Três poemas de Henriqueta Lisboa

Desde que entrei na Faculdade de Letras da UFMG e tomei conhecimento do Acervo de Escritores Mineiros (AEM), criei um caso antigo com alguns dos autores e autoras que estão naquela casa. O espaço, uma mistura de museu, biblioteca, galeria de arte e arquivo, ficava àquele tempo na Biblioteca Central da universidade, sendo aberto para visitações do público em geral. Em um dos passeios que fiz lá, conheci Henriqueta Lisboa.

Melhor dizendo: aprendi seu nome, pois levaria uns anos para entrar em contato com a obra que a escritora produziu. Lembro-me agora de que chamou minha atenção àquela época o fato de ser um dos maiores acervos do AEM: com livros, cartas, objetos, mobília etc., tudo da autora. Também fiquei encantado com o fato de um dos meus professores, Reinaldo Marques, estar então organizando a publicação da obra completa de Henriqueta Lisboa, o que colocava toda aquela pilha de papeis em um formato condensado e mais acessível, que podia levar para casa.

Henriqueta Lisboa. Reprodução Arquivo AEM.

Isso tudo foi em 2016… Mas só agora, ao fim de 2023, adquiri a obra reunida da autora. 

Trata-se de uma box, organizada em três volumes e publicada pela Editora Peirópolis. Tendo saído da esfera do privado para o público, quando o acervo chegou à UFMG, agora, com a organização de Reinaldo Marques e Wander Melo, a obra de Henriqueta faz o caminho contrário e volta, do público para o privado. 

É com a intenção de entrar nessa equação, que não só gravei um vídeo sobre a obra completa de Henriqueta Lisboa, comentando dois de seus textos, como também compartilho aqui no Duras Letras três poemas da autora.

Serenidade

Serenidade. Encantamento.
A alma é um parque sob o luar.
Passa de leve a onda do vento,
fica a ilusão no seu lugar.

Vem feito flor o pensamento,
como quem vem para sonhar.
Gotas de orvalho. Sentimento.
Névoas tenuíssimas no olhar.

Tombam as horas, lento e lento,
como quem não nos quer deixar.
Êxtase. Vésperas. Advento.

Ouve! O silêncio vai falar!
Mas não falou…Foi-se o momento…
E não me canso de esperar”.

Convite

Eu sou amiga dos que sofrem.

Aproxima-te do meu coração, Amado.
Amado, conta-me teus segredos.
Onde nasceu a tristeza que nos teus olhos mora,
que causa tem a palidez que unge teus lábios
e esse tremor que tuas mãos comunicam às minhas?

Por que não vens, à hora confidencial do crepúsculo
sobre o banco de pedra esquecido entre as árvores,
junto à fonte chorosa
e os afagos do vento perfumado de flores,
derramar no meu coração
as palavras reveladoras
que me fariam participar da tua amargura,
do teu desespero,
ou simplesmente do teu cansaço de viver?…

Quando desfalecesse a tua voz em sussurro
e o luar surgisse acariciando o céu em penumbra,
talvez, Amado, talvez sorrisses,
vendo aflorar nos meus olhos noturnos
a lua pequenina da lágrima.

Prisioneira da noite

Eu sou a prisioneira da noite.
A noite envolveu-me nos seus liames, nos seus musgos,
as Pelas atiraram-me poeira nas pestanas,
s dedos do luar partiram-me os fios do pensamento,
os ventos marinhos fecharam-se ao redor de minha cintura.

Quero os caminhos da madrugada e estou presa,
quero fugir aos braços da noite e estou perdida.
Onde fica a distância? Dizei-me, ó Peregrinos,
K e. fica a distância da qual me chegam misteriosos apelos?
Alguém me espera, alguém me esperará para sempre,
porque sou a prisioneira da noite.

A noite me adormenta com suas flautas esflorando veludos de pêssego,
a noite me enerva com suas grandes corolas desmaiadas nos caules,
vejo madressilvas com os pequenos dentes de pérola sorrindo enlaçadas aos troncos fortes,
e o frio da noite é um desejo de faces aconchegadas,
e há tepidez nas grotas verde-negras, tão próximas… 

Oh forças para caminhar! Forças para vencer o inebriamento da noite,
forças para desprender-me da areia que canta sob meus pés como cordas de violino,
forcas para pisar a relva macia e tenra com suas gotas de sereno,
forças para desvencilhar-me dos afagos numerosos do vento!

Na noite não posso ficar como uma rosa pendida 
porque o homem solitário viria tomar-me pela mão
imaginando que sou a que procura amor.

Na noite não ficarei com a túnica esvoaçante e os cabelos em desordem,
porque uma criança poderia pensar que sou a louca sem pouso,
na noite não, porque a velhinha trêmula viria perguntar-me se acaso sou a sua filha desaparecida.

Oh! Quem me ensina os caminhos da madrugada?
Por que não se acendem agora, sim, agora, os candelabros das igrejas?
Por que não se iluminam as casa onde há noivas felizes?
Por que de tantas estrelas no céu ao menos uma não se desprende
para vir pousar no meu ombro como um sinal de esperança?

Tenho um encontro marcado há longo, longo tempo…

Mas não chegarei porque sou a prisioneira da noite.

Três poemas de Jorge Luis Borges

Antes dos três poemas de Jorge Luis Borges

Algumas palavras iniciais. Sempre que volto ao livro Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista, organizado por Augusto de Campos, fico admirado com a habilidade de Jorge Luis Borges em manter acesa a chama que o tornou um clássico da literatura, escrevendo poemas profundos e com uma sonoridade belíssima, apesar de parecerem anacrônicos, com formas fixas e já supostamente ultrapassadas.

Um pouco de contexto acaba justificando a escolha do escritor argentino: estava cego, portanto as formas fixas tornavam mais fácil a tarefa de compor, com suas métricas, rimas etc. dado que, na minha opinião, só acrescentam mais uma camada de beleza à coisa toda (como um Homero, quem sabe? Ou como um Joyce?). 

Enfim, resolvi disponibilizar aqui três poemas de Quase Borges de que gosto bastante, porque tocam no ponto biográfico, mas também porque mostram uma característica de Borges que admiro muito: ele é um exímio leitor. As traduções usadas são assinadas por Augusto de Campos (responsável por Quase Borges), e acompanham em qualidade e beleza os poemas feitos pelo velho poeta.

James Joyce

Em apenas um dia estão todos os dias 
Do tempo, desde aquele inconcebível
Dia inicial do tempo, em que o terrível
Deus prefixou os dias e agonias

Até aquele em que o ubíquo rio
Do tempo terrenal torne à nascente,
Que é o Eterno, e se apague no presente,
O futuro, o que foi e o que ora expio.

Entre a aurora e a noite está a história
Universal. Vejo, do fundo breu 
A meus pés o caminho do hebreu,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
Para escalar a escarpa deste dia.

Xadrez

I

Em seu grava rincão, dois jogadores
Regem peças, sem pausa. O tabuleiro
Os prende até a aurora no certeiro
Âmbito em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
As formas: torre homérica, ligeiro
Cavalo, audaz rainha, rei guerreiro,
Bispo oblíquo e peões ameaçadores.

Quando os rivais já se tiverem ido
Quando o tempo os houver já consumido,
Por certo não terá cessado o rito.

O Oriente é a origem dessa guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

II

Tênue rei, bispo em viés, encarniçada 
Rainha, torre à frente e peão alerta
No branco e negro de uma estrada incerta
Buscam e travam a batalha armada.

Não sabem que da mão predestinada 
Do jogador depende o seu destino,
Nem sabem que um rigor adamantino
Sujeita-lhes o arbítrio e a jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(Segundo Omar) de um outro tabuleiro
De negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que deus atrás de Deus o ardil começa
De pó e tempo e sonho e agonia?

Poema dos dons

Ninguém rebaixe a lágrima ou censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu mil livros e uma noite escura.

Desta terra de livros fez senhores
A olhos sem luz, que apenas se concedem
Sonhar com bibliotecas e com cores
De insensatos parágrafos que cedem

As manhãs ao seu fim. Em vão o dia
Lhes oferta seus livros infinitos,
Árduos como esses árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (narra a história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu erro sem cessar pelos confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, eras, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento nas sombras, a penumbra e o nada
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Como uma biblioteca refinada.

Algo, que nomear ninguém se atreva
Com a palavra acaso, arma os eventos;
Outro já recebeu noutros cinzentos
Ocasos os mil livros e esta treva.

Ao errar pelas lentas galerias
Chego a sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, tendo dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
De um eu plural e de uma mesma mente?
Que importa o verbo que me faz presente
Se é uno e indivisível o dilema?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida poeira vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.

Poema em prosa – “Moços”, de Otávio Moraes

E o assunto era o sexo, falavam, falavam, falavam demais, mais que demais, um acinte. Sentados os três, me subtraio da equação pois eu em nada estava presente, diziam de foder e de transar, delícias, enfim. O leitor não me interprete mal, não sou dessas alminhas recatadas, gosto sim de sexo, sexo não me cai mal.

Porém, me interesso muito pouco por aquilo que virou o sexo. Sim, eu sei, pareço um desses velharões costurando saudades, remoendo uma vida inteira do que poderia ter sido, mas não foi. Tenho lá minha bagagem, deixei algo na estrada, mas quem não tem? Ao fundo, em tons retorcidos de aparelho de áudio moribundo, Caetano canta:

Mas não tem revolta, não
Eu só quero que você se encontre
Ter saudade até que é bom
É melhor que caminhar vazio.

Voltemos ao sexo, sim, pois bem. O que me incomoda, talvez sim velharão, é que não, tudo às claras. Não, tudo em palavras. Não censuro, indecências, insolências, maledicências. Também tenho minha porção de palavras boas, fortes e frágeis com as quais canto, delicado, meus desejos de homem maduro. Mas acontece que, talvez ridículo, romântico, raquítico no amor, eu busque algo de ninar entre os cochichos ao pé do ouvido. Nada me desconvence de que gemer é chamar a mãe.

Afinal, a nudez é algo tão frágil, tão forte. O corpo, só corpo, deslizando aos borbotões entre o suor e o sêmen. Pensando assim, é bonito, mas bonito em silêncio. Eles, do silêncio não sabem nada. Ficam narrando e narrando e narrando. Não sabem os moços nada sobre o silêncio. Não sabem os moços que o fundamental, para muito além desse papo de pau, se diz calado, ainda que o silêncio assuma um idioma de ruídos, gemidos, mordidas, saliva e ruminação.

Agora canta Lupicínio:

Esses moços, pobres moços.
Ah! Se soubessem o que eu sei.

Eu vou embora.

Três poemas de “Educação pela pedra”, de João Cabral de Melo Neto

Há certa convenção de que Educação pela pedra é o livro no qual o poeta João Cabral de Melo Neto levou mais longe sua “engenharia poética”. Livro formado por vinte e quatro poemas com uma simetria que encanta – sendo quatro seções, de seis poemas cada e muitas repetições de forma e de sentido –, o livro lançado em 1966 é considerado um marco divisório para a lírica de Cabral, para a qual elementos que vinham sendo apresentados em obras anteriores ganham uma dimensão diferente e um tanto quanto desafiadoras. Educação pela pedra conta ainda com alguns dos poemas mais emblemáticos e aclamados do autor pernambucano, entre os quais estão o próprio poema homônimo: “Educação pela pedra”, mas também “O sertanejo falando”, “Tecendo a manhã” e “Catar feijão”.

Na publicação de hoje, resolvi trazer outros textos também de altíssima qualidade e que fogem um pouco dessa “santíssima quaderna” que está presente no livro de 1966: “Duas das festas da morte”, “O urubu mobilizado” e “A fumaça no Sertão”. Os três fazem parte da primeira seção do livro de Cabral – intitulada Nordeste A – e versam sobre alguns dos temas mais caros ao escritor: a morte e a vida sertaneja, já canonizada em sua lírica, pelo menos desde Morte e vida Severina.

No mais, espero que vocês aproveitem a leitura!

Duas das festas da morte

Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua,
ora seu próprio vivo, em dia de posse.

Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique,
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e, aliás, com uma boneca de verdade.

O urubu mobilizado

Durante as secas do Sertão, o urubu,
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.

Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.

A fumaça no Sertão

Onde tampouco a fumaça encorpa muito;
onde nem pode o barroco mil folheiro
da mangueira matriarca, corpopulenta,
de que na Mata a fumaça finge o jeito.
Nem o barroco, mais torto mas rasteiro,
de quando a fumaça se faz em cajueiro.

Onde também a fumaça encorpa pouco;
onde nem pode encopar-se de tão rala,
tanto quanto o ar ralo por que arvora
o fio da árvore que pode, desfiapada.
Onde porém, porque não pode o barroco,
ela pode empinar-se essencial, unicaule;
unicaule, mas bem diversa do coqueiro,
incapaz de ir linheiro ao empinar-se;
unicaule mais bem de palmeira a prumo,
de uma palmeira coluna, sem folhagem.

Poema em prosa – “Quimera”, de Otávio Moraes

Foto de capa: Reflection with Two Children (Self-portrait) (1965) – Lucian Freud. Disponível em: dasartes.

Manhã, domingo, céu bembranco, o tempo preguiçando. Homem velho, contra o espelho, assemelhando avô velho. Homem velho é o desde sempre. Posição desigual cabe ao moço, mocidade é o mundo no novo, Deus, antes da canseira, brincandopracimadaságuas. Moço, ainda verde, é pai e mãe do próprio umbigo. Assim ruminava; assim nebulava; assim deduzia; o homem velho concreto e irreversível, tudo isso estanciado na cama. Homem velho, felino malpropício despelando preguiçoso, coçava as costas, ainda cabia n’um corpo. Filhos? Dois’homem pais d’outros home num sem-fim de picas ao leu. Casado? Uma vez, depois amasiado, depois desacompanhado de tudo. Sobraram zolhos molhados d’um vermelho raivechoro. O homem velho absurdava, nos redemonomes: Zumira, Raian, Bonifácio, Almeida, Soraia, Luzia, Carlão, Lucinda, Jeremias, Itamar, Clarice, Emília, Josué, Euclides, Nair, Leopoldo, Nara, Tadeu, Zumira, Pedro Henrique, Margareth, Lu… O homem velho trepava sonambulento o corpo das putas, ancas cor de canela, pernabraços, língua enorme avançando, seu sexo, um colar, cabeças de homem, febrava, ardia, água, mel e leite.  Nublava no catre, arquipélago de nomes, calava. Domingo é o breu, as águas bem frias. Domingo, folgava. Homem velho é mundo, mundo desalumiando gato manso,

Homemvelh…

Nem isso.

https://durasletras.com/wp-content/uploads/2022/07/04-o-homem-velho-1.mp3
“O homem velho” – em Velô (1985), de Caetano Veloso

Poemas de amor: de Catulo para Lésbia e outros amantes

Caio Valério Catulo (c. 87-c. 54 a.C.) foi um poeta latino muito inventivo, apaixonado e de quem sabemos pouco. Dizem que nasceu em Verona e que viveu boa parte de sua vida em Roma, transitando entre personalidades importantes da política e da arte da época, em um período conturbado da história. Simultaneamente adolescente e maduro, Catulo amou a Clódia (sua Lésbia), uma mulher de família tradicional, com quem viveu encontros amorosos e a quem dedicou uma série de poemas de amor, mas também de escárnio, zombaria e de baixaria.

Como restaram apenas fragmentos da maior parte de seus antecessores e contemporâneos também poetas, alguns pesquisadores consideram que estes poemas escritos por Catulo para Lésbia e outros amores fazem parte da primeira obra consistente de poesia lírica latina – compõem o Liber Catulli (O livro de Catulo) –, que é uma possível antologia antiga, reunindo os poemas supostamente escritos pelo poeta de Verona.

Agora, fora toda essa lenga lenga histórica e contextual, para mim, Catulo é meu motivo latino, meu convite a conhecer sua língua (a da boca?) e uma de minhas paixões anacrônicas: é um poeta de meu cânone pessoal. Foi por esse motivo que decidi trazer um pequeno compilado com sete de seus poemas, especificamente aqueles em que o amor, às vezes debochado e violento, está em primeiro plano. As traduções são de João Angelo Oliva Neto, de sua versão integral da obra de Catulo: O livro de Catulo, publicado pela Edusp.

Espero que vocês aproveitem a leitura! ♥


5.

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores dos velhos mais severos,
a todos, voz nem vez daremos. Sóis
podem morrer ou renascer, mas nós quando breve morrer a nossa luz,
perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
muitos mil, depois outros sem fim, dá
mais mil ainda e enfim mais cem – então
quando beijos beijarmos (aos milhares!)
vamos perder a conta, confundir,
p’ra que infeliz nenhum possa invejar,
se de tantos souber, tão longos beijos.
7.

Perguntas, Lésbia, quantos beijos teus
bastam p'ra mim, e quantos são demais.
Quantos sejam os grãos de areia Líbica
a jazer em Círene, em láser fértil,
entre o templo de Júpiter ardente
e de Bato vetusto o sacro túmulo;
quantas estrelas dos homens testemunham
(furtivos), tantos beijos tu beijares
basta a Catulo, insano, e é demais.
Assim os curiosos não consigam 
computar nem más línguas pôr quebranto.
87.

Mulher alguma pode se dizer bastante 
amada quanto amada é por mim Lésbia.
Em pacto algum jamais houve tanta confiança
quanto a que em mim se viu em teu amor.
109.

Minha Vida!, me dizes que este nosso amor
será feliz aos dois, será eterno.
Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
que sincera e de coração o diga
e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.
14b.

Se acaso vós leitores sois
das minhas inépcias e as mãos
não vos repugnar ao tocar-nos, 
AFASTAI A SEVERIDADE
POIS VERSOS VIRÃO MAIS PICANTES

⚠️ Os poemas abaixo possuem linguagem sexual e obscena ⚠️

15.

A ti eu me confio e meus amores,
Aurélio, e de pudor eu peço vênia
pois se já desejaste algo em teu ânimo
que mantivesses casto e inteirinho, 
preserves em pudor este menino,
não digo das pessoas – delas nada
temo a passar na praça aqui e ali
com suas próprias coisas ocupadas.
Minha paúra és tu, e é o teu pau, 
fatal aos bons, fatal aos maus meninos;
por onde queiras, como queiras, leva-o,
quando saíres, pronto para tudo.
Só ele excluo, sim, pudicamente,
pois se uma ideia má ou louca fúria 
te impelir, pérfido, a tamanho crime 
de contra ele investir, outro eu,
então, ah!, infeliz e malfadado, 
pelos pés arrastado, por teu rabo
aberto vão passar mugens e rábãos.
32.

Peço minha, boa, doce Hipsitila, 
minhas delícias, meus encantos, pede 
que eu vá dormir a sesta junto a ti.
E se pedires cuida disto: que outro
não introduza entraves na portinha
nem queiras tu sair por aí fora.
Mas fica em casa e vai te preparando
para umas nove contínuas trepadas.
E se é que vais chamar-me, chama logo,
que almoçado, deitado, e satisfeito,
tanto a túnica eu furo quanto o manto.

“Fractal”, um poema de Paulo Bittencourt

O pensamento como quebra-cabeças de vidro estilhaçado que me corta a cada movimento de peças e cujo encaixe é ilimitado para extrair dos meus dedos o pouco de sangue que lhes resta. Dar ao oceano a medida certa de urina para salgar-lhe o sexo reptício das areias submarinas cristalizar a rocha dos cotovelos animais e dos cancros-utensílios de ferir a alma alheia dos homens. Abandonar completamente a esperança ao penetrar no reino surdo das palavras sem nexo afogadas no mais brilhante desespero soturno da vida que brota no deserto.

A solidão infinita dos peixes que se esquecem de nadar.

A paixão infinita dos seres que se esquecem de amar.

A tração infinita dos bois que se esquecem de marchar.

Pintura de René Magritte (1926)

Eis a imagem fundamental do silêncio-tormento do tiroteio si-por-si entre flores sorridentes só para testar quem resta por último aberta e finalmente poder fechar-se em si vitoriosa do sofrimento. Matar não para conquistar enrijecer dominar submeter cativar embrutecer animalizar escarnecer mas para livrar.

Andar com a faca presa aos mil elos dentais que brotam da gengiva.

O olhar fixado na saliva que se acumula ao canto da boca última gota de mar que escorre violentamente sobre o queixo como feixe de azul que escancara o meio dia das dores e que faz brotar outras mil por debaixo da língua. Ceifar o corvo sem penas que paira fênix do mais virginal edênico paraíso celeste em que deuses e putas ejaculam seus orgasmos pernósticos.

E por fim fazer crescerem os prédios mais altos cujos cumes atingem as verdades sobre a pilha de corpos pútridos que produzem incontáveis litros do mais negro chorume. O paraíso titânico do vidro que escancara as tripas abrindo o esterno com máquinas tracionadas hidraulicamente deixam à vista crua do sol o último batimento cardíaco o último suspiro de morte.

Finalmente.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

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