Como ler Tragédias Gregas: um guia conciso

Algumas das maiores obras preservadas pelos séculos na literatura ocidental têm origem na Grécia Antiga. Poderia estar me referindo à Ilíada, ou à Odisseia, mas me refiro a uma categoria distinta e mais ampla: a tragédia grega, consagrada especialmente pelas peças de Sófocles, Ésquilo e Eurípides, três dos maiores dramaturgos da Antiguidade.

Quem nunca ouviu falar no Complexo de Édipo? Ora, o termo freudiano, não por acaso, provém do personagem homônimo, protagonista da peça de Sófocles, Édipo Rei, uma das obras mais célebres da história, que apresenta a desgraça do homem que matou o próprio pai e desposou a mãe, fugindo da própria sina.

Do mesmo autor são as obras Antígona e Édipo em Colono, que junto da primeira compõem a chamada Trilogia Tebana. Aquela, por sua vez, tragédia que conta o triste destino da prole incestuosa de Édipo, destruída na luta pelo trono deixado pelo pai, e esta a ocasião de Édipo a vagar em busca de sua morte.

Ésquilo, Sófocles e Eurípides

Não menos notável é a obra de Eurípides, que assina peças como Medeia e As Bacantes, ou a de Ésquilo, autor de OréstiaOs Persas, entre outras de igual importância. Não é pouco se atrever a ler esses textos, que são parte das maiores e mais ilustres referências literárias da humanidade, mas o desafio pode ser um pouco menor quando sabemos o que procurar nessas leituras – além do deleite e do autoconhecimento. Alguns importantes conceitos para essa empreitada, logo abaixo, podem ajudar a desvendar a tragédia grega. Vamos a eles.

Poética de Aristóteles

A Poética, escrita pelo filósofo discípulo de Platão no século IV a.C., é um conjunto de notas sobre arte, supostamente originárias de suas aulas, nas quais discorre sobre conceitos como a Catarse, a Mímeses, a Anagnorisis, o Mythos, a Peripeteia e outros mais. Considerada durante anos como normativa, hoje se levanta a hipótese de que se trataria antes de um documento descritivo da arte clássica. Independentemente de quais das teses é a correta, a Poética é sem dúvida um dos mais importantes textos para compreender a tragédia antiga.

Catarse

Embora usado corriqueiramente para designar algo como “empatia”, o termo não é muito claro. Aristóteles o menciona associando-o a um sentimento de terror e piedade que ocorre no espectador durante um espetáculo teatral, gerando sua purgação. Para além da banalidade da ideia da identificação com os personagens (já disse Freud: somos todos Édipos), há também os aspectos do horror de seu destino, e a compaixão pelo que ocorre. Em termos simples, isso é catarse. Mas os termos simples são redutores, vale sempre lembrar, e por isso é importante não se limitar a essa visão do termo.

Hybris, Hamartía e Moira

Três dos conceitos mais fundamentais para compreender a tragédia grega, a qual era estruturada com propósito de mais que divertir, mas educar os gregos para a cidadania, são eles a síntese da estrutura do enredo trágico.

O primeiro deles, hybris, pode ser compreendido como o excesso. Este excesso se vê em todas as peças mencionadas na nossa introdução, mas a título de exemplo pensemos o caso de Medeia, que não escuta o conselho da pólis (o conselho da cidade), e vai até o fim na vingança contra Jasão, ultrapassando a sua justa-medida (o métron). O caso de Édipo, também muito exemplar, traz à tona em sua hybris a luta contra o seu destino – luta, portanto, contra os deuses –, que faz com que o personagem entre num conflito em que não poderá sair vencedor.

Associado a este conceito está o da hamartía, a assim chamada falha trágica. Tal falha, ou erro, não advém do caráter “mau” de um personagem, mas de um erro de cálculo que o leva ao desencadeamento funesto de sua história. Voltando a Édipo, como exemplo, o fato de não conhecer sua verdadeira identidade faz com que ele cometa crimes terríveis contra as leis divinas, recaindo sobre o terceiro dos conceitos: a Moira.

O último dos três termos equivale à força do Destino. A Moira, mais poderosa que os outros deuses, pois é quem governa o fio da vida de cada um deles, também gere as profecias que levarão o herói trágico ao desenlace sinistro de sua trama. Assim, finalizando com a obra-prima sofocliana, a piedade que temos de Édipo vem de sabermos que seu destino já estava selado muito antes de que tivesse a possibilidade de se tornar culpado por ele. Mas para a tragédia grega, a consciência ou não do crime não isenta quem o cometeu de sua responsabilidade: temos, então, em desfecho, Édipo, que se cega, e Jocasta, sua mãe, que se suicida ao conhecer a identidade de seu marido.

Nêmesis

Para nossa sociedade contemporânea, talvez pareça um tanto quanto demais que esses personagens sejam culpados e penalizados por fatos que estavam além do seu controle ou alcance, mas para a antiguidade esse desenredo é o que se entende por Nêmesis, a justiça divina – esta que é muito distinta do que temos por justiça, mas que era o acerto de contas, a Lei do Talião, daquela época e daquela cultura. É isso o que leva, por exemplo, ao fatídico fim de Penteu, que é destroçado pelas bacantes, na peça de mesmo nome (só por curiosidade: em grego, esse processo se chama sparagmós).

Deus ex machina

Outro conceito interessante de se ter em mente é este: Deus ex machina, o deus da máquina, aquele elemento, personagem ou saída inesperada que surge ao final para resolver milagrosamente o final catastrófico da trama. O exemplo mais clássico talvez seja o final de Medeia, quando o carro do Sol – que até então não era parte da narrativa –surge ao fim da peça para que Medeia escape à ira de Jasão.

Medeia foge no carro do Sol, em pintura de Charles Andre Van Loo (1759).

Curiosidade

O (polêmico) diretor Woody Allen, traz para a sua composição no filme Poderosa Afrodite (1995) diversos elementos típicos do teatro grego, brincando com sua estrutura e estética… Te desafiamos a identificá-los!

O que a Música Popular Brasileira tem a ver com literatura?

Confira nossa série de vídeos sobre Literatura e MPB no YouTube.

Abertura

Qual é a música mais antiga que você conhece? E o poema? Você sabia que o Epitáfio de Seikilos é uma composição grega, gravada em uma lápide construída há mais ou menos 2000 anos atrás? Ele é considerado uma das canções mais antigas do mundo e, curiosamente, é entendido tanto quanto música, bem como literatura.

Essa caracterização só é possível porque música e literatura estão, desde os tempos mais antigos, ligadas entre si. Se pegarmos, por exemplo, o caso dos poemas épicos de Homero ou as cantigas medievais, observamos que a relação entre uma melodia e uma letra é antiga e não exclusiva de nossos tempos modernos e contemporâneos. Na esteira dessa antiga tradição, criada pela soma de duas artes, é que se desenvolveu a muito custo a canção popular, tipo de composição que coloca em interdependência e harmonia a poesia e a música.

A proposta deste texto é apresentar para você três pontos de contato entre a música popular e a literatura. Evidentemente, as produções de canção ao redor do mundo remontam história tão distintas quanto antigas. Mas nos detenhamos no caso específico do Brasil!

Estudo

Primeiro movimento – histórias

Não cabe aqui fazer uma longa introdução à história da canção em terras brasileiras, basta saber que sua criação e desenvolvimento está intimamente ligada ao processo de modernização do país, acompanhando de perto a evolução das redes de comunicação, como o jornal, o rádio e a televisão. Mais importante que a historiografia musical em si, parece ser a convivência íntima entre letristas e poetas ao longo do século XX, alimentando reciprocamente seus campos de produção (lembro aqui o caso de destaque de Vinicius de Moraes, que migrou do poema impresso para a música popular e o poema falado) o que contribuiu para o desenvolvimento de uma história da canção comunicante com a história da literatura.

Eis uma primeira relação entre a Música Popular Brasileira e a literatura: suas histórias e produções interdisciplinares.

Musicalização do soneto São demais os perigos desta vida

Neste texto, ainda que limite a descrição histórica aos dois parágrafos anteriores, deixarei a indicação de alguns trabalhos que não podem faltar em sua biblioteca sobre a canção popular do Brasil.

Caso você procure uma abordagem mais histórico-social, os trabalhos de Franklin Martins (à direita), de Jairo Severiano (Uma história da Música Popular Brasileira, 2008) e de José Ramos Tinhorão são indispensáveis. Eles nos contam, de forma minuciosa, a trajetória e as mutações pelas quais a canção passou, até que encontrasse formas consolidadas: o samba, a canção de protesto, o sertanejo etc.

Para os fãs de análises literárias e de flertes entre teoria da literatura e música popular, temos autores como Affonso Romano de Sant’Anna, com seu livro Música popular e moderna poesia brasileira, de título autoexplicativo, e também temos Augusto de Campos, célebre poeta e crítico brasileiro, que, em seu Balanço da bossa e outras bossas (1974), tece relações muito perspicazes sobre a canção, a literatura e os movimentos de vanguarda.

Evidentemente, existem outras perspectivas tão instigantes como as mencionadas acima. É o caso da abordagem intermidiática, à qual nos apresenta a pesquisadora Solange Ribeiro, no texto Canção: letra x estrutura musical; e da semiótica da canção, que tem Luiz Tatit como seu patrono.

Cada um desses percursos nos oferece uma gama de possibilidades para interpretar a canção brasileira e, pensando que a proposta deste texto é aproximar a MPB e a literatura, eu o incluo na segunda das chaves de pesquisa que mencionei acima: uma abordagem literária da canção.

Segundo movimento – Letra de canção é poema?

Com o constante intercâmbio de leituras entre os letristas e os grandes poetas da literatura moderna no Brasil, as letras de canção passaram a ser analisadas por alguns pensadores a partir de recursos que antes eram utilizados exclusivamente para o estudo literário. Esse tipo de análise pode ou não incluir a melodia da canção, e essa opção é o primeiro passo para responder à pergunta: letra de canção é poema? E aproximar, outra vez, os dois grandes campos de estudos, musical e literário.

Se você considerar a integração entre letra e melodia, a resposta para a pergunta certamente é não. Isso se dá, porque uma nova camada de significados e linguagens entra na análise, tornando necessária a utilização de uma abordagem como a da semiótica da canção, eficaz na construção de sentidos suscitada pela integração entre o que é falado e o que é tocado. No entanto, se optarmos pelo caso contrário, separada a melodia das letras, essa pode muito bem vir a ser chamada de poema. E, abaixo, demonstrarei o porquê.

Em termos de literatura, a crítica construiu, ao longo de muitos anos de tradição e crítica, um repertório de conceitos para análise, em que estão presentes tanto elementos técnicos de composição e classificações de acordo com a estrutura (sonetos e redondilhas, por exemplo); bem como elementos de análise do sentido – os lexemas, as metáforas, as imagens – remoídos e talhados pelas incontáveis poéticas ao longo dos séculos.

A título de confirmar a validade de uma leitura das letras a partir dos procedimentos mencionados acima, vejamos como eles aparecem em um pequeno trecho, retirado da clássica canção Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. Trata-se dos versos finais da canção:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros, distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

Começando por uma abordagem formal, identificamos já de saída um grupo de rimas – em -ÃO e em -IDA – e uma estrutura fixa, que se repete em todos os versos: decassílabos, construídos com a primazia de um parnasiano, com marcação nas sílabas 3-6-8-10, podendo ser caracterizado como metro martelo, típico de cantigas e cordéis:

mas – a – LU – a – fu – RAN – do – NOS – so – ZIN (co)
sal – pi – CA – va – d’es – TRE – las – NOS – so – CHÃO

Além disso, a letra presenteia o leitor/ouvinte com um enjambement – corte de um verso para o outro – belíssimo nas duas estrofes finais:

sem saber que a ventura dessa vida
é a cabrocha, o luar e o violão.

Já no que diz respeito à semântica do texto, temos a metáfora principal, que inclusive dá seu título, chão de estrelas. É uma imagem extremamente inovadora e muito rica, que, além de propor a equivalência entre o universo popular do morro e o erudito das escolas literárias – no qual uma cena própria à natureza e ao bucolismo irrompe em um barracão –, concede ainda mais força à outra personagem da canção: a mulher. Retratada pela voz principal como pomba-rola que voou, essa antagonista pisa nos astros distraidamente, gesto que inclusive alcança seu admirador, graças à polissemia da palavra “estrela”, que também é utilizada como adjetivo para artistas, sinônimo de “famoso”, “popular” etc.

Tu pisavas nos astros, distraída

A partir de uma análise que leva em conta os dois aspectos – formal e semântico – para a leitura das letras de canção, observamos como os elementos constitutivos das letras são muito similares, para não dizer idênticos, àqueles próprios à poesia impressa. Só que, além dessa aproximação por via das técnicas, temos também um similaridade de tradições e de referências, o que nos leva ao próximo tópico.

Variação

Terceiro movimento – tradição e intertextos

A ideia de apropriação das formas e imagens é comum e natural para os desdobramentos de qualquer arte e, sendo tão próximas na forma e na técnica, as correntes literárias e os ciclos de canção com toda certeza criaram pontos de comunicação.

Um artista que faz frequentemente deslocamentos da tradição literária para a musical em suas canções é Chico Buarque de Holanda. Em vários dos álbuns, e até mesmo em suas composições para o teatro, encontramos letras que são traduções de outros textos e melodias. É o caso da composição de Joe Darion e Mitch Leigh, The imposible dream, para a qual o compositor brasileiro, junto de Ruy Guerra, propõe uma tradução curiosa.

Sendo também escritor e um grande leitor dos poetas modernos, Chico Buarque, para a tradução feita com Ruy Guerra, insere nos versos finais uma imagem que pode ser lida como referência a um célebre poema de Carlos Drummond de Andrade:

E assim, seja lá como for
vai ter fim a infinita aflição
e o mundo vai ver uma flor
brotar do impossível chão.

A imagem da flor que brota do chão entra em sintonia direta com aquela que o poeta itabirano utiliza “A flor e a náusea”, de A Rosa do Povo (1945):

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Encontramos um caso parecido de referência sutil na canção “Disparada”, de Geraldo Vandré. Se trata de uma intertextualidade ou menção velada à umas das passagens mais célebres da peça Hamlet, dita pelo próprio príncipe da Dinamarca.

The time is out of joint. Oh, cursed spite,
that ever i was born to set it right

Muitos tradutores de Shakespeare encararam com dificuldade a complexidade e a dimensão que os versos do dramaturgo inglês suscitam. Na tradução de Millôr Fernandes, por exemplo, temos o seguinte:

Nosso tempo está desnorteado. Maldita a sina
Que me fez nascer um dia pra consertá-lo!

Ele consegue preservar o sentido principal da frase e a rima entre os versos passa a ser interna e toante, entre desnorteado e consertá-lo. No caso da letra de Vandré, a solução aparece de forma distinta e é particularmente encantadora a simplicidade com que ele a constrói:

E a morte, o destino, tudo,
a morte e o destino, tudo
estava fora do lugar,
eu vivo pra consertar

Desdobrado em quatro versos, a rima é rica, como no caso shakespeariano, e está nos dois últimos. Intencional ou não, há claramente uma sintonia com as palavras de Hamlet, recontextualizada e adaptada para a jornada retirante que a canção expressa.

Além dessas referências pontuais, existem ainda aquelas que são diretas, como a canção Lobo bobo, interpretada por João Gilberto em 1959; ou mesmo a Terceira margem do rio, de Milton Nascimento e Caetano Veloso, canções que se apropriam diretamente de um texto literário e lhe concedem nova roupagem.

Nos exemplos acima, observamos com nitidez o alinhamento entre a música popular e a literatura, o que se dá, nesse caso, por vias da referência e da intertextualidade. Gostaria de acrescentar, ainda, que há também a constituição de uma tradição interna na canção, na qual as referências são próprias ao seu universo:

Lembremo-nos rapidamente dos seguintes versos de Chão de estrelas:

Mas a lua, furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão

Agora, vejamos outra composição, Como dois e dois, escrita por Caetano Veloso, e consagrada na voz de Roberto Carlos:

A mesma porta sem trinco
O mesmo teto,
E a mesma lua a furar
Nosso zinco

Fugindo da estrutura fixa de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, e se apoiando em versos escritos com maior liberdade métrica e rítmica, essa repetição da imagem da lua furando o teto de zinco aponta para a formação de um repertório próprio à canção popular. Esse diálogo se intensificou com o avançar do século XX e com a consolidação dos meios de distribuição e gravação das canções.

Cabe lembrar que, se de um lado temos esse movimento no qual a canção vai ao encontro da literatura, do outro a literatura vai ao encontro da canção.

Machado de Assis é um bom exemplo de literato que se interessava pelo meio popular e mais especificamente pelo ritmo e musicalidade populares. O conto Um homem célebre, objeto de estudo de José Miguel Wisnik, no livro Machado Maxixe, está entre as narrativas do autor que apresentam claramente esse interesse. Também, um escritor contemporâneo – Luiz Antônio de Assis Brasil – faz essas aproximações entre música e literatura (apesar de as letras de canção não serem o destaque em seus textos).

É preciso dizer, ainda, que, no Brasil, as duas artes já participaram abertamente de um mesmo movimento estético: o tropicalismo, que muito contribuiu para a criação de um cenário rico tanto teoricamente quanto artisticamente, e isso beneficiou ambas as artes.

Fuga

Por fim, compartilhando os métodos e lançando mão de tantas referências e minúcias, as letras de canção são um objeto instigante para a análise literária e esse olhar analítico (para ler poemas, principalmente) concede a elas uma roupagem nova, um novo olhar, que contribui para a expansão do conceito de literatura e de poesia e para uma melhor compreensão dos traços específicos que separam e aproximam as duas artes.

E que tal curtir uma playlist que conta uma história do Brasil através da música?

A dramática normativa e a poesia em prosa de Baudelaire

XL – O espelho

Um homem horrendo entra e se observa no vidro.
“– Por que você se olha no espelho, se não se pode se ver nele senão com desprazer?”
O homem horrendo me responde: “– Senhor, segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em direitos; portanto eu possuo o direito de me olhar; com prazer ou desprazer, isso só diz respeito à minha consciência.”
Em nome do bom senso, eu tinha sem dúvida razão; mas, do ponto de vista da lei, ele não estava errado.

(CHARLES BAUDELAIRE, Le spleen de Paris)

Não fosse o nome do autor denunciado em suas referência acima, talvez o leitor não desconfiasse que O espelho (traduzido por mim) se trata de um poema, incluído na antologia Le spleen de Paris (1869). Isso porque seu tom fabulesco, sua forma sem rima nem métrica, seu conteúdo pouco voltado às imagens clássicas da poesia tradicional – embora, na contramão, também fale da beleza –, ou sua formatação desprovida de estrofes e de versos saltados, não correspondem às expectativas que criamos acerca do que é e de como se faz um poema, mesmo para os mais experimentados. Pausa.

1
Primavera de 1624. Em Darlane, o general Oxenstjerna recruta tropas para a campanha da Polônia. A vivandeira Anna Fierling, conhecida pelo apelido de Mãe Coragem, fica sem um de seus filhos.

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

9
Já está durando dezessete anos a grande guerra religiosa. A Alemanha perdeu mais da metade dos seus habitantes. Violentas epidemias exterminaram os que sobrevivem à morte nas batalhas. Nas regiões outrora exuberantes campeia a fome. Lobos percorrem as cidades reduzidas a escombros. No outono de 1634, encontra-se Mãe Coragem na montanha alemã de Fichtel, longe da estrada por onde passa o exército sueco. Nesse ano, o inverno veio cedo e com rigor. Os negócios vão mal, o jeito é mendigar. (…)

(BERTOLT BRECHT, Mãe Coragem e Seus Filhos)

Mãe Coragem e Seus Filhos (Mutter Courage und ihre Kinder), na célebre interpretação com Helene Weigel.

Entramos agora em outro campo: excertos da peça Mãe Coragem e Seus Filhos (1939), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Bastante distante em temáticas, estéticas ou proposições, e consideravelmente distantes no tempo, as obras de Brecht e de Baudelaire, como as trazidas aqui, possuem uma séria semelhança. Alguém se arrisca?

Assim como os poemas em prosa do poeta francês não se encaixam nos moldes da poesia tal como prescrito pelas “normas” dos gêneros, tampouco os trabalhos brechtianos podem ser entendidos por e simplesmente dramas.

Relembrando, os três grandes gêneros literários: a épica, a lírica e a dramática, (muito) reduzida e simplisticamente compreendidas como narração, poesia e teatro, respectivamente. Ora, e o que acontece nos casos dos autores trazidos? Para o alemão, o próprio nome do seu teatro o anuncia: o teatro épico. Para Baudelaire, a poesia é em prosa – uma poesia épica? Uma proesia? Brinco.

À parte seus distintos propósitos em uma e outra criações, tais autores se aproximam ao mesclar não os tipos textuais, mas os gêneros em si – que embora dificilmente obteriam alcançar uma pureza completa, se afastam ainda mais dessa medida quando pensamos exemplos como estes.

Por isso mesmo, se entendemos os gêneros como matrizes para a criação artística, é indispensável reconhecer a igual importância da sua subversão. O que Brecht cria nos trechos trazidos é inconcebível para a dramática normativa, que se fixa, de acordo com Peter Szondi, autor de Teoria do Drama Moderno, no pilar da ação inter-humana transcorrida no tempo presente, resumidamente. Tempo, contudo, é o que não se faz presente em Mãe Coragem e Seus Filhos, quando muitos anos se passam através dos saltos cronológicos entre um e outro episódios. Dialógica, tampouco é a forma encontrada em tais trechos, que denunciam a narrativa nas descrições e na ausência de enunciador, o que por sua vez impede o caráter inter-humano.

Ainda que sejam exemplos apenas dos princípios dos episódios (ou atos, ou capítulos) brechtianos, e que outras partes do texto se aproximem mais dos elementos que configuram o drama tradicional, tais recursos não são lançados ao azar, como se revela na auto-teorização feita em seu Pequeno órganon para o teatro. Pelo contrário, o teatro épico tem por objetivo alcançar o efeito de distanciamento que obrigue à reflexão, ao raciocínio crítico, e que por meio dessa estranheza seja capaz de despertar o espectador do sono da alienação.

O caso de Baudelaire talvez não seja tão engajado ou mesmo tão exemplar. Sua proposta, mais estética que propriamente política, influencia uma gama de escritores da sua sucessão, inclusive vocês-sabem-quem (abaixo). Ao abrir mão dos valores regentes da construção poética, o poeta subverte ainda mais o que por si só já é anárquico – a própria poesia. Cria, em consequência, a abertura para outros fazeres e pensares artísticos que não se pretendem regra de ouro.

Na realidade, o que Baudelaire faz, seu grande mérito, não é um “manifesto da poesia em prosa”: antes, é lançar sobre a tradição um olhar que a absorve sem por ela se deixar prender. O que em muito difere de Brecht, para quem o futuro do drama é o drama épico, motor das convulsões e revoluções sociais pela arte.

Fica do texto para o leitor a proposta de aguçar a visão para notar esses fenômenos, hoje ainda mais e sempre recorrentes, que movimentam a arte contemporânea não para uma, mas para todas as direções, expandindo-se… Até onde? De presente, um poema (um poema, sim, senhor) do nosso querido itabirano:

O OPERÁRIO DO MAR

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza… Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?

(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Sentimento do Mundo)

“Infância”, de Graciliano Ramos: memória e transculturação narrativa

Texto de apresentação por Gabriel Reis Martins
Clique na imagem

A memória, com seus funcionamentos e seus mistérios, é um tema que atravessa não só inúmeras obras da filosofia desde a antiguidade, como também se faz presente nos mais variados escritos da literatura. Quem não se lembra, por exemplo, dos três calhamaços que compõem Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, obra que, para além de sua beleza, funda inúmeros procedimentos narrativos, principalmente ligados à rememoração?

Pois bem, nesta publicação, gostaríamos de trazer um artigo que faz luz justamente na dimensão literária da memória – e, mais especificamente, da memória na literatura brasileira –, procurando entender de que maneira os autores frequentemente preenchem as lacunas, efeito natural do tempo, de suas lembranças. O artigo foi escrito pelo pesquisador de literatura brasileira Alexandre Fonseca, que analisa a obra Infância, de Graciliano Ramos, a partir de percepções extraídas do próprio livro e de considerações feitas por seus críticos.

Nós do Duras Letras agradecemos ao pesquisador pela redação do artigo e esperamos que suas palavras possam contribuir com a leitura de vocês, como contribuiu para a nossa!

Para baixar o texto, clique no botão abaixo:

Relação luzidia: sintonia dos versos de Waly Salomão e de Florbela Espanca

“Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo”
(Fado Tropical – Chico Buarque e Ruy Guerra)

Poetas que versam o versar, Florbela Espanca e Waly Salomão compuseram dois célebres poemas que conversam entre si num diálogo sobre o fazer poético, o sonho e sua dissolução na realidade: Vaidade e A fábrica do poema, cujas relações mais próximas tentaremos evidenciar.

I – O sonho

Ambos os poemas destacam uma grave inquietação com a própria arte poética, refletindo acerca de sua condição de poemas imperfeitos pelo viés do desejo frustrado, que os submete à humanidade de seus poetas. Cada qual buscando a perfeição, Florbela e Waly partem do sonho para a criação, sonho que os leva à fantasia de totalizar a instância da poesia por meio de seus versos:

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

(FLORBELA ESPANCA, Vaidade)

Sonho o poema de arquitetura ideal
Cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,
Tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras.

(WALY SALOMÃO, A fábrica do poema)

É interessante notar que, no poema de Waly Salomão, a preocupação é quase inteiramente voltada à “arquitetura ideal” do poema, que se desenvolva com perfeição e coerência, ao passo que os versos de Florbela expressam uma perceptível e maior inquietude com a posição que o próprio eu-poético deseja alçar, de “Poetisa eleita” como se pode observar ainda nos versos abaixo, do mesmo poema:

Sonho que sou Alguém cá neste mundo…
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

Nesse sentido, a poetisa portuguesa nos apresenta um desejo, ou vaidade, como o título nos anuncia, de alcançar um prestígio e uma habilidades sobre-humanas, cujos poemas pudessem “reunir num verso a imensidade” e preencher toda alma capaz de ler poesia, mesmo a mais “profunda e insatisfeita”, curvando a Terra aos seus pés com seu saber vasto e profundo.

Waly, por sua vez, parece estar mais preocupado com a estrutura da própria poesia que com a condição ou estatuto do poeta, este que não é o Poeta eleito, mas mero “perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras”, posição menor cuja insatisfação vem não de um problema de auto-imagem, mas de uma tentativa de captar um poema que escapa, como vemos a seguir, no segundo movimento de ambos os escritos em análise.

II – A ruína

Acordo.
E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.

Acordo.
O prédio, pedra e cal, esvoaça
Como um leve papel solto à mercê do vento
E evola-se, cinza de um corpo esvaído
De qualquer sentido.

Acordo,
E o poema-miragem se desfaz
Desconstruído como se nunca houvera sido.

Acordo!
Os olhos chumbados
Pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
Assim é que saio dos sucessivos sonos:
Vão-se os anéis de fumo de ópio
E ficam-se os dedos estarrecidos.

Sinédoques, catacreses,
Metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
Sumidos no sorvedouro.
Não deve adiantar grande coisa
Permanecer à espreita no topo fantasma
Da torre de vigia.
Nem a simulação de se afundar no sono.
Nem dormir deveras.
Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou restaurá-la daqui do poema.)

Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará?

Chama atenção que no poema de Florbela a extensão do primeiro movimento – aquele que se configura no sonho do poema/poeta ideal – é muito maior que em A fábrica do poema, tendo três estrofes se medindo com apenas três versos do poeta baiano, enquanto o segundo movimento – a derrocada – ganha muito mais relevo neste que em Vaidade.

Waly narra o processo de acordar como aquele em que o poema-miragem, com todos os seus recursos líricos (sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros) somem no sorvedouro, desconstruindo-se como se nunca houvessem existido, deixando apenas apenas anéis de ópio e fumaça em dedos estarrecidos.

Enquanto isso, o acordar do eu-poético de Florbela não evoca a perda do poema como no caso anterior, mas a obriga a uma reimaginação de si que, frente ao sonho, a leva à queda e à descoberta da sua realidade, na qual não é nada:

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho… E não sou nada!…

Observamos, assim, que os dois poemas partilham de uma forte sintonia em suas temáticas, com nuances da relação entre o sonho, a realidade e o poeta ou o poema se apresentando pelo viés da desilusão. Vaidade e A fábrica do poema crescem no ambiente onírico que lhes oferece inspiração e qualidade poética, na busca pela totalização da poesia e de seu criador, mas perdem para a vigília que os priva dessa possibilidade.

Por isso mesmo, a metarreflexão nos dois casos constrói a salvaguarda pela qual o poeta e a poetisa indicam o contraponto entre a incapacidade de se arquitetar a totalização de um poema de inspiração perfeita, ou tornar-se o poeta capaz de fazê-lo, a as possibilidades concretas por meio das quais eles podem se realizar: tanto Vaidade como A fábrica do poema afirmam, portanto, não o entrave que impede a poesia, mas a matéria dos sonhos do poeta, e a sua solubilidade.

Para mais

Adriana Calcanhoto manteve um parceria longa com Waly Salomão, parceria esta que resultou algumas grandes obras da canção popular brasileira, como o próprio A Fábrica do Poema

Já o poema de Florbela Espanca é possível ouvir nesse link, pela voz de Rubens Caribé, em leitura feita no programa Café Filosófico.

Entre Drummond e Borges

Carlos Drummond de Andrade e Jorge Luis Borges cresceram e criaram suas literaturas em contextos muito similares: embora nunca tenham chegado a se conhecer, os dois foram escritores a presenciar as grandes mudanças da modernidade, a vida da cidade, o conturbado começo do século XX e suas grandes marcas na história. Apesar de o primeiro ter se alçado principalmente como poeta, enquanto o segundo se destaca pelos seus contos, semelhanças relevantes permeiam a literatura desses dois nomes de peso da América do Sul. O texto a seguir apresenta algumas das ligações entre os autores, a partir dos aspectos fundamentais de suas obras.

Tão complexa é a realidade (…) que um narrador onisciente poderia redigir um número indefinido, e quase infinito, de biografias de um homem.

(Jorge Luis BORGES)

A partir dessa citação, é possível observar que na obra borgeana há toda uma apropriação da realidade que assume o pressuposto da multiplicidade e do momentâneo: as muitas camadas do real se sobrepõem e através do seu recorte de imagens e de seu consecutivo desvio se delineia um “caos de aparências” que atravessa a literatura do autor.

Nesse sentido, o argentino delimita um olhar sobre a realidade em que o objetivo não é a mímeses, mas o simulacro metafórico que prescinde de referentes extratextuais. Por essa mesma razão, os personagens borgeanos não são psicologizados, e a ênfase se dá sobre a trama, motivo pelo qual a brevidade se mostra um recurso estilístico recorrente, dialogando com a tradição literária (e não apenas a argentina) em vistas de questioná-la e não enfeitar a flor, propondo mesmo uma reflexão sobre o que significa criar uma literatura argentina – o que ultrapassa em muito a inserção de elementos da cor-local.

Ainda assim, a escrita borgeana se apropria, borra, e miniaturiza toda a tradição argentina do século XIX: parte do caráter popular de seus contos tem a clara influência da literatura gauchesca (marcas de oralidade, culto à coragem, à violência, etc.), como se percebe em Hombre de la esquina rosada, de Historia universal de la infamia, a título de exemplo.

Há também uma forte marca anti-intelectualista, no sentido de que a busca da verdade nas bibliotecas e nos livros não leva a lugar algum. Ela assume, por isso, um caráter populista, escolhendo buscar a verdade na vida do homem comum, ao mesmo tempo que busca a totalização no seu cosmopolitismo, na erudição e no manejo da cultura.

Também parte dessa busca a ideia de circunscrever a realidade através do olhar alheio, o que faz com que seus contos carreguem ares de transcrição de relatos de terceiros. Por isso mesmo, Borges se apropria do outro e distorce a realidade desse outro sem referente externo, até sobrar a imagem comunicada a partir de fragmentos coordenados de forma coerente, ainda que plural. O jogo borgeano é, portanto, o jogo das máscaras e dos contrastes, em que os personagens, a um só tempo, estão e não estão desmascarados, onde o rosto e a máscara se encontram num ponto de divergências.

O poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade

Por sua vez, Drummond se apropria da realidade amparando-se na ideia de registrá-la como se dela estivesse apartado, embora não o esteja de fato, e embora o faça através da estética modernista. A essa busca por limitar-se a registrar (fatos, acontecimentos, sentimentos), contrapõe-se o desejo de criar laços com o outro, motivo pelo qual se apropria das memórias do passado de todos: assim como Borges, revela um claro anseio pela totalização, que se espelha nas muitas menções à palavra “mundo” na sua poesia, como destaca Miguel Wisnik.

Insere-se, assim, o gosto por um cotidiano expandido, alargado, que, como Borges, guarda o traço popular na sua poética. Nesse sentido, livros com o A Rosa do Povo confeccionam uma espécie de epopeia do cotidiano, em que a busca por uma verdade recai inevitavelmente na verdade do homem simples, do qual o poeta se aproxima como uma alteridade, como no poema O Medo, que dialoga com seus próprios temores e sua subjetividade solitária, a exemplo de Consolo na praia.

Nesse aspecto, o eu e o mundo se aproximam, se distanciam, se contradizem e se complementam na medida em que o eu-poético questiona as possibilidades dessa coletividade e de se fazer poesia na cidade e no mundo moderno. Tal inquietude, por certo, permeia toda a construção literária do poeta itabirano: o cosmopolitismo drummondiano, à divergência do escritor porteño, passa pelo sentimento de não pertencer a nenhum lugar ou grupo (“Itabira tornou-se apenas um retrato na parede”), marca de sua profunda solidão e seu senso de dépaysement, como se coloca na incompletude do poeta na roça e no elevador:

Explicação

Meu verso é minha consolação
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre…
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
Mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, [preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola…
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de quaquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de

E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era…
no elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

(DRUMMOND, Explicação. In: Alguma Poesia – 1915. Grifo nosso)

Nesses termos, o poeta mineiro demonstra apreender a realidade na perspectiva do objeto que escapa, como se quebrasse a própria possibilidade do fazer poético na bênção e na maldição de fazer parte do mundo moderno. Assim, indivíduo e mundo se flexionam constantemente, dando pistas da posição desse eu-poético frente a esse novo mundo: deslocado, inadequado, anacrônico, que carrega desde seu primeiro verso a profecia gauche (“Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.), mas que se força a esse espaço fronteiriço na postura de reconhecer-se enquanto falta ou sobra, como inclusão excludente, fazendo que essa poesia se insurja contra a “grande máquina” que coisifica pessoas e relações, mas também contra as palavras, colocando-se como uma arte anárquica que subverte o seu sentido. Desse modo, é como se essa procura pela poesia não se afastasse da procura do mundo, em que Drummond se coloca como condenado: ainda bem.

Este texto foi concebido como trabalho final para a disciplina Borges e Drummond, ministrada pelo prof. Roberto Said da Faculdade de Letras da UFMG.

Repensando a sociedade com “Primeiro de Maio”, um conto de Mário de Andrade

O nome de Mário de Andrade (1893-1945) é tão corriqueiro e importante para a historiografia literária brasileira que dispensa apresentações longas. Autor do célebre Macunaíma e um dos protagonistas da Semana de Arte Moderna, de 1922, Mário pode muito bem ser considerado uma das “antenas da raça” – expressão utilizada por Ezra Pound para descrever os grandes literatos – que perambulava pelas ruas de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.

Antenado não só ao cotidiano da grande cidade moderna, Mário também se mostrava um leitor assíduo das teorias e correntes filosóficas que tiveram seu germe no século XIX, destilando em suas obras conteúdos que se assemelham às ideias de inconsciente, de Freud, de classe, a partir do marxismo, e de linguagem, no sentido saussuriano. A coletânea Contos novos, publicada postumamente, em 1947, organizada por amigos do escritor, condensa muitos desses traços significativos que Mário assimilou ao longo de seus anos de pesquisa estética. A oralidade e a linguagem cinematográfica estão entre os aspectos estilísticos de escrita que o autor esmerava, diretamente relacionados às vanguardas europeias, principalmente o Futurismo, de Marinetti (1876-1944). Além disso, as narrativas estão estritamente relacionadas aos acontecimentos vivenciados pelos brasileiros daquele tempo. Qualquer um desses elementos pode ser identificado em um dos nove contos que compõem a obra, como veremos a seguir.

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Um bom exemplo desse olhar sobre a história e sobre as grandes revoluções filosóficas aparece no conto Primeiro de Maio, terceira estória do livro. Nesse breve escrito, o narrador acompanha a trajetória e pensamentos de 35, um trabalhador da Estação da Luz, que queria celebrar e havia de celebrar o Dia do Trabalhador. Primeiramente, cabe dizer sobre esse conto que é aliado aos traços estilísticos próprios de Mário de Andrade (como o uso de “si“, ao invés de “se” e “pra“, ao invés de “para”), que há nessa narrativa um alinhamento entre um corpo social, uma ideia de trabalhador como classe, e um corpo psíquico, os desejos individuais do protagonista.

Mas, de fato, os primeiros traços que chamam a atenção no conto são os nomes das personagens, que, obviamente e não por acaso, se resumem a números (35, 22 e 486), e o tempo diegético da narrativa, que representam uma jornada de trabalho convencional, começando não bem às seis da manhã e terminando pouco depois das dezessete.

(19)35 – Ano da proclamação do Dia do Trabalhador;
(19)22 – Ano de fundação do Partido Comunista Brasileiro;
D. lei nº 486, de 10 de junho de 1938: institucionaliza o feriado de Primeiro de Maio.

Já no significado desses nomes encontramos uma ideia que se fazia presente naquele tempo e que ainda hoje possui repercussões: o alinhamento político-ideológico entre o trabalhador e o movimento comunista, que encontra seu ápice ao fim da narrativa, como uma esperança de mudança frente a todos os acontecimentos daquele dia de primeiro de maio, frustrado: 35 ajuda 22, também um trabalhador da Estação da Luz, a carregar as malas e, detalhe importante, não há cobranças por parte daquele. É nesse ponto da estória que a violência do protagonista se dissolve em um simples “soco só de pândega” no camarada: aquele que antes queria “dar um soco num polícia”, arranjar um “turumbamba” a todo instante, agora apenas caía na gargalhada com o colega.

A forma utilizada pelo protagonista para se expressar é majoritariamente violenta. Tal violência exacerbada é em parte responsável pelas inúmeras contradições da narrativa, pois ao mesmo tempo que se quer queimar a igreja, lembra-se que fez primeira comunhão quando era criança. Além disso, as repressões que perpassam 35 são simpáticas às repressões dos desejos por parte das instituições, como os bancos que estão dispostos sob o sol e os policiais que mantêm sob vigília os trabalhadores no pátio.

Também, desde o início, Mário faz questão de marcar, a partir da agressividade, a rivalidade e raiva que o protagonista possui com as instâncias de poder: a polícia, os políticos, a igreja, e inclusive com os próprios trabalhadores, o que se manifesta em um sentimento de desconfiança com isso tudo e que advém, segundo o próprio personagem, da experiência (o que é irônico, pois ele possui apenas vinte anos).

Assim, mesmo a mídia, que tem um protagonismo forte na vida dos trabalhadores daquela época, e que também era um veículo de informação capital, não escapa da desconfiança de 35. Ele lê recorrentemente o jornal, que anuncia a união e a revolução, contudo sua leitura cria um conflito de interesses entre a classe e seus desejos:

O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Também aqui se pode ver mais uma vez expressa a divergência entre o indivíduo e sua consciência de pertencimento à classe operária, fora o fato de sua postura com o jornal mostrar ao leitor que 35 não sabe se se alinha com o valor de nação e esforço (comemorando o Dia do Trabalhador), ou com os “revolucionários”, que espalham motins pelo mundo afora e expressam sua indignação com qualquer que seja o ponto.

Participar das comemorações do primeiro de maio ou das revoltas internacionais?

Eis uma resposta que 35 não responde e mal entende o porquê. Ora 35 é reconhecido por si e pelos outros, como quando os colegas vêm até ele perguntar sobre as cerimônias de comemoração, ora ele se reconhece e é reconhecido como a prostituta que passava na rua, que aparenta um sentimento de sem lugar, marginalizado, sem perspectivas.

Toda sua jornada aparece como uma aporia do desejo, pois sua vontade é nebulosa e complexa. Se quer celebrar e ao mesmo tempo não se quer; se quer violentar, mas sempre há uma desculpa para que não faça;  e a garota do apartamento continua como um sonho distante, no qual 35 reconhece que, apesar de todo o seu desejo, “nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez”.

Por fim, é necessário dizer que, apesar de Contos Novos ser publicado postumamente e consequentemente atribuído a uma fase madura do escritor paulista, as ideias que aparecem nessa obra e, de forma mais ilustrativa, no conto Primeiro de Maio, também podem ser encontradas em Pauliceia desvairada, livro de poemas publicado em 1922, em que as ideias de O rebanho estão próximas das expressas no conto (claro que com as devidas variações que dizem respeito ao contexto em que se inserem: República Velha nesse e Estado Novo naquele):

O Rebanho

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
Saírem de mãos dadas do Congresso…
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos salvadores do meu Estado amado!…

Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
Entre o trepidor dos taxis vascolejantes,
A rua Marechal Deodoro…
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos heróis do meu Estado amado!…

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos…
Emigram os futuros noturnos…
E verde, verde, verde!…
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
Mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhe os cornos, descem-lhe as barbinhas…
E vi que os chapéus altos do meu Estado amado,
Com os triângulos de madeira no pescoço,
Nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,
Se punham a pastar
Rente do palácio do senhor presidente…
Oh! minhas alucinações!

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