças tão claras, a palavra primavera ou primaveril, além de tomar um número antipático de sílabas, não causaria o mesmo impacto que possui no texto original, demandando uma nota de rodapé ou algo similar a isso que a justificasse. Tomei a liberdade de usar o adjetivo novo, que não traz a mesma precisão da palavra primavera, mas que deixa o texto mais compatível com um cenário brasileiro.

I’ll only stop to rake the leaves away

Só vou parar para varrer as folhas

Aqui percebo uma guinada mais objetiva, passando para uma explicação precisa do que será feito pelo eu do poema, seu trabalho, agora nomeado. Limpar o pasto significa, principalmente, varrer suas folhas, gesto que é contraposto no verso seguinte, no qual se complementa e expande o sentido do ofício na fazenda a uma dimensão também de descanso e contemplação:

(And wait to watch the water clear, I may):

(E posso esperar para ver a água clara)

Trabalha-se, mas pode-se também desfrutar da beleza da natureza, e o próprio uso dos parênteses reforça esse outro lado dos ofícios campestres, esse bônus para o ônus de varrer as folhas. O mesmo se dá nos três primeiros versos que abrem a segunda quadra:

I’m going out to fetch the little calf
That’s standing by the mother. It’s so young,
It totters when she licks it with her tongue.

Eu estou saindo para pegar o pequeno bezerro
Que está parado perto da mãe. É tão jovem,
Cambaleia quando ela o lambe com a língua

O trabalho de sair para ater o garrote é cortado pela admiração da cena matrimonial animal, interrupção que hoje pode até mesmo ser encarada a partir de uma lógica crítica aos trabalhos do campo e ao carnismo. Anacronismos à parte, essa mudança da instância do trabalho para a do lazer/prazer também acontece de alguma maneira em nível formal, sendo o padrão de rimas um de seus índices, levando de pasture spring e little calf até away/may e young/tongue.

Agora, o último verso, repetido no fim de cada uma das quadras, nos traz/faz um apelo, para que acompanhemos o eu do poema em seu jogo entre trabalho e prazer, entre produzir e desfrutar no pasto. A repetição funciona como sugestão do espelhamento dos dois blocos que compõem o texto e, apesar de parecer um convite despretensioso, é também uma confirmação da companhia, uma vez que a frase não é feita em forma de pergunta, mas de afirmação:

I sha’n’t be gone long.—You come too.

Não ficarei fora por muito tempo. – Você vem também.

A possível agressividade do pedido de companhia se dissolve ao longo dos versos anteriores a ela. Parece não haver dúvidas de que se trata não apenas de um bom companheiro (esse que convida), mas também de que será uma visita agradável ao universo do eu do poema e, metapoeticamente, do autor. A isso, somo o tom coloquial que Frost empresta a seus versos, criando joias a partir das pedras e dos cactos, dos cacos da língua, truncado nossas tentativas de captar ao mesmo tempo o som e o sentido.

Seria possível traduzir com precisão todos os elementos e também a narrativa? Ou estaria Frost certo, ao colocar que a poesia é o que se perde na tradução? Bom, alguma coisa realmente se perdeu em minha tradução (seja a literal, seja a literária), uma vez que a estrutura construída pelo poeta corrobora o contexto apresentado no poema, em uma relação simbiótica difícil de contornar e reproduzir. Porém, onde velhas relações desaparecem, as novas tomam seu lugar, e onde se lia spring, se tem novo, o que, se não servir como correspondente ideal, pelo menos traz um gostinho do molho da baiana, para o prato do Tio Sam.


Como já mencionamos em outro post, Robert Frost (1874-1963) não é um autor com grande circulação editorial no Brasil, tendo sido publicado em apenas uma edição, de 1969: Poemas escolhidos de Robert Frost; além de ter o livro A Boy’s Will (1913), disponibilizado integralmente na internet, sob o título de Ímpeto de menino (2012), traduzido por Ana Cristina Gambarotto, em sua dissertação.

Como ler poesia: dicas para desvendar o universo poético

Como ler poesia? Ler poesia é desafiador, mesmo para os leitores mais experientes. O que não quer dizer que não existam estratégias de análise que ajudem na empreitada. As informações a seguir pretendem ajudar você a se aventurar na leitura da poesia – e, quem sabe, ir até mais fundo nas suas experimentações.

O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema.

Décio Pignatari

Sintagma e paradigma

Segundo Pignatari, no livro O que é comunicação poética (Ateliê Editorial, 2011) a contiguidade (proximidade) e a similaridade (semelhança) são os dois processos de associação ou organização das coisas, que foram o eixo da seleção, chamado de paradigma, e o eixo da combinação, a que se chama sintagma.

Quando duas (ou mais) coisas se associam por características comuns a si, as associamos pelo eixo paradigmático (o da similaridade). Observe o mosaico abaixo, que ilustra a questão:

Certamente, é só bater os olhos para reparar que os objetos em questão, embora sejam das mais variadas naturezas, partilham de uma mesma cor, o verde, que é seu paradigma. Agora observe a seguinte imagem:

O cardápio acima oferece opções de sorvete, dentre os quais o consumidor deverá escolher o (ou os) que deseja. Se, além do sorvete, ele também escolhe um prato salgado e uma bebida entre as opções, ele irá criar um sintagma, ou seja, uma seleção ou reunião, a partir de escolhas dentro de conjuntos de pratos, bebidas e sobremesas.


Metáfora e metonímia

De acordo com o linguista Jakobson, a metonímia (a tomada da parte pelo todo) e a metáfora (a semelhança entre duas coisas, apresentada por uma palavra ou conjunto de palavras) são as duas figuras de linguagem que predominam nessa lógica, sendo que a metonímia prevalece no sintagma e a metáfora no paradigma.

Pensemos agora nas seguintes frases:

(a) Maria é flor.

Associamos as duas partes, sujeito e predicado, numa metáfora, por contiguidade, que aproxima não as duas palavras em si, mas as duas coisas: entre Maria e a “flor”, deve haver características comuns: o perfume, a delicadeza, ou algo mais. Agora leia a próxima:

(b) Flora é flor.

Nesse caso, além da metáfora do primeiro exemplo, temos ainda a semelhança entre as duas palavras “Flora” e “flor”, fazendo que a semelhança entre os objetos seja traduzida também nos sons das palavras que os designam. A semelhança dos sons entre palavras ou numa mesma palavra é chamada paronomásia, e é ela que possibilita o trocadilho e a poesia. Para facilitar, a metáfora aproxima a semelhança de duas coisas (significados), e a paronomásia, de duas palavras.

Quando o eixo da similaridade se projeta sobre o eixo da continuidade, é quando a linguagem apresenta a sua função poética – é o que concluiu Jakobson. Na terminologia de Pierce, a marca dessa função é a projeção do ícone sobre o símbolo (ou seja, transformar o símbolo, a palavra, em ícone: figura). Podemos ainda pensar nos termos do analógico que se projeta sobre o lógico.


Paronomásia

Exemplos são uma boa forma de entrar neste tópico. Então, diga, o que você observa em cada imagem abaixo?

As paronomásias podem ocorrer em diferentes formas: (i) a paronomásia propriamente dita, (ii) o anagrama, (iii) a aliteração e (iv) a rima. Os exemplos abaixo ilustram cada tipo, respectivamente:

1 — Paronomásia (propriamente dita)

Há soldados armados, amados ou não

— Geraldo Vandré

2 — Anagrama

Amortemor – Augusto de Campos

3 — Aliteração

Se Sara sarar do sarampo
Sara será sereia
pois sara não é feia
embora não seja um anjo
merece um solo de banjo

– Chacal

4 — Rima

Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?

– Cacaso

Ritmo

O ritmo se configura como a divisão no tempo e no espaço de elementos verbovocovisuais (verbais, vocais, visuais). Na linha ocidental, há quatro tipos básicos de ritmo, a serem mostrados a seguir.

(a) Binário ascendente

Um som fraco (breve) seguido de um forte (longo): – —

A coi-sa con-tra a coi-sa (Orides Fontela)

(b) Binário descendente

Um som forte seguido de um fraco: — –

es-sas plan-tas fo-ram vin-do (Ana Martins Marques)

(c) Ternário ascendente

Dois sons fracos seguidos de um forte: – – —

Pe-las on-das do mar sem li-mi-tes (Álvares de Azevedo)

(d) Ternário descendente

Um som forte seguidos de dois fracos: — – –

Fa-ses que vão e que vêm (Cecília Meireles)

Métrica

As possibilidades rítmicas da tradição luso-brasileira se configuram, em geral, por meio de algumas regras. Para conhecê-las, é preciso lembrar que:

(1) As sílabas são contadas apenas até a última tônica (sílaba forte);
(2) A sílaba terminada em vogal átona (fraca) faz elisão (ou seja, emenda) com a vogal átona seguinte, e por isso contam apenas como uma sílaba;
(3) Os acentos das regras são os obrigatórios, não excluindo as possibilidades de outros.

Vamos lá!

a) Versos de 5 e 7 sílabas

Acentue onde quiser. Os versos de 5 sílabas (os pentassílabos) são chamados de redondilha menor. Os de 7 (heptassílabos), redondilha maior.

U | ma | pa | la | vra | se | a | bre (Emily Dickinson)

b) Versos de 8 sílabas

Os acentos tônicos vão na 4ª e na 8ª, ou então na 2ª (ou 3ª), na 5ª e na 8ª.

c) Versos de 9 sílabas

Acentos na 3ª, 6ª e 9ª sílabas ou na 4ª e na 9ª.

d) Versos de 10 sílabas (decassílabos)

Acentos na 6ª e na 10ª, ou na 4ª, 8ª e 10ª.

e) Versos de 11 sílabas (hendecassílabos)

Acentos na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª, ou na 5ª e na 11ª, ou ainda na 3ª , 7ª e 11ª.

f) Versos de 12 sílabas (Alexandrinos)

Há três tipos:

  • Acentos na 4ª, 8ª e 12ª – o mais fácil e comum.
  • Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que o da 6ª caia em palavra oxítona, marcando o meio do verso.
  • Acentos na 6ª e na 12ª, de modo que a 6ª caia em palavra paroxítona terminada em vogal átona, de modo a fazer elisão (emendar) com a vogal átona seguinte, formando a 7ª sílaba.

Os versos que possuem métrica mas não rima são chamados de versos brancos, enquanto aqueles que não se valem de nenhum dos dois se chamam versos livres.


Rima

Apesar de ser tipicamente reconhecida como paronomásia, as rimas merecem um tópico à parte. Elas são, via de regra, as semelhanças entre os sons que se encontram verticalmente no final dos versos. As rimas mais previsíveis (ar, ão, eira, osa, etc.) são menos prestigiadas, porque informam menos. Rimas menos prováveis informam mais, e por isso têm mais crédito. A rima também pode ocorrer dentro do próprio verbo, como faz Poe em O Corvo, ou ser incompleta (toante), quando só as vogais se assemelham, como no exemplo abaixo:

Pode ser magrela, pode ser retinta
Porte de gazela, olho de leoa
Ser muito versada e hábil com a língua
Do tipo que domina idiomas
Mas ela não samba (...)

Já Reparô? – Adriana Calcanhotto

Os tipos de Pound

Ezra Pound define três tipos fundamentais de poema. São eles os que se sobrepõe a fanopeia, a melopeia ou a logopeia.

Na fanopeia… sobressaem as imagens, as comparações e metáforas.
Na melopeia… sobressai a musicalidade.
Na logopeia… as ideias são o principal, e por isso se aproxima mais da prosa.

No poema acima, de Leminski, qual das três correntes parece predominar? E no trecho a seguir, de Fernando Pessoa?

Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo 
(...)

"Tabacaria" – Fernando Pessoa

Outros caminhos

O poema ao lado, de Anatol Knotek, além de brincar com os sentidos das palavras, se atreve também a pensar sua forma no papel. Ela não obedece a lógica linear comum dos poemas tradicionais, e trabalha em conjunto os significados dos signos (as palavras), o desbotamento da cor e o sumiço de certas letras, criando novas percepções.

O poema abaixo, de Antero de Alda, também não se permite ler pela lógica tradicional. Ele pressupõe seu “desenho” como parte indispensável da leitura, não podendo, por isso mesmo, se reduzir às palavras que o compõem. Veja você!

Também o poema O Pulsar, de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso, partilha desse jogo de sentidos que se dá por meio dos desenhos do próprio poema:

Poema de Augusto de Campos / Canção de Caetano Veloso

Para encerrar, deixo para vocês a sugestão de leitura que inspirou este post, o livro O que é comunicação poéticade Décio Pignatari. Outras leituras que podem inspirá-los também se encontram em ABC da Literatura, de Ezra Pound, Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, Linguística e Comunicação, de Jakobson, O Que é Poesia Marginal, de Glauco Matoso, e O Arco e a Lira, de Octavio Paz.

O que a Música Popular Brasileira tem a ver com literatura?

Confira nossa série de vídeos sobre Literatura e MPB no YouTube.

Abertura

Qual é a música mais antiga que você conhece? E o poema? Você sabia que o Epitáfio de Seikilos é uma composição grega, gravada em uma lápide construída há mais ou menos 2000 anos atrás? Ele é considerado uma das canções mais antigas do mundo e, curiosamente, é entendido tanto quanto música, bem como literatura.

Essa caracterização só é possível porque música e literatura estão, desde os tempos mais antigos, ligadas entre si. Se pegarmos, por exemplo, o caso dos poemas épicos de Homero ou as cantigas medievais, observamos que a relação entre uma melodia e uma letra é antiga e não exclusiva de nossos tempos modernos e contemporâneos. Na esteira dessa antiga tradição, criada pela soma de duas artes, é que se desenvolveu a muito custo a canção popular, tipo de composição que coloca em interdependência e harmonia a poesia e a música.

A proposta deste texto é apresentar para você três pontos de contato entre a música popular e a literatura. Evidentemente, as produções de canção ao redor do mundo remontam história tão distintas quanto antigas. Mas nos detenhamos no caso específico do Brasil!

Estudo

Primeiro movimento – histórias

Não cabe aqui fazer uma longa introdução à história da canção em terras brasileiras, basta saber que sua criação e desenvolvimento está intimamente ligada ao processo de modernização do país, acompanhando de perto a evolução das redes de comunicação, como o jornal, o rádio e a televisão. Mais importante que a historiografia musical em si, parece ser a convivência íntima entre letristas e poetas ao longo do século XX, alimentando reciprocamente seus campos de produção (lembro aqui o caso de destaque de Vinicius de Moraes, que migrou do poema impresso para a música popular e o poema falado) o que contribuiu para o desenvolvimento de uma história da canção comunicante com a história da literatura.

Eis uma primeira relação entre a Música Popular Brasileira e a literatura: suas histórias e produções interdisciplinares.

Musicalização do soneto São demais os perigos desta vida

Neste texto, ainda que limite a descrição histórica aos dois parágrafos anteriores, deixarei a indicação de alguns trabalhos que não podem faltar em sua biblioteca sobre a canção popular do Brasil.

Caso você procure uma abordagem mais histórico-social, os trabalhos de Franklin Martins (à direita), de Jairo Severiano (Uma história da Música Popular Brasileira, 2008) e de José Ramos Tinhorão são indispensáveis. Eles nos contam, de forma minuciosa, a trajetória e as mutações pelas quais a canção passou, até que encontrasse formas consolidadas: o samba, a canção de protesto, o sertanejo etc.

Para os fãs de análises literárias e de flertes entre teoria da literatura e música popular, temos autores como Affonso Romano de Sant’Anna, com seu livro Música popular e moderna poesia brasileira, de título autoexplicativo, e também temos Augusto de Campos, célebre poeta e crítico brasileiro, que, em seu Balanço da bossa e outras bossas (1974), tece relações muito perspicazes sobre a canção, a literatura e os movimentos de vanguarda.

Evidentemente, existem outras perspectivas tão instigantes como as mencionadas acima. É o caso da abordagem intermidiática, à qual nos apresenta a pesquisadora Solange Ribeiro, no texto Canção: letra x estrutura musical; e da semiótica da canção, que tem Luiz Tatit como seu patrono.

Cada um desses percursos nos oferece uma gama de possibilidades para interpretar a canção brasileira e, pensando que a proposta deste texto é aproximar a MPB e a literatura, eu o incluo na segunda das chaves de pesquisa que mencionei acima: uma abordagem literária da canção.

Segundo movimento – Letra de canção é poema?

Com o constante intercâmbio de leituras entre os letristas e os grandes poetas da literatura moderna no Brasil, as letras de canção passaram a ser analisadas por alguns pensadores a partir de recursos que antes eram utilizados exclusivamente para o estudo literário. Esse tipo de análise pode ou não incluir a melodia da canção, e essa opção é o primeiro passo para responder à pergunta: letra de canção é poema? E aproximar, outra vez, os dois grandes campos de estudos, musical e literário.

Se você considerar a integração entre letra e melodia, a resposta para a pergunta certamente é não. Isso se dá, porque uma nova camada de significados e linguagens entra na análise, tornando necessária a utilização de uma abordagem como a da semiótica da canção, eficaz na construção de sentidos suscitada pela integração entre o que é falado e o que é tocado. No entanto, se optarmos pelo caso contrário, separada a melodia das letras, essa pode muito bem vir a ser chamada de poema. E, abaixo, demonstrarei o porquê.

Em termos de literatura, a crítica construiu, ao longo de muitos anos de tradição e crítica, um repertório de conceitos para análise, em que estão presentes tanto elementos técnicos de composição e classificações de acordo com a estrutura (sonetos e redondilhas, por exemplo); bem como elementos de análise do sentido – os lexemas, as metáforas, as imagens – remoídos e talhados pelas incontáveis poéticas ao longo dos séculos.

A título de confirmar a validade de uma leitura das letras a partir dos procedimentos mencionados acima, vejamos como eles aparecem em um pequeno trecho, retirado da clássica canção Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Trata-se dos versos finais da canção:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

Começando por uma abordagem formal, identificamos já de saída um grupo de rimas – em -ÃO e em -IDA – e uma estrutura fixa, que se repete em todos os versos: decassílabos, construídos com a primazia de um parnasiano, com marcação nas sílabas 3-6-8-10, podendo ser caracterizado como metro martelo, típico de cantigas e cordéis:

mas – a – LU – a – fu – RAN – do – NOS – so – ZIN (co)
sal – pi – CA – va – d’es – TRE – las – NOS – so – CHÃO

Além disso, a letra presenteia o leitor/ouvinte com um enjambement – corte de um verso para o outro – belíssimo nas duas estrofes finais:

sem saber que a ventura dessa vida
é a cabrocha, o luar e o violão.

Já no que diz respeito à semântica do texto, temos a metáfora principal, que inclusive dá seu título, chão de estrelas. É uma imagem extremamente inovadora e muito rica, que, além de propor a equivalência entre o universo popular do morro e o erudito das escolas literárias – no qual uma cena própria à natureza e ao bucolismo irrompe em um barracão –, concede ainda mais força à outra personagem da canção: a mulher. Retratada pela voz principal como pomba-rola que voou, essa antagonista pisa nos astros distraidamente, gesto que inclusive alcança seu admirador, graças à polissemia da palavra “estrela”, que também é utilizada como adjetivo para artistas, sinônimo de “famoso”, “popular” etc.

Tu pisavas nos astros, distraída

A partir de uma análise que leva em conta os dois aspectos – formal e semântico – para a leitura das letras de canção, observamos como os elementos constitutivos das letras são muito similares, para não dizer idênticos, àqueles próprios à poesia impressa. Só que, além dessa aproximação por via das técnicas, temos também um similaridade de tradições e de referências, o que nos leva ao próximo tópico.

Variação

Terceiro movimento – tradição e intertextos

A ideia de apropriação das formas e imagens é comum e natural para os desdobramentos de qualquer arte e, sendo tão próximas na forma e na técnica, as correntes literárias e os ciclos de canção com toda certeza criaram pontos de comunicação.

Um artista que faz frequentemente deslocamentos da tradição literária para a musical em suas canções é Chico Buarque de Holanda. Em vários dos álbuns, e até mesmo em suas composições para o teatro, encontramos letras que são traduções de outros textos e melodias. É o caso da composição de Joe Darion e Mitch Leigh, The imposible dream, para a qual o compositor brasileiro, junto de Ruy Guerra, propõe uma tradução curiosa.

Sendo também escritor e um grande leitor dos poetas modernos, Chico Buarque, para a tradução feita com Ruy Guerra, insere nos versos finais uma imagem que pode ser lida como referência a um célebre poema de Carlos Drummond de Andrade:

E assim, seja lá como for
vai ter fim a infinita aflição
e o mundo vai ver uma flor
brotar do impossível chão.

A imagem da flor que brota do chão entra em sintonia direta com aquela que o poeta itabirano utiliza “A flor e a náusea”, de A Rosa do Povo (1945):

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Encontramos um caso parecido de referência sutil na canção “Disparada”, de Geraldo Vandré. Se trata de uma intertextualidade ou menção velada à umas das passagens mais célebres da peça Hamlet, dita pelo próprio príncipe da Dinamarca.

The time is out of joint. Oh, cursed spite,
that ever i was born to set it right

Muitos tradutores de Shakespeare encararam com dificuldade a complexidade e a dimensão que os versos do dramaturgo inglês suscitam. Na tradução de Millôr Fernandes, por exemplo, temos o seguinte:

Nosso tempo está desnorteado. Maldita a sina
Que me fez nascer um dia pra consertá-lo!

Ele consegue preservar o sentido principal da frase e a rima entre os versos passa a ser interna e toante, entre desnorteado e consertá-lo. No caso da letra de Vandré, a solução aparece de forma distinta e é particularmente encantadora a simplicidade com que ele a constrói:

E a morte, o destino, tudo,
a morte e o destino, tudo
estava fora do lugar,
eu vivo pra consertar

Desdobrado em quatro versos, a rima é rica, como no caso shakespeariano, e está nos dois últimos. Intencional ou não, há claramente uma sintonia com as palavras de Hamlet, recontextualizada e adaptada para a jornada retirante que a canção expressa.

Além dessas referências pontuais, existem ainda aquelas que são diretas, como a canção Lobo bobo, interpretada por João Gilberto em 1959; ou mesmo a Terceira margem do rio, de Milton Nascimento e Caetano Veloso, canções que se apropriam diretamente de um texto literário e lhe concedem nova roupagem.

Nos exemplos acima, observamos com nitidez o alinhamento entre a música popular e a literatura, o que se dá, nesse caso, por vias da referência e da intertextualidade. Gostaria de acrescentar, ainda, que há também a constituição de uma tradição interna na canção, na qual as referências são próprias ao seu universo:

Lembremo-nos rapidamente dos seguintes versos de Chão de estrelas:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão

Agora, vejamos outra composição, Como dois e dois, escrita por Caetano Veloso, e consagrada na voz de Roberto Carlos:

A mesma porta sem trinco
O mesmo teto,
E a mesma lua a furar
Nosso zinco

Fugindo da estrutura fixa de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, e se apoiando em versos escritos com maior liberdade métrica e rítmica, essa repetição da imagem da lua furando o teto de zinco aponta para a formação de um repertório próprio à canção popular. Esse diálogo se intensificou com o avançar do século XX e com a consolidação dos meios de distribuição e gravação das canções.

Cabe lembrar que, se de um lado temos esse movimento no qual a canção vai ao encontro da literatura, do outro a literatura vai ao encontro da canção.

Machado de Assis é um bom exemplo de literato que se interessava pelo meio popular e mais especificamente pelo ritmo e musicalidade populares. O conto Um homem célebre, objeto de estudo de José Miguel Wisnik, no livro Machado Maxixe, está entre as narrativas do autor que apresentam claramente esse interesse. Também, um escritor contemporâneo – Luiz Antônio de Assis Brasil – faz essas aproximações entre música e literatura (apesar de as letras de canção não serem o destaque em seus textos).

É preciso dizer, ainda, que, no Brasil, as duas artes já participaram abertamente de um mesmo movimento estético: o tropicalismo, que muito contribuiu para a criação de um cenário rico tanto teoricamente quanto artisticamente, e isso beneficiou ambas as artes.

Fuga

Por fim, compartilhando os métodos e lançando mão de tantas referências e minúcias, as letras de canção são um objeto instigante para a análise literária e esse olhar analítico (para ler poemas, principalmente) concede a elas uma roupagem nova, um novo olhar, que contribui para a expansão do conceito de literatura e de poesia e para uma melhor compreensão dos traços específicos que separam e aproximam as duas artes.

E que tal curtir uma playlist que conta uma história do Brasil através da música?

A dramática normativa e a poesia em prosa de Baudelaire

XL – O espelho

Um homem horrendo entra e se observa no vidro.
“– Por que você se olha no espelho, se não se pode se ver nele senão com desprazer?”
O homem horrendo me responde: “– Senhor, segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em direitos; portanto eu possuo o direito de me olhar; com prazer ou desprazer, isso só diz respeito à minha consciência.”
Em nome do bom senso, eu tinha sem dúvida razão; mas, do ponto de vista da lei, ele não estava errado.

(CHARLES BAUDELAIRE, Le spleen de Paris)

Não fosse o nome do autor denunciado em suas referência acima, talvez o leitor não desconfiasse que O espelho (traduzido por mim) se trata de um poema, incluído na antologia Le spleen de Paris (1869). Isso porque seu tom fabulesco, sua forma sem rima nem métrica, seu conteúdo pouco voltado às imagens clássicas da poesia tradicional – embora, na contramão, também fale da beleza –, ou sua formatação desprovida de estrofes e de versos saltados, não correspondem às expectativas que criamos acerca do que é e de como se faz um poema, mesmo para os mais experimentados. Pausa.

1
Primavera de 1624. Em Darlane, o general Oxenstjerna recruta tropas para a campanha da Polônia. A vivandeira Anna Fierling, conhecida pelo apelido de Mãe Coragem, fica sem um de seus filhos.

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

9
Já está durando dezessete anos a grande guerra religiosa. A Alemanha perdeu mais da metade dos seus habitantes. Violentas epidemias exterminaram os que sobrevivem à morte nas batalhas. Nas regiões outrora exuberantes campeia a fome. Lobos percorrem as cidades reduzidas a escombros. No outono de 1634, encontra-se Mãe Coragem na montanha alemã de Fichtel, longe da estrada por onde passa o exército sueco. Nesse ano, o inverno veio cedo e com rigor. Os negócios vão mal, o jeito é mendigar. (…)

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

Mãe Coragem e Seus Filhos (Mutter Courage und ihre Kinder), na célebre interpretação com Helene Weigel.

Entramos agora em outro campo: excertos da peça Mãe Coragem e Seus Filhos (1939), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Bastante distante em temáticas, estéticas ou proposições, e consideravelmente distantes no tempo, as obras de Brecht e de Baudelaire, como as trazidas aqui, possuem uma séria semelhança. Alguém se arrisca?

Assim como os poemas em prosa do poeta francês não se encaixam nos moldes da poesia tal como prescrito pelas “normas” dos gêneros, tampouco os trabalhos brechtianos podem ser entendidos por e simplesmente dramas.

Relembrando, os três grandes gêneros literários: a épica, a lírica e a dramática, (muito) reduzida e simplisticamente compreendidas como narração, poesia e teatro, respectivamente. Ora, e o que acontece nos casos dos autores trazidos? Para o alemão, o próprio nome do seu teatro o anuncia: o teatro épico. Para Baudelaire, a poesia é em prosa – uma poesia épica? Uma proesia? Brinco.

À parte seus distintos propósitos em uma e outra criações, tais autores se aproximam ao mesclar não os tipos textuais, mas os gêneros em si – que embora dificilmente obteriam alcançar uma pureza completa, se afastam ainda mais dessa medida quando pensamos exemplos como estes.

Por isso mesmo, se entendemos os gêneros como matrizes para a criação artística, é indispensável reconhecer a igual importância da sua subversão. O que Brecht cria nos trechos trazidos é inconcebível para a dramática normativa, que se fixa, de acordo com Peter Szondi, autor de Teoria do Drama Moderno, no pilar da ação inter-humana transcorrida no tempo presente, resumidamente. Tempo, contudo, é o que não se faz presente em Mãe Coragem e Seus Filhos, quando muitos anos se passam através dos saltos cronológicos entre um e outro episódios. Dialógica, tampouco é a forma encontrada em tais trechos, que denunciam a narrativa nas descrições e na ausência de enunciador, o que por sua vez impede o caráter inter-humano.

Ainda que sejam exemplos apenas dos princípios dos episódios (ou atos, ou capítulos) brechtianos, e que outras partes do texto se aproximem mais dos elementos que configuram o drama tradicional, tais recursos não são lançados ao azar, como se revela na auto-teorização feita em seu Pequeno órganon para o teatro. Pelo contrário, o teatro épico tem por objetivo alcançar o efeito de distanciamento que obrigue à reflexão, ao raciocínio crítico, e que por meio dessa estranheza seja capaz de despertar o espectador do sono da alienação.

O caso de Baudelaire talvez não seja tão engajado ou mesmo tão exemplar. Sua proposta, mais estética que propriamente política, influencia uma gama de escritores da sua sucessão, inclusive vocês-sabem-quem (abaixo). Ao abrir mão dos valores regentes da construção poética, o poeta subverte ainda mais o que por si só já é anárquico – a própria poesia. Cria, em consequência, a abertura para outros fazeres e pensares artísticos que não se pretendem regra de ouro.

Na realidade, o que Baudelaire faz, seu grande mérito, não é um “manifesto da poesia em prosa”: antes, é lançar sobre a tradição um olhar que a absorve sem por ela se deixar prender. O que em muito difere de Brecht, para quem o futuro do drama é o drama épico, motor das convulsões e revoluções sociais pela arte.

Fica do texto para o leitor a proposta de aguçar a visão para notar esses fenômenos, hoje ainda mais e sempre recorrentes, que movimentam a arte contemporânea não para uma, mas para todas as direções, expandindo-se… Até onde? De presente, um poema (um poema, sim, senhor) do nosso querido itabirano:

O OPERÁRIO DO MAR

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Sentimento do Mundo)

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