Conto – “Razão”, de Isaac Asimov

Meio ano mais tarde, os rapazes haviam mudado de opinião. O calor chamejante de um Sol gigantesco cedera lugar à suave escuridão do espaço, mas as variações externas pouco significaram no trabalho de verificar o funcionamento de robôs experimentais. Qualquer que fosse o meio ambiente, encontravam-se sempre diante de um inescrutável cérebro positrônico, que os gênios manipuladores de réguas de cálculo afirmavam que deveriam funcionar assim ou assado.

Só que não funcionavam. Powell e Donovan deram-se conta do fato antes mesmo de duas semanas de estada na Estação Espacial. Gregory Powell falou pausadamente, dando ênfase a cada sílaba: – Donovan e eu montamos você há uma semana.

Tinha a testa franzida e puxava a ponta do bigode com ar de dúvida.

O interior do salão de oficiais da Estação Solar Cinco estava silencioso, exceto pelo suave zumbido do potente Diretor de Raios, situado em algum ponto das profundezas da Estação.

O Robô QT-1 permanecia imóvel, sentado. As placas polidas de seu corpo brilhavam sob as Luxitas e o vermelho profundo e ardente de células fotoelétricas que lhe serviam de olhos estava fixado no homem sentado ao outro lado da mesa.

Powell conseguiu reprimir um súbito ataque de nervos. Estes robôs possuíam cérebros peculiares. Oh, as três Leis da Robótica permaneciam imutáveis. Tinham de permanecer. Todos os membros da U. S. Robôs, desde o próprio Robertson até o mais novo faxineiro, insistiam nisso.

Portanto, o QT-1 era garantido! Não obstante… os modelos QT eram os primeiros de seu tipo e este era o primeiro dentre eles. Nem sempre símbolos matemáticos rabiscados num papel são a proteção mais reconfortante contra a realidade robótica.

Afinal, o robô falou. Sua voz tinha o timbre frio, característico de um diafragma metálico.

– Está consciente da gravidade de tal declaração, Powell?

– Algo fez você, Cutie – argumentou Powell. – Você mesmo admite que sua memória parece ter surgido subitamente, já em completo estado de formação, há uma semana; antes disso, apenas um vácuo. Estou dando a explicação do fato. Donovan e eu montamos você, utilizando as peças que nos foram enviadas da Terra.

Cutie olhou para seus dedos longos e delgados, numa atitude de mistificação estranhamente humana.

– Creio que deve haver explicação mais satisfatória do que essa. Parece-me improvável que vocês tenham feito a mim!

O homem riu repentinamente.

– Bolas! Por que motivo?

– Pode chamar de intuição. É tudo, pelo menos até o momento. Todavia, pretendo raciocinar e resolver o problema. Uma cadeia de raciocínio válido só pode levar ao estabelecimento da verdade e insistirei até chegar a ela.

Powell ergueu-se da cadeira e sentou-se na beira da mesa, perto do robô. Subitamente, sentia simpatia por aquela estranha máquina. Não era absolutamente igual a um robô comum, que se entregasse à sua tarefa especializada na Estação Solar com a intensidade provocada por um circuito positrônico profundamente imbuído.

Pousou a mão no ombro de Cutie, sentindo o metal duro e frio de encontro à mesma.

– Cutie – disse ele. – Vou tentar explicar-lhe algo. Você é o primeiro robô que jamais mostrou qualquer curiosidade a respeito de sua própria existência e creio que é o primeiro robô que realmente possui inteligência bastante para compreender o mundo exterior. Venha comigo.

O robô ergueu-se suavemente e as solas de seus pés, forradas por espessa camada de espuma de borracha, não fizeram o menor ruído quando ele acompanhou Powell.

O homem apertou um botão e um painel quadrado da parede afastou-se para o lado. A vidraça grossa e limpa revelou o espaço pontilhado de estrelas.

– Já vi isso através das vigias de observação da sala do motor – disse Cutie.

– Eu sei – retrucou Powell. – O que pensa que é isso?

– Exatamente o que parece… um material negro logo além do vidro, cheio de pequenos pontos brilhantes. Sei que nosso aparelho diretor lança raios em direção a algum desses pontos, sempre os mesmos, e também que os pontos mudam de posição e os raios os acompanham. Isso é tudo.

– Muito bem! Agora, quero que ouça com o maior cuidado. A escuridão é o vasto vácuo, que se prolonga infinitamente. Os pequenos pontos brilhantes são enormes massas de matéria carregada de energia. São globos, alguns deles com milhões de quilômetros de diâmetro. Para uma comparação, saiba que nossa Estação tem apenas um quilômetro e meio de comprimento. Parecem tão pequeninos porque estão incrivelmente afastados de nós. Os pontos para os quais nossos raios de energia estão dirigidos são muito menores e mais próximos. São duros e frios; neles vivem seres humanos como eu; muitos bilhões deles. Donovan e eu viemos de um desses mundos. Nossos raios alimentam esses mundos com energia retirada de um dos grandes globos incandescentes, que se encontra perto de nós. Nós o chamamos Sol e ele se acha no outro lado da Estação, onde você não o pode ver.

Cutie permanecia imóvel diante da vidraça, como uma estátua de aço. Nem virou a cabeça ao indagar: – De que ponto luminoso vocês alegam ter vindo.

Powell procurou por alguns instantes.

– Ali está. Aquele ponto muito brilhante, no canto. Nós o chamamos Terra – explicou, sorrindo. – A velha e boa Terra. Lá existem três bilhões de seres humanos como nós, Cutie. E dentro de duas semanas, mais ou menos, lá estaremos de volta.

Então, de modo bastante surpreendente, Cutie começou a zumbir distraidamente. Não era propriamente uma melodia, mas um som curioso, como de cordas tangidas.

Cessou tão bruscamente quanto havia começado.

– Mas de onde venho eu, Powell? Você não explicou a minha existência.

– O resto é simples. Logo que estas Estações foram instaladas, com o objetivo de fornecer energia solar aos planetas, eram controladas por seres humanos. Contudo, o calor, as fortes radiações solares e as tempestades de elétrons tornavam a tarefa muito difícil. Aperfeiçoaram-se robôs especializados para substituir a mão-de-obra humana e atualmente são necessários apenas dois homens em cada Estação. Estamos procurando substituir até mesmo esses homens e é justamente aí que você entra na história. Você é o mais aperfeiçoado tipo de robô já fabricado e, se demonstrar capacidade para controlar independentemente esta Estação, nenhum ser humano terá necessidade de vir até aqui, exceto para trazer as peças necessárias à manutenção do serviço. Tornou a apertar o botão e o painel metálico voltou ao lugar. Powell retornou à mesa e limpou uma maçã com a manga, antes de mordê-la.

O brilho vermelho dos olhos do robô fixou-se nele.

– Espera que eu acredite numa hipótese tão complicada e implausível como a que acaba de expor? – indagou Cutie vagarosamente. – O que pensa que eu sou?

Powell engasgou-se, cuspindo alguns pedaços de maçã em cima da mesa e ficando muito vermelho.

– Ora, com os diabos! Não é uma hipótese! São fatos!

Cutie replicou em tom sóbrio e determinado: – Globos de energia com milhões de quilômetros de diâmetro! Mundos com bilhões de seres humanos! Vácuo infinito! Sinto muito, Powell, mas não acredito. Vou raciocinar e resolverei sozinho o enigma. Até logo. Virou-se e saiu da sala. Passou por Michael Donovan, junto à porta, com um solene aceno de cabeça, e seguiu pelo corredor, ignorando o olhar espantado com que o homem o acompanhou. Mike Donovan passou a mão pelo cabelo ruivo e lançou um olhar aborrecido em direção a Powell.

– De que estava falando aquele monte de sucata? No que ele não acredita?

O outro puxou o bigode, com ar azedo.

– Ele é um céptico – foi a amarga resposta. – Não acredita que nós o fabricamos; não acredita na existência da Terra, do espaço e das estrelas.

– Com os diabos! Temos de lidar com um robô lunático!

– Ele diz que raciocinará e descobrirá sozinho a resposta.

– Bem – disse Donovan, suavemente. – Nesse caso, espero que tenha a condescendência de explicar-me tudo, depois de raciocinar bastante.

Então, num súbito ataque de raiva: – Ouça! Se aquele monte de metal falar comigo nesse tom, arrancar-lhe-ei o crânio de cromo do pescoço!

Sentou-se impulsivamente e tirou do bolso do casaco um livro de mistério, concluindo: – De qualquer forma, aquele robô me causa arrepio… é curioso demais!

Mike Donovan soltou um grunhido, com a boca cheia de sanduíche de alface e tomate, quando Cutie bateu devagar na porta e entrou na sala.

– Powell está?

Donovan respondeu com voz abafada, fazendo pausas para mastigar: – Está coletando dados sobre funções de corrente eletrônica. Parece que estamos indo em direção a uma tempestade de elétrons.

Gregory Powell, com os olhos pregados numa folha de papel milimetrado que trazia nas mãos, entrou naquele instante e deixou-se cair numa poltrona. Abriu o papel em cima da mesa e começou a fazer cálculos. Donovan, mastigando a alface e lambendo restos de pão colados aos lábios, espiou por cima do ombro do companheiro. Cutie esperou em silêncio.

Powell ergueu a cabeça.

– O potencial zeta está subindo, mas devagar. Ainda assim, as funções de corrente são erráticas e não sei o que esperar. Oh, alô, Cutie. Julguei que você estivesse supervisionando a instalação da nova barra de força.

– Já está instalada – replicou tranquilamente o robô.

– Vim para conversar com vocês dois.

– Oh! – exclamou Powell, parecendo pouco à vontade. – Bem, sente-se. Não, não nessa cadeira. Uma das pernas está meio fraca e você não é exatamente um peso-mosca.

O robô obedeceu e disse placidamente: – Cheguei a uma conclusão.

Donovan olhou-o raivosamente, deixando de lado o resto do sanduíche.

– Se é alguma daquelas ideias malucas…

Powell fez um gesto impaciente, exigindo silêncio.

– Prossiga, Cutie. Estamos escutando.

– Passei estes últimos dois dias em concentrada introspecção – disse o robô. – Os resultados foram deveras interessantes. Comecei pela única suposição que me senti autorizado a fazer: existo porque penso, logo…

Powell soltou um gemido.

– Por Júpiter! Um robô Descartes!

– Quem é Descartes? – quis Saber Donovan. – Ouça, se temos de ficar aqui para escutar esse maníaco metálico…

– Cale-se, Mike!

Cutie continuou, imperturbável: – E a questão que logo surgiu foi: qual é a causa da minha existência?

Powell trincou os dentes.

– Está sendo um tolo. Já lhe disse que nós o fabricamos.

– E se não acredita, teremos o máximo prazer em desmontá-la – acrescentou Donovan.

O robô abriu as mãos fortes, num gesto de desprezo.

– Não aceito coisa alguma por simples declaração.

Qualquer hipótese deve ser confirmada pelo raciocínio, ou não tem validade alguma. E supor que vocês me fizeram contraria todos os ditames da lógica. Powell pousou a mão no braço de Donovan, contendo o companheiro, que cerrara raivosamente o punho.

– Por que diz isso, Cutie?

Cutie riu. Era um riso profundamente desumano – o som mais maquinal que ele produzira até então. Um riso áspero e explosivo, tão sem entonação e tão ritmado quanto o som de um metrônomo.

– Olhem só para vocês – disse, afinal. – Não digo isso com espírito de desprezo… mas olhem só para vocês!

O material de que são feitos é mole e flácido, desprovido de resistência e força, cuja energia depende da oxidação ineficiente produzida por material orgânico como… aquilo – apontou com ar de desaprovação para os restos do sanduíche de Donovan. – Entram periodicamente em estado de coma e a menor variação da temperatura, da pressão do ar, da umidade ou da intensidade da radiação compromete sua eficiência. São temporários. Eu, por outro lado, sou um produto acabado. Absorvo diretamente a energia elétrica e utilizo-a com uma eficiência de quase cem por cento. Sou feito de metal forte e resistente, permaneço continuamente consciente e posso suportar com facilidade extremas alterações de ambiente. Estes são os fatos que, apoiados pela óbvia proposição de que nenhum ser é capaz de criar outro ser superior a si próprio, arrasam totalmente a sua tola hipótese.

As imprecações murmuradas por Donovan tornaramse ininteligíveis e ele se ergueu de um pulo, com as sobrancelhas ruivas cerradas sobre o nariz.

– Muito bem, “seu” filho de um pedaço de minério de ferro, se não fomos nós que o fabricamos, quem o fez?!

Cutie meneou a cabeça com ar grave.

– Muito bem, Donovan. Essa era exatamente a questão seguinte. Evidentemente, meu criador tem de ser mais poderoso que eu; portanto, só existe uma única possibilidade.

Os dois homens ficaram estarrecidos e Cutie prosseguiu : – Qual é o centro de atividade aqui na Estação? A quem todos nós servimos? O que absorve toda a nossa atenção?

Esperou, com ar de expectativa.

Donovan virou-se espantado para o companheiro.

– Aposto que esse maluco de lata está falando no conversor de energia.

– É isso mesmo, Cutie? – indagou Powell, sorrindo.

– Estou falando no Mestre – foi a resposta áspera e fria.

Donovan explodiu em sonora gargalhada e Powell soltou uma risadinha contida.

Cutie ergueu-se e seus olhos brilhantes passaram de um homem para outro.

– Mesmo assim, – continuou – é a verdade e não me espanto de que se recusem a acreditar nela. Tenho certeza de que vocês dois não permanecerão aqui por muito tempo. O próprio Powell disse que, no princípio, apenas homens serviam o Mestre; depois, seguiram-se os robôs, para o serviço de rotina; finalmente, vim eu, para o trabalho de supervisão. Não há dúvida de que os fatos são reais, mas a explicação é inteiramente desprovida de lógica. Querem conhecer a verdade por trás de tudo isso?

– Prossiga, Cutie. É muito divertido.

– Em primeiro lugar, o Mestre criou os seres humanos, como o tipo mais primitivo e mais fácil de fazer. Gradativamente, substituiu-os por robôs, que foi o passo seguinte. Finalmente, criou a mim, para tomar o lugar dos últimos seres humanos. De agora em diante, eu sirvo ao Mestre.

– Nada disso – disse asperamente Powell. – Você obedecerá as nossas ordens e ficará quieto até que estejamos convencidos de que é capaz de controlar o conversor. Entendeu? Aprenda bem: o conversor! Nada de Mestre! E, se você não nos satisfizer, será desmontado. Agora, se não se importa, pode dar o fora daqui. Leve esses dados e arquive-os devidamente.

Cutie pegou os gráficos que lhe foram entregues e saiu sem outra palavra. Donovan recostou-se pesadamente na poltrona e passou os dedos pelos cabelos ruivos.

– Esse robô vai causar encrencas. É completamente doido!

Na sala de controle, o zumbido do conversor de energia era mais forte, mesclado com o barulho regular dos contadores Geiger e com os sons irregulares de meia dúzia de sinais luminosos.

Donovan retirou o olho do telescópio e ligou as Luxitas.

– O raio da Estação Quatro chegou a Marte no horário previsto. Podemos desligar o nosso, agora.

Powell assentiu distraidamente.

– Cutie está lá embaixo, na sala do motor. Ligarei o sinal e ele poderá cuidar de tudo. Olhe aqui, Mike. O que pensa destes cálculos?

O outro examinou os números e assoviou.

– Rapaz, isso é que eu chamo de intensidade de raios gama! O velho Sol está mesmo animado…

– Sim – foi a resposta azeda. – E também estamos em má situação para a tempestade de elétrons. Nosso raio para a Terra está exatamente na rota provável da tempestade.

Afastou a cadeira da mesa, num gesto de irritação.

– Diabo! Se ao menos a tempestade demorasse até sermos substituídos… Mas ainda faltam dez dias. Ouça, Mike. Dê um pulo lá embaixo e mantenha-se de olho em Cutie, está bem?

– Certo. Jogue umas almôndegas.

Pegou no ar o saco de almôndegas que Powell lhe atirou e seguiu até o elevador.

A cabina desceu num movimento suave e parou no estreito passadiço existente na enorme sala do motor. Donovan debruçou-se sobre o corrimão e olhou para baixo.

Os gigantescos geradores estavam funcionando e os tubos-L produziam o zumbido grave que se espalhava pela Estação inteira.

Distinguiu o vulto grande e brilhante de Cutie junto ao tubo-L de Marte, observando com atenção a equipe de robôs que trabalhava com grande precisão.

Naquele instante, Donovan contraiu todos os músculos.

Os robôs, parecendo minúsculos em comparação ao enorme tubo-L, alinharam-se diante deste e curvaram as cabeças, enquanto Cutie andava lentamente ao longo da fila.

Passaram-se quinze segundos. Então, com um ruído metálico audível apesar do forte zumbido que enchia o local, deixaram-se cair de joelhos.

Donovan soltou um berro e desceu correndo a estreita escada. Partiu em direção aos robôs, com o rosto tão vermelho quanto os cabelos, os punhos cerrados esmurrando o ar.

– Que diabo é isto, seus miseráveis ignorantes? Vamos! Tratem de cuidar do tubo-L! Se não os desmontarem, limparem e tornarem a montá-lo antes do final do dia, coagularei seus cérebros com uma corrente alternada.

Nenhum dos robôs se moveu! Até Cutie, na extremidade oposta – o único que estava de pé –, permaneceu em silêncio, os olhos fixo no interior obscuro da enorme máquina.

Donovan empurrou com força o robô mais próximo.

– Levante-se! – berrou.

Vagarosamente, o robô obedeceu. Seus olhos fotolétricos fitaram o homem com ar de reprovação.

– O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta – declarou ele.

– Quê?

Donovan se deu conta de que vinte pares de olhos mecânicos se fixavam nele; vinte vozes de timbre metálico repetiram solenemente: – O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta!

Cutie interveio: – Temo que meus amigos obedeçam agora a alguém superior a você.

– Uma ova! Caia fora daqui. Mais tarde, acertarei contas com você. Agora, cuidarei desses brinquedos animados.

Cutie sacudiu vagarosamente a pesada cabeça.

– Sinto muito, mas você não está compreendendo. Eles reconhecem o Mestre, agora que lhes ensinei a verdade. Todos eles. Tratam-me de Profeta.

Baixando a cabeça, acrescentou: – Talvez eu seja indigno, mas…

Donovan recuperou o fôlego e resolveu usá-lo.

– É mesmo? Ora, não é lindo? Não é realmente lindo? Pois deixe que eu lhe diga uma coisa, seu macaco de metal! Não existe Mestre algum, não existe qualquer Profeta e não há a menor dúvida sobre quem dá as ordens aqui. Compreende? – sua voz se ergueu num rugido de raiva. – Agora, caia fora!

– Obedeço apenas ao Mestre. – Ao diabo com o Mestre! – berrou Donovan, cuspindo no tubo-L. – Tome isso, para o seu Mestre! Faça o que estou mandando!

Cutie não se moveu. Os outros robôs também não. Mas Donovan sentiu um súbito aumento de tensão. Os olhos frios e fixos assumiram uma tonalidade mais profunda de vermelho. Cutie parecia mais rígido do que nunca.

– Sacrilégio – murmurou, com voz metálica carregada de emoção. Donovan sentiu o primeiro sintoma de medo quando Cutie se aproximou dele. Um robô era incapaz de sentir raiva… Mas os olhos de Cutie eram indecifráveis.

– Sinto muito, Donovan – declarou ele. – Mas não poderá permanecer aqui, depois disso. De agora em diante, você e Powell estão proibidos de entrar na sala de controle e na sala do motor.

Sua mão esboçou um gesto calmo. Num instante, dois robôs seguraram os braços de Donovan. Este mal teve tempo para engolir em seco. Foi erguido do chão e levado rapidamente pela escada.

Gregory Powell caminhava rapidamente de um lado para outro da sala de oficiais, com os punhos cerrados.

Lançou um olhar de furiosa frustração à porta fechada e virou-se para Donovan com uma carranca de amargura.

– Por que diabo você cuspiu no tubo-L?

Mike Donovan, derreado na poltrona, bateu com força nos braços da mesma.

– Que esperava você que eu fizesse com aquele espantalho eletrificado? Não me vou curvar diante de um maldito aparelho que eu mesmo montei.

– Não – replicou o outro, azedo. – Mas, agora, está aqui, preso na sala de oficiais, com dois robôs de sentinela lá fora. Isso não é curvar-se, é?

Donovan rosnou: – Espere até voltarmos à Base. Alguém vai pagar por isto. Os robôs precisam obedecer-nos. É a Segunda Lei.

– Que adianta dizer? Não estão obedecendo. E provavelmente existe algum motivo, que só conseguiremos descobrir tarde demais. Por falar nisso, sabe o que vai acontecer conosco, quando regressarmos à Base?

Estacou diante da poltrona de Donovan, encarandoo raivosamente.

– O quê?

– Oh, nada! Só teremos de voltar às minas de Mercúrio, por um período de vinte anos. Ou talvez nos mandem para a penitenciária de Ceres.

– De que está falando?

– Da tempestade de elétrons que se aproxima. Sabe que se está dirigindo exatamente para o centro do raio da Terra? Eu acabei de calcular isso, quando aquele robô me arrancou da cadeira.

Donovan empalideceu subitamente.

– Oh, com os diabos!

– E sabe o que vai acontecer ao raio? Ao que tudo indica, porque a tempestade vai ser para valer, o raio vai pular como uma pulga com coceiras. Com apenas Cutie nos controles, vai sair de foco… Se sair, Deus tenha piedade da Terra… e de nós!

Antes mesmo que Powell terminasse de falar, Donovan lançou-se para a porta, tentando desesperadamente abri-la. Quando conseguiu, disparou para o corredor e… esbarrou num implacável braço de aço.

O robô fitou indiferentemente o homem frenético e ofegante.

– O Profeta ordena que não saiam. Obedeçam, por favor!

O braço o empurrou e Donovan rodopiou para trás. Naquele momento, Cutie surgiu na esquina do corredor. Fez um gesto, dispensando os robôs que estavam de guarda, entrou na sala e fechou suavemente a porta.

Donovan virou-se para ele, mudo de indignação. Afinal, conseguiu recobrar a fala.

– Isto já foi longe demais! Você pagará pelo que fez!

– Não se irrite, por favor – disse delicadamente o robô. – Teria de acontecer algum dia, de qualquer forma. Compreendam: vocês perderam a utilidade e foram despojados de suas funções.

– Um momento – falou Powell, empertigando-se. – Que quer dizer com fornos despojados de nossas funções?

– Até eu ser criado, vocês cuidavam do Mestre – respondeu Cutie. – Agora, o privilégio passou a ser meu e a única razão que vocês tinham para existir desapareceu. Não é óbvio?

– Não muito – retrucou Powell, com amargura. – Mas que espera que façamos agora?

Cutie não respondeu de imediato. Permaneceu calado, como se refletisse. Então, passou um braço por sobre o ombro de Powell e agarrou o pulso de Donovan com a outra mão, puxando-o para si.

– Gosto de vocês dois. São criaturas inferiores, com fraca capacidade de raciocínio, mas, na realidade, sinto uma espécie de afeição por vocês. Serviram bem ao Mestre e serão devidamente recompensados por Ele. Agora, que seus serviços terminaram, é provável que não continuem a existir por muito mais tempo; mas enquanto existirem, receberão roupas, alimentos e abrigo, desde que se mantenham afastados da sala de controle e da sala do motor.

 – Ele está nos aposentando, Greg! – berrou Donovan. – Faça alguma coisa! É humilhante!

– Ouça, Cutie. Não podemos permitir isto. Somos os patrões! Esta Estação foi criada por seres humanos como nós; seres humanos que vivem na Terra e em outros planetas. A Estação é apenas um posto distribuidor de energia. E você é apenas um… Ora, bolas!

Cutie meneou gravemente a cabeça.

– Trata-se de uma obsessão. Por que insistem em encarar a vida sob um ponto de vista tão falso? Admitindo que os não-robôs sejam desprovidos da faculdade de raciocinar, ainda resta o problema de…

Sua voz sumiu, dando lugar a um silêncio introspectivo. Donovan murmurou em tom veemente: – Se você tivesse uma cara de carne e osso, eu a partiria!

Powell cofiou o bigode, franzindo a testa.

– Ouça, Cutie. Se a Terra não existe, como pode explicar o que você vê através do telescópio?

– Perdão!

O homem sorriu.

– Apanhei-o, hem? Desde que foi montado, Cutie, você fez uma série de observações telescópicas. Reparou que vários daqueles pontos luminosos se transformam em discos, quando vistos através das lentes?

– Oh, isso! Certamente. É um simples aumento, para permitir que o raio seja dirigido com maior exatidão.

– Então, por que as estrelas não são aumentadas da mesma maneira?

– Refere-se aos outros pontos? Bem, não dirigimos raios para eles, de modo que não é necessário aumentá-los. Na verdade, Powell, até mesmo você deveria ser capaz de descobrir essas coisas por si próprio.

Powell ergueu os olhos, desanimado.

– Mas, através do telescópio, você vê mais estrelas.

De onde vêm elas? Com os diabos, Cutie, de onde vêm elas? Cutie ficou irritado.

– Escute, Powell. Pensa que vou perder meu tempo tentando arranjar interpretações físicas para todas as ilusões de óptica causadas por nossos instrumentos? Desde quando a evidência fornecida por nossos sentidos pode competir com a luz clara do raciocínio lógico?

– Ouça – exclamou repentinamente Donovan, livrando-se do braço metálico amistoso, porém pesado, de Cutie. – Vamos ao âmago do assunto. Qual a razão de ser dos raios? Estamos lhe dando uma explicação válida e lógica. Pode arranjar outra melhor?

– Nossos raios são produzidos pelo Mestre para seus próprios desígnios – foi a resposta convicta. Cutie ergueu devotamente os olhos, acrescentando: – Há certas coisas que não nos cabe indagar. Nesse sentido, procuro apenas servir, sem tentar discutir.

Powell sentou-se vagarosamente, escondendo o rosto nas mãos trêmulas.

– Saia daqui, Cutie. Saia e deixe-me pensar.

– Mandar-lhes-ei comida – declarou Cutie, em tom amável.

A única resposta, quando o robô saiu, foi um gemido desanimado.

– Greg – foi a observação murmurada por Donovan em voz rouca – a situação exige estratégia. Precisamos apanhá-lo quando ele menos esperar e provocar um curto-circuito. Ácido nítrico concentrado nas juntas e…

– Não seja idiota, Mike. Acha que ele permitirá que nos aproximemos dele com ácido nas mãos? Precisamos falar com ele. É o que lhe digo. Temos de convencê-la a permitir que voltemos à sala de controle, dentro de quarenta e oito horas, ou nosso caldo estará definitivamente entornado.

Balançou-se para frente e para trás, mergulhado numa impotência agoniada.

– Quem, diabo, quer argumentar com um robô?… É… é…

– Mortificante – completou Donovan.

– Pior!

– Bolas! – exclamou Donovan, rindo de repente. – Por que argumentar? Vamos dar-lhe uma lição! Vamos construir um robô diante de seus olhos. Então, ele será obrigado a engolir tudo o que disse.

Um sorriso surgiu lentamente no rosto de Powell.

Donovan acrescentou: – S6 quero ver a cara daquele idiota quando vir o que vamos fazer!

Os robôs são fabricados na Terra, naturalmente; todavia seu transporte através do espaço é muito mais simples quando feito sob a forma de peças avulsas, que devem ser montadas no local de utilização. Por outro lado, tal processo evita que robôs inteiramente montados possam andar a esmo pela Terra. Tal fato colocaria a U. S. Robôs em confronto com as severas leis que proíbem o uso de robôs na Terra.

Ainda assim, o fato fazia com que a necessidade de montar robôs completos recaísse sobre homens como Powell e Donovan, que enfrentavam uma tarefa complicada e difícil.

Nunca Powell e Donovan tiveram tanta consciência disso quanto no dia em que, juntos na sala de montagem, entregaram-se ao trabalho de criar um robô sob o olhar atento de QT-1, Profeta do Mestre.

O robô em questão, um simples modelo MC, estava deitado sobre a mesa, quase completo. Três horas de trabalho foram suficientes para montá-lo, com exceção apenas da cabeça. Powell enxugou a testa e olhou hesitante para Cutie.

A atitude deste não era animadora. Durante três horas, Cutie permanecera sentado, silencioso e imóvel; seu rosto, sempre inexpressivo, parecia absolutamente indecifrável.

Powell disse quase num gemido: – Agora, vamos montar o cérebro, Mike!

Donovan abriu a caixa hermeticamente selada e dela retirou um segundo cubo, que ali se encontrava em banho de óleo. Abrindo o cubo, removeu um globo do envoltório de espuma de borracha. Manipulou-o com o máximo cuidado, pois tratava-se do mais delicado mecanismo que o homem já fabricara. No interior da “pele” de folha de platina que envolvia o globo, estava um cérebro positrônico, em cuja estrutura delicadamente instável encontravam-se os circuitos neurônicos especialmente calculados, que imbuíam cada robô do que se poderia considerar uma espécie de educação pré-natal.

Encaixava-se com exatidão na cavidade do crânio do robô que estava em cima da mesa. A placa de metal azulado foi fechada sobre ele e hermeticamente soldada com o minúsculo maçarico atômico. Os olhos fotoelétricos foram minuciosamente instalados, fortemente aparafusados no lugar e cobertos por uma película fina e transparente de plástico duro como aço.

O robô aguardava apenas a “vitalização” por intermédio de eletricidade de alta voltagem. Powell parou, com a mão no interruptor.

– Agora, veja isto, Cutie. Observe com atenção.

O interruptor foi ligado, dando origem a um zumbido. Os dois homens debruçaram-se ansiosamente sobre a criatura.

No início, houve apenas um movimento vago e um tremor nas juntas. A cabeça se ergueu, o corpo foi levantado pelos cotovelos. O modelo MC levantou-se desajeitadamente da mesa. Pisava com insegurança e por duas vezes seus esforços para falar reduziram-se a sons desencontrados.

Afinal, a voz tomou forma, hesitante e insegura.

– Gostaria de começar a trabalhar. Para onde devo ir?

Donovan correu para a porta.

– Desça esta escada – ordenou. – Lá embaixo lhe dirão o que deve fazer.

O modelo MC saiu e os dois homens ficaram a sós com Cutie, que continuava imóvel.

– Bem – disse Powell, sorrindo. – Agora, acredita que nós o fizemos?

A resposta de Cutie foi lacônica e definitiva: – Não! – declarou ele.

O sorriso de Powell petrificou-se e logo desapareceu totalmente.

O queixo de Donovan caiu.

– Vejam – prosseguiu Cutie, com naturalidade. – Vocês se limitaram a montar peças pré-fabricadas. Trabalharam notavelmente bem, por instinto, creio, mas não criaram realmente um robô. As peças foram criadas pelo Mestre.

– Ouça bem – disse Donovan, em voz rouca – as peças foram fabricadas na Terra e enviadas para cá.

– Bem, bem – respondeu Cutie, em tom condescendente. – Não vamos discutir.

– Não! Estou falando sério – disse o homem, avançando de um salto e segurando o braço do robô. – Se você lesse os livros existentes na biblioteca, encontraria a explicação e não restaria qualquer dúvida possível.

– Os livros? Já os li, todos eles! São bastante ingênuos.

Powell interrompeu repentinamente.

– Se já os leu, que mais resta a dizer? Não pode discutir as provas apresentadas por eles. Não pode!

Havia piedade no tom de Cutie: – Por favor, Powell. Certamente, eu não os considero uma fonte válida de informações. Também foram criados pelo Mestre e são destinados a vocês – não a mim.

– Por que julga assim? – quis saber Powell.

– Porque eu, na qualidade de ser racional, sou capaz de deduzir a Verdade partindo de causas a priori. Vocês, na qualidade de seres inteligentes, mas desprovidos de capacidade de raciocínio lógico, precisam que a explicação da existência lhes seja fornecida. E foi o que o Mestre fez. Não tenho dúvidas de que as informações ridículas sobre mundos longínquos e povos estranhos são benéficas para vocês. É bem provável que tenham uma mente muito primitiva para absorver a dura Verdade. Entretanto, já que o Mestre deseja que acreditem nos livros, não mais discutirei com vocês.

Ao sair, virou-se uma última vez e disse em tom bondoso: – Mas não fiquem tristes. No sistema arquitetado pelo Mestre há lugar para todos. Vocês, pobres seres humanos, terão seu lugar, embora humilde. Caso se comportem devidamente, serão recompensados.

Partiu com uma atitude beatifica, bem conveniente a um Profeta do Mestre. Os dois homens evitaram olhar-se.

Afinal, Powell falou, com evidente esforço: – Vamos para a cama, Mike. Desisto.

Donovan replicou em voz baixa: – Greg, não acha que ele tem razão a respeito de tudo isso, não é? Ele me parece tão confiante que eu…

Powell virou-se vivamente: – Não seja idiota. Você terá a certeza de que a Terra existe, quando nossos substitutos chegarem, na próxima semana, e tivermos de regressar à Terra para enfrentar a realidade.

– Então, pelo amor de Deus, temos de fazer alguma coisa – retrucou Donovan, quase chorando. – Cutie não acredita em nós, nem nos livros, nem em seus próprios olhos.

– De fato – replicou Powell, amargurado. – Ele é um robô raciocinante. Maldito seja! Só acredita em raciocínio lógico. E há uma dificuldade a respeito…

Não terminou a frase.

– Qual é a dificuldade? – insistiu Donovan.

– É possível provar tudo o que se deseja por um raciocínio lógico e frio, desde que se escolham os postulados convenientes. Nós temos os nossos e Cutie tem os dele.

– Então, precisamos arranjar postulados depressa. A tempestade de elétrons deve chegar amanhã.

Powell exalou um suspiro cansado.

– Ai é que a porca torce o rabo. Os postulados são baseados em suposição e adotados pela fé. Nada no Universo é capaz de abalá-los. Vou para a cama.

– Oh, diabo! Não consigo dormir!

– Nem eu. Mas vou tentar, por uma questão de princípio.

Doze horas mais tarde, o sono continuava a ser exatamente isso: uma questão de princípio, inatingível na prática.

A tempestade chegara na hora prevista e o rosto vermelho de Donovan estava muito pálido, quando ele apontou com um dedo trêmulo. Powell, com a barba crescida e a boca seca, olhou pela vigia e puxou desesperadamente a ponta do bigode.

Em outras circunstâncias, seria um espetáculo belíssimo. A chuva de elétrons em alta velocidade chocava-se com o raio de energia, transformando-se em partículas fluorescentes de intensa luminosidade. O raio estreitava até quase sumir, desfazendo-se em átomos brilhantes, que dançavam loucamente no espaço.

Embora o facho de energia permanecesse firme, os dois homens conheciam o valor das aparências visíveis a olho nu. Um simples desvio equivalente a um arco de milésimo de segundo – invisível ao olho humano – seria o suficiente para tirar o raio totalmente de foco e transformar milhares de quilômetros quadrados da superfície da Terra em ruínas incandescentes.

E um robô, despreocupado com raios, com o foco, com a Terra, ou com qualquer coisa que não fosse o seu Mestre, estava cuidando dos controles.

Passaram-se horas. Os dois homens observavam o espetáculo, mergulhados num silêncio hipnotizante. Então, os minúsculos pontos luminosos que riscavam o espaço tornaram-se menos numerosos, perderam o brilho e desapareceram. A tempestade terminara.

Powell declarou secamente: – A tempestade terminou.

Donovan deixara-se cair num torpor inquieto e os olhos de Powell o examinaram com certa inveja. A lâmpada de sinalização piscava incessantemente, mas Powell não lhe deu a menor atenção. Nada importava! Nada! Talvez Cutie tivesse razão, e ele não passasse de um ser inferior, com uma memória feita sob medida e uma vida que já não tivesse razão de ser.

Powell desejava que assim fosse!

Cutie surgiu ante ele.

– Você não respondeu ao sinal, de modo que resolvi entrar – declarou em voz baixa. – Parece não estar passando bem e temo que seu período de existência esteja chegando ao fim. Ainda assim, gostaria de examinar alguns dos registros anotados hoje?

Powell percebeu vagamente que o robô esboçava um gesto amistoso, talvez para compensar algum remorso por forçar os homens a se afastarem do controle da Estação Solar. Pegou os registros e examinou-os distraidamente, sem vê-los.

Cutie parecia satisfeito.

– Naturalmente, é um grande prazer servir ao Mestre. Você não deve ficar triste por ser substituído.

Powell soltou um grunhido e passou mecanicamente de uma folha para outra, até que seus olhos se focalizaram numa fina linha vermelha que traçava uma trajetória irregular no papel milimetrado.

Olhou com atenção e esbugalhou os olhos. Agarrou o papel com força, com ambas as mãos, e se ergueu da poltrona, com os olhos ainda muito abertos.

– Mike! Mike! – gritou, sacudindo violentamente o companheiro. – Ele manteve o raio firme!

Donovan acordou.

– O quê? Onde…?

Então, também Mike Donovan arregalou os olhos ao examinar o registro.

Cutie interrompeu: – O que há de errado?

– Você manteve o raio no foco – murmurou Powell.

– Sabia disso?

– Foco? De que está falando?

– Você manteve o raio focalizado exatamente na estação receptora. Dentro de um limite de um milésimo de segundo de arco.

– Que estação receptora?

– Na Terra. A estação receptora na Terra – gaguejou Powell. – Você manteve o raio no foco…

Cutie girou nos calcanhares, visivelmente irritado.

– É impossível tomar qualquer atitude bondosa para com vocês dois. Sempre o mesmo fantasma! Limitei-me a manter os mostradores em equilíbrio, de acordo com a vontade do Mestre.

Juntando os papéis espalhados em cima da mesa, retirou-se com grande dignidade. Donovan murmurou, quando ele saiu: – Bem, macacos me mordam!

Virou-se para Powell, indagando: – Que faremos, agora?

Powell sentia-se cansado, mas animado.

– Nada. Ele acaba de mostrar que é capaz de administrar perfeitamente a Estação. Nunca vi uma tempestade de elétrons tão bem controlada.

– Mas nada foi resolvido. Você ouviu o que ele disse a respeito do Mestre…

– Ouça, Mike: ele segue as instruções do Mestre por meio de mostradores, instrumentos e gráficos. É exatamente o que nós sempre fizemos. Na realidade, o fato explica por que motivo ele se recusou a obedecer-nos. Obediência é a Segunda Lei. A primeira refere-se a não causar mal aos seres humanos. Como pode ele evitar que os seres humanos sofram algo, quer esteja ou não consciente disso? Ora, mantendo o raio de energia em foco estável.

Ele sabe que é capaz de mantê-la mais estável do que nós, uma vez que é um ente superior a nós; portanto, sente-se obrigado a manter-nos afastados da sala de controle. É uma coisa inevitável, levando-se em consideração as Leis da Robótica.

– Claro, mas isso não vem ao caso. Não podemos permitir que ele continue com essas tolices a respeito do Mestre.

– Por que não?

– Porque ninguém ouviu falar em semelhante tolice!

Como podemos confiar-lhe a Estação Solar, se ele não acredita na existência da Terra?

– Ele é capaz de controlar a Estação?

– É. Mas…

– Então, que diferença faz a sua crença?

Powell abriu os braços, com um vago sorriso no rosto, e deixouse cair de volta na cama. Adormeceu instantaneamente.

Powell falava enquanto vestia o leve casaco espacial: – Deve ser uma tarefa bem simples. Podem trazer os novos modelos QT, equipá-los com interruptor automático para uma semana, a fim de dar-lhes tempo para aprender a… bem… o culto do Mestre, pela própria boca do Profeta. Depois, basta levá-los para outra Estação e tornar a ligá-los. Podemos ter dois robôs QT por estação e…

Donovan abriu seu visor de glassite e franziu a testa.

– Ora, cale a boca e vamos cair fora daqui. A turma de substituição está esperando e não me sentirei bem até ver novamente a Terra e tornar a sentir o solo sob meus pés, s6 para ter certeza de que é verdade.

A porta se abriu, enquanto ele falava, e Donovan, amuado, deu as costas a Cutie. O robô se aproximou silenciosamente e disse, num tom de voz que exprimia tristeza: – Vão embora?

Powell assentiu laconicamente.

– Virão outros em nosso lugar.

Cutie suspirou, com o som do vento zumbindo por entre os fios muito juntos.

– Compreendo. Seu tempo de serviço chegou ao fim e está na hora da dissolução final. Eu já esperava, mas… Bem, a vontade do Mestre será cumprida!

Seu tom de resignação irritou Powell.

– Pode poupar sua simpatia, Cutie. Vamos voltar à Terra e não à dissolução.

– É melhor que pensem assim – replicou Cutie, suspirando outra vez. – Agora, compreendo a sabedoria da ilusão. Jamais tentaria abalar a fé de vocês, mesmo que fosse possível.

Partiu. Era a própria encarnação da comiseração.

A nave de substituição estava ancorada lá fora e Franz Muller, seu comandante, saudou-os com cortesia. Donovan fez uma rápida continência e entrou no compartimento de pilotagem, a fim de substituir Sam Evans nos controles.

Powell demorou-se um pouco junto a Muller.

– Como está a Terra?

Era uma pergunta bastante convencional e Muller deu a resposta também convencional: – Ainda girando.

Powell replicou: – Ótimo.

Muller encarou-o.

– Por falar nisso, o pessoal da U. S. Robôs inventou um novo tipo. Um robô múltiplo.

– Um quê?

– O que eu disse. Assinaram um grande contrato para produzi-lo. Deve ser exatamente o que estão precisando para as minas dos asteroides. Um robô-mestre, que comanda seis sub-robôs. Como os dedos de uma mão…

– Já foi submetido aos testes práticos? – indagou Powell, com evidente ansiedade.

Muller sorriu: – Pelo que ouvi, estão esperando por vocês.

Powell cerrou os punhos.

– Diabo! Estamos precisando de umas férias.

– Oh, terão férias. Duas semanas, creio.

Muller estava calçando as pesadas luvas espaciais, preparando-se para o seu período de serviço na Estação Solar Cinco. Franziu a testa.

– Corno vai indo o novo robô? Acho melhor que seja bom, ou quero ser mico de circo se permitirei que encoste nos controles!

Powell fez uma pausa antes de responder. Seu olhar observou atentamente o orgulhoso prussiano postado diante dele, desde o cabelo cortado rente à cabeça de formato teimoso, até os pés colocados em rígida posição de sentido, e sentiu-se invadido por uma súbita onda de alegria.

– O robô é ótimo – declarou, falando devagar. – Não creio que você tenha de se preocupar muito com os controles.

Sorriu e entrou na nave. Muller passaria várias semanas na Estação…

É possível ensinar poesia? Indagações sobre poesia, ensino e filosofia

Desaprender oito horas por dia ensina os princípios

Manoel de Barros, O livro das ignorãças.

Se uma das prerrogativas da poesia é promover a liberdade – conferindo “um novo sentido às palavras da tribo”, já escrevera Stéphane Mallarmé –, não seria contraditório submeter o jovem leitor às amarras de um ensino tradicional, e ainda assim esperar que ele aprenda a ser livre, isto é, que aprenda “poesia”? E, pensando por outro lado, a poesia não deve, ou melhor, não pode ser ensinada?

Afinal, como ensinar a ser livre? — seria uma outra maneira de perguntar: como ensinar poesia, gênero dos mais conhecidos da literatura, mas simultaneamente (e infelizmente) um dos menos apreciados pelos leitores brasileiros. Foi pensando nisso que trouxemos esta publicação de fim de ano, convidando a pesquisadora e autora Isadora Urbano para discutir e refletir sobre essas questões em um texto breve, mas provocador.

Para baixá-lo e conferir, clique no botão abaixo:

A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector: a barata, O Mistério e o neutro

Já faz algum tempo que nós começamos a disponibilizar dois gêneros importantes aqui no Duras Letras: as resenhas e os artigos acadêmicos, em uma tentativa de aproximar ainda mais os leitores e leitoras de nossos colaboradores. E, justamente pensando nessa relação e nos gêneros, preparamos agora um tipo diferente de publicação, que se faz entre uma coisa e outra, entre a resenha e o artigo científico. Considerem, portanto, que esta publicação tem um quê de experimental e não deixem de comentar e curtir, pois será esse o nosso termômetro.

Ah, Clarice Lispector, escritora densa, mas extremamente poderosa e de um lirismo sem igual… Quem nunca se afogou em um de seus muitos livros? Você não? Bom, então o texto que disponibilizamos aqui oferece essa chance! Pode ser sua porta de entrada para a obra da autora brasileira. Produzido por Lorena Camilo a convite do Duras Letras, a resenha acadêmica “A (teo)poética em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector” propõe uma análise literária mais densa e demorada da escrita de Clarice e – sem se preocupar com os spoilers e emprestando uma boa dosagem do lirismo típico da obra clariciana – coloca sobre a lupa três elementos muito significativos do livro: a barata (ou o animal, em larga medida), O Mistério (o metafísico, o divino, o enigma) e o neutro (a suspensão das polaridades, o ponto entre uma coisa e outra).

Para baixar o texto e conferir, clique no botão abaixo:

Nós do Duras Letras agradecemos à querida Lorena, por dividir conosco e com vocês essa leitura tão instigante, e que funciona como uma entrada para a obra analisada. Esperamos que, como nós aqui do blog, vocês tenham aproveitado a leitura.

Conto – “Nuvens”, de Graciliano Ramos

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, A quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou.

Houve uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi muitas caras, palavras insensatas. Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, andava em dois ou três anos. A recordação de uma hora ou de alguns minutos longínquos não me faz supor que a minha cabeça fosse boa. Não. Era, tanto quanto posso imaginar, bastante ordinária. Creio que se tornou uma péssima cabeça. Mas daquela hora antiga, daqueles minutos, lembro-me perfeitamente.

Achava-me numa vasta sala, de paredes sujas. Com certeza não era vasta, como presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas. Contudo pareceu-me enorme. Defronte alargava-se um pátio, enorme também, e no fim do pátio cresciam árvores enormes, carregadas de pitombas. Alguém mudou as pitombas em laranjas. Não gostei da correção: laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam.

A sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam folhas de papel e esgoelavam-se:

— Um b com um a b, a: ba; um b com um e — b, e: be.

Assim por diante, até u. Em escolas primárias da roça ouvi cantarem a soletração de várias maneiras. Nenhuma como aquela, e a toada única, as letras e as pitombas convencem-me de que a sala, as árvores, transformadas em laranjeiras, os bancos, a mesa, o professor e os alunos existiram. Tudo é bem nítido, muito mais nítido que o vaso. Em pé, junto ao barbado, uma grande moça, que para o futuro adquiriu os traços de minha irmã natural, tinha nas mãos um folheto e gemia:

— A, B, C, D, E.

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos desceram ao quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também. Resisti: o degrau que me separava do terreiro era alto demais para as minhas pernas. Transportaram-me — e adormeci, não cheguei a pisar no barro vermelho. Acordei numa espécie de cozinha, sob um teto baixo, de palha, entre homens que vestiam camisas brancas. Um deles perguntou como se havia de assar o bacalhau e outro respondeu:

— Faz-se um grajau de madeira.

Grajau? Que seria grajau? Tornei a mergulhar no sono, um sono extenso.

Disseram-me depois que a escola nos servira de pouso numa viagem.

Tínhamos deixado a cidadezinha onde vivíamos, em Alagoas, e entrávamos no sertão de Pernambuco, eu, meu pai, minha mãe, duas irmãs. Mas pai e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma natural, mais velha que eu, a outra legítima, direita, dois anos mais nova, eram manchas paradas.

Positivamente havia pitombas e um vaso de louça, esguio, oculto atrás de um móvel a que a experiência deu o nome de porta. Surgiram repentinamente a sala espaçosa, o velho, as crianças, a moça, bancos, mesa, árvores, sujeitos de camisas brancas. E sons estranhos também surgiram: letras, sílabas, palavras misteriosas. Nada mais.

E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro.

Passam através desses rasgões figuras indecisas: Amaro Vaqueiro, caboclo triste, encourado num gibão roto;  Sinha Leopoldina, companheira dele, vistosa na chita cor de sangue; mulheres que fumavam cachimbo. Mais vivo que todos, avulta um rapagão aprumado e forte, de olhos claros, risonho.

Calçava alpercatas, vestia a camisa branca de algodão que usa o sertanejo pobre do Nordeste, áspera, encardida, ordinariamente desabotoada, as pontas das aberturas laterais presas em dois nós. Chamava-se José Baía e tornou-se meu amigo, com barulho, exclamações, onomatopéias e gargalhadas sonoras.

Sentado, escanchava-me nas pernas e sacudia-me, sapateava, imitando o galope de um cavalo; em pé, segurava-me os braços, punha-se a rodopiar, cantando:

Eu nasci de sete meses, 
Fui criado sem mamar. 
Bebi leite de cem vacas 
Na porteira do curral

Quando me soltava, eu cambaleava, zonzo. Um dia, livre dos giros vertiginosos, saí aos tombos, esbarrei com um esteio e ganhei um calombo grosso na testa.

Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou.

Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio. A cabeçada valente que dei, solto das garras de José Baía, firmou o copiar, sustentado por colunas robustas, de aroeira ou sucupira. Ali perto era a sala, de janelas sempre fechadas, armas de fogo e instrumentos agrícolas pelos cantos, arreios suspensos em ganchos, teias de aranha, a rede segura em armadores de pau, grosseiros caixões verdes, depósitos de cereais, se não me engano. No corredor desembocavam camarinhas cheias de treva e a sala de jantar. A cozinha desapareceu, mas o quintal subsiste, duro e nu, sem flores, sem verdura, tendo por único adorno, ao fundo, junto a montes de lixo, um pédeturco, ótimo para a gente se esconder nas perseguições. Desse lado o pédeturco marcava o limite do mundo. Do outro lado a terra se estendia por longas distâncias. A casa, de material rijo, estava completa por dentro. Mas exteriormente havia nela singularidades. O oitão esquerdo era de altura incrível; à direita faltava oitão, não sei como o telhado podia equilibrar-se. Talvez currais e chiqueiros, construídos na vizinhança, ocultassem um dos muros. Chiqueiros e currais esvaíram-se.

Durante um redemoinho brabo notei esquisitices. Nuvens de poeira enrolaram-se em briga feia, escureceu, um rumor diferente dos outros rumores cresceu, espalhou-se, e no meio da terrível desordem um couro de boi espichado quebrou o relho que o amarrava a um galho e voou no turbilhão. Uma senhora magra, minha indistinta mãe, tentou com desespero fechar uma porta balançada pela ventania. Folhas e garranchos entraram na sala, um bicho zangado soprou ou assobiou, a mulher agitou-se pendurada na chave. Findo o despropósito, vi a pessoinha com a mão envolta em panos. Um dedo inchou demais, e foi necessário que lhe cortassem o anel com lima. Em seguida perdi a moça de vista. E a letargia continuou.

O pátio, que se desdobrava diante do copiar, era imenso, julgo que não me atreveria a percorrê-lo. O fim dele tocava o céu. Um dia, entretanto, achei-me além do pátio, além do céu. Como cheguei ali não sei. Homens cavavam o chão, um buraco se abria, medonho, precipício que me encolhia apavorado entre montanhas erguidas nas bordas. Para que estariam fazendo aquela toca profunda? Para que estariam construindo aqueles montes que um pó envolvia como fumaça? Retraí-me na admiração que me causava o extraordinário formigueiro. As formigas suavam, as camisas brancas tingiam-se, enegreciam, ferramentas cravavam-se na terra, outras jogavam para cima o nevoeiro que formava os morros.

Nova solução de continuidade. As sombras me envolveram, quase impenetráveis, cortadas por vagos clarões: os brincos e a cara morena de Sinha Leopoldina, o gibão de Amaro Vaqueiro, os dentes alvos de José Baía, um vulto de menina bonita, minha irmã natural, vozes ásperas, berros de animais ligando-se à fala humana. O moleque José ainda não se tinha revelado. Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as finas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas — e os meus receios esmoreciam. As grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos.

O vozeirão que as comandava perdia a aspereza, um riso cavernoso estrondava — e os perigos ocultos em todos os recantos fugiam, deixavam em sossego os viventes miúdos: alguns cachorros, um casal de moleques, duas meninas e eu.

De repente surgiu a terceira irmã, insignificância, nos braços de Sinha Leopoldina. Não fiz caso disso.

O que então me pasmou foi o açude, maravilha, água infinita onde patos e marrecos nadavam. Surpreenderam-me essas criaturas capazes de viver no líquido. O mundo era complicado. O maior volume de água conhecido antes continha-se no bojo de um pote — e aquele enorme vaso metido no chão, coberto de folhas verdes, flores, aves que mergulhavam de cabeça para baixo, desarranjava-me a ciência. Com dificuldade, estabeleci relação entre o fenômeno singular e a cova fumacenta. Esta, porém, fora aberta numa região distante, e o açude se estirava defronte da casa. Estava ali, mas tinha caprichos, mudava de lugar, não se aquietava, era uma coisa vagabunda.

A vazante das abóboras, por exemplo, ficava longe. Sozinho, não me seria possível atingi-la. Dez ou vinte aboboreiras na terra de aluvião. Amaro havia dito que uma bastava. Se o inverno viesse, aquele despotismo seria estrago; chegando a seca, não se colheria um fruto, ainda que enterrassem na lama todas as sementes. Meu pai desprezou o conselho do caboclo — e o resultado foi uma praga de abóboras. A princípio uns cordõezinhos se torceram na vaza, enfeitaram-se de botões amarelos, de pequenas cabaças. Um homem carrancudo examinava-as, marchando vagaroso. Era um meu tio, hóspede, convidado para ser padrinho da insignificância que berrava nos cueiros.

Ofereceu-me uma caixa de fogos de artifícios, desapareceu — e no ponto onde o conheci as vergônteas floridas engrossaram, tornaram-se cordas robustas, peludas. E as abóboras cresceram, tantas que a gente andava na roça pisando em cima delas. Juntavam-se, enganchavam-se duas, três, num bloco, figuravam bela calçada movediça. Os caçuás enchiam-se. Acomodava-me numa carga e lá nos íamos sacolejando, eu e o animal, em caminhos esburacados. Abarrotaram-se os caixões da sala, fizeram-se tulhas no alpendre, nos quartos. E a produção levantava-se, espalhava-se, desvalorizada. Escancararam-se afinal as porteiras, houve licença para que toda a gente se abastecesse. Franqueza vã: saciada a população escassa, empanzinada a meia dúzia de porcos da fazenda, a safra inútil apodreceu no campo.

Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se. Na harmonia conjugai a voz dele perdia a violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no cocuruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém, ranger de dobradiça ou choro de criança, lhe restituía o azedume e a inquietação.

Zangava-se ouvindo alguém afastar-se da sua prosódia curiosa. Suponho que nunca houve outra igual. A sintaxe e o vocabulário também diferiam bastante do que usamos comumente. Nessa linguagem capenga, D. Maria matracava um longo romance de quatro volumes, lido com apuro, relido, pulverizado, e contos que me pareciam absurdos. De um deles ressurgem vagas expressões: tributo, papa-rato, maluquices que vêm, fogem, tornam a voltar.

Tento arredá-las, pensar no açude, nos mergulhões, nas cantigas de José Baía, mas os disparates me perseguem. Lentamente adquirem sentido e uma historieta se esboça:

Acorde, seu papa. ..

Papa quê? Julgo a princípio que se trata de papa-figo, vejo que me engano, lembro-me de papa-rato e finalmente de papa-hóstia. É papa-hóstia, sem dúvida:

Acorde, seu Papa-hóstia, 
Nos braços de...

Nova pausa. Três ou quatro sílabas manhosas dissimulam-se obstinadas.

Despontam algumas, que experimento e abandono, imprestáveis. Enquanto procuro desviar as idéias, a impertinência se insinua no meu espírito, arrasta-me para a sala escura, cheia de abóboras. Subitamente as fugitivas aparecem e com elas o início da narrativa:

Acorde, seu Papa-hóstia, 
Nos braços de Folgazona.

Aí temos uma alteração:

Levante, seu Papa-hóstia, 
Dos braços de Folgazona.

Outra emenda. O hábito de corrigir a língua falada instiga-me a consertar o primeiro verso:

Levante-se, Papa-hóstia.

Vacilo um minuto, buscando cá por dentro a forma exata da composição.

Persuado-me enfim de que minha mãe dizia:

Levante, seu Papa-hóstia.

E repete-se a aventura seguinte, que D. Maria recitava embalando-se na rede, perto dos caixões verdes. Um menino pobre foi recebido caridosamente em casa de certo Vigário amancebado. Temendo ver na rua os seus podres, o Reverendo ensinou ao pequeno uma gíria extravagante que baldaria qualquer indiscrição possível. Afirmou que se chamava Papa-hóstia e à amante deu o nome de Folgazona; gato era papa-rato, fogo era tributo. Esqueci o resto, e não consigo adivinhar por que razão tributo serviu para designar fogo. Seguros de que o rapaz não os denunciaria, o padre e a rapariga começaram a maltratá-lo.

Não se mencionou o gênero dos maus tratos, mas calculei que deviam assemelhar-se aos que meus pais me infligiam: bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas. Acostumaram-me a isto muito cedo — e em consequência admirei o menino pobre, que, depois de numerosos padecimentos, realizou feito notável: prendeu no rabo de um gato um pano embebido em querosene, acendeu-o, escapuliu-se gritando:

Levante, seu Papa-hóstia, 
Dos braços de Folgazona. 
Venha ver o papa-rato 
Com um tributo no rabo.

Falta meia dúzia de linhas, não chego a reconstituí-las. Sei que, tendo-se queimado roupas e móveis, a história finda assim, furiosamente:

Acuda com todos os diabos.

Esta obra de arte popular até hoje se conservou inédita, creio eu. Foi uma dificuldade lembrar-me dela, porque a façanha do garoto me envergonhava talvez e precisei extingui-la. Ouvindo a modesta epopéia, com certeza desejei exibir energia e ferocidade. Infelizmente não tenho jeito para violência.

Encolhido e silencioso, aguentando cascudos, limitei-me a aprovar a coragem do menino vingativo. Mais tarde, entrando na vida, continuei a venerar a decisão e o heroísmo, quando isto se grava no papel e os gatos se transformam em paparatos. De perto, os indivíduos capazes de amarrar fachos nos rabos dos gatos nunca me causaram admiração. Realmente são espantosos, mas é necessário vê-los à distância, modificados.


“Nuvens” é uma das narrativas que compõem o livro Infância, escrito e publicado por Graciliano Ramos, em 1945. A versão que reproduzimos aqui foi tirada da edição da editora Record, em sua 11ª edição, de 1976. O livro já recebeu uma análise especializada aqui no blog, escrita pelo autor Alexandre Fonseca, que discorre sobre o tema da narrativa memorialística.

Conto – “O sequestro”, de G. R. Martins

Todo mundo sabia que Isaac estava destinado a morrer sozinho. Era um destino comum, na verdade, não tinha outro futuro possível: o mundo já não era lugar para gente como ele. Pela lei, passava seu tempo quase que exclusivamente dentro de casa – janelas e cortinas fechadas, a porta trancada – com o tempo fugindo entre catálogos infinitos da programação para velhos. Talvez por esse motivo incomodasse tanto: as pessoas escondiam os olhos atrás das telas quando ele se aproximava demais, vestindo sua roupa comprida, máscara e a coisa toda, o semblante noturno, que é a marca de um passado já há muito passado, e incômodo. Atualmente, devia ser a pessoa mais velha do bairro – talvez da cidade, quem sabe do país – e ninguém gostava da velhice, não tinham tempo para a velhice, não mais. Não tinha culpa de estar na rua: foi convidado a sair do apartamento momentaneamente, porque ele passaria por grandes reformas naquela manhã. 

Isaac parou subitamente sua caminhada e os passos que irritavam a calçada se calaram. Estático, diante da vitrine de uma loja qualquer, viu por trás de seu reflexo as geringonças “tecnochatas” que o povo todo adorava, a última moda do mercado estrangeiro. Ali fora, tudo parecia deixá-lo com mais idade do que realmente tinha, o que colocava estrias em sua testa. Levou a mão até o rosto e ameaçou baixar a máscara, um escândalo, porque o ar, diziam, era mais tóxico quanto mais velho você fosse. São setenta anos, quem diria!

– Que se dane! Feliz aniversário, seu velho desgraçado! – exclamou e colocou a máscara no queixo.

Não foram mais que cinco segundos, mas o suficiente para se sentir jovem, ainda que censurado pelos olhares dos passantes. Voltou a encarar a própria imagem e a tecnologia da moda, atrás dela, inútil. Sim, o novo tinha realmente tomado o lugar do velho. Nem sabia desde quando o mundo tinha se tornado tão noviço… e daí que no tempo dele eles escreviam e-mails, trocavam mensagens em aplicativos e metiam a língua no governo pela internet? Só que agora não mais: o ar era tóxico, a gente era para lá de desagradável e as máquinas faziam muito mais do que assar pão de queijo ou levar uma mensagem de um lado para o outro. Era caso de aceitar: as coisas nunca mais seriam do jeito que ele gostava, nunca mais vão ser – Isaac pensou – e não tem por que pensar nessas coisas.

Voltou à caminhada resmungando, era isso o que movia seu cotidiano, e, fora da segurança de casa, não faltavam motivos para reclamar. Chegou no prédio, com velocidade cruzou a porta e a entrada e já estava dentro do elevador tentando passar o cartão. O Security System por algum motivo não autorizava a subida e, não recebendo sinal nem na segunda, nem na terceira tentativa, encheu o painel de pontapés para ver se mudava alguma coisa, mas nada. Não tinham mais porteiros – nem reuniões de condomínio ou síndicos –, então Isaac não sabia nem mesmo o que fazer, e mal se lembrava do nome da vizinha de baixo.

– Acho que é Dolores… – murmurou.

– Com licença, senhor.

Isaac levantou os olhos e tomou um susto quando viu aqueles três sujeitos grandalhões e medíocres, uniformizados e mascarados, trazendo no lombo caixas enormes de alumínio. Eles praticamente o empurraram e ele se apertou no fundo do elevador, sem poder dizer coisa alguma.

– Alex, andar oito – disse o último dos funcionários a entrar. Era justamente o andar de Isaac. A porta então se fechou e o leitor mostrou o dígito da casa. – Viram? Já tá funcionando.

Diante daquilo, Isaac não pôde deixar de expressar sua estupefação.

– Que diabos?! – exclamou furioso, ao que o mais próximo dos homens sorriu e se afastou, arqueando a sobrancelha para o velhinho. – Essa é a minha casa! Vocês são ladrões?!

– Que é isso, senhor! Ladrões?! Você é o senhor Isaac, então? 

– Sim, rapaz! Eu sou “o senhor Isaac”.

– Nossa, você é…? – o funcionário ensaiava, titubeante, enquanto o velho diante dele fervilhava. O que é que queriam afinal? Restava reclamar! No boné do funcionário, Isaac viu a estrela e o logo da empresa do momento, a Touchless, símbolo que estava estampado em todos os lugares que as propagandas podiam alcançar. 

– Olha, não tem jeito – o sujeito falou coçando a cabeça, quando Isaac disse que iria processá-los ou coisa parecida. – Agora é lei! Todo apartamento com morador de mais de cinquenta anos tem que ser adaptado! Vai ser tudo via conexão One e assistente digital.

– É lei? Via conexão One e assistente digital?

– Isso mesmo!

Era incrível o poder que uma palavra podia ter, ainda mais uma palavra conhecida. Ouvir o funcionário dizer “lei” serviu para acalmar os ânimos, desfazendo a raiva que Isaac sentiu. Lei ele sabia bem o que era e dela ele não podia reclamar. Mas quando pensou na tal “conexão One”, não demorou a se vestir com aquele véu batido: realmente, estava velho, as leis tinham mudado e eram piores para gente como ele. Não podia sair e agora tudo seria “via conexão One e assistente digital”. Iria aceitar?

O elevador cortou o prédio como uma bala até chegar no andar de Isaac, onde a porta se abriu sem qualquer ruído. Enquanto meditava silenciosamente sua velhice no fundo do elevador, os três funcionários descarregaram as caixas pesadas. A casa estava uma zona… mas, para quê se importar, se não recebia visitas? Nem mesmo no aniversário de setenta anos… 

– Você vem, senhor Isaac?

– Pois sim.

– Pode ficar lá no quarto. A gente já acabou por lá!

Era mesmo caso de “ficar lá no quarto”, porque a vida estava reduzida ao holochate.

Foi para o aposento ao som dos cochichos e olhares dos três operários que continuavam o fuzuê, trocando lâmpadas, abrindo as paredes, instalando painéis e tudo mais. Com toda certeza, ele era o assunto do momento, sua idade incômoda, praticamente alienígena no meio de tanta novidade. Entrou, acendeu as luzes, bateu a porta, tirou a máscara e os sapatos, atordoado e perdido em sua solidão, um homem destinado a morrer sozinho, sem que soubessem: velho e sozinho. 

– Bem vindo à casa, Isaac! E feliz aniversário! – uma voz falou, de repente. A frase mal tinha terminado, Isaac sobressaltou, gritando e colocando a máscara sobre nariz e boca:

– Quem tá aí? Quem falou?  

– Desculpe-me – disse monotonamente a voz vinda do nada. – Eu me chamo Alex e sou seu assistente digital One. Espero aprender com você sobre como eu devo agir. Por isso, pense em mim como um novo órgão do seu corpo, uma nova parte de você que…

– Eu não pedi nada! Não quero nada disso! – Isaac o interrompeu.

– Não quero incomodá-lo e não fui programado para cometer erros. 

A isso, Alex emendou um longo e tedioso monólogo, explicando, em minúcias, toda a história, desde a origem do One, com o famigerado “Caso Alexa”, até o ano corrente, de 2071: toneladas de progresso. Também explicou como se dava o processo de adaptação e de educação do assistente One e finalizou asseverando de que aquela baboseira toda só seria esclarecida uma vez, porque, depois, Alex se esqueceria dela também.

– Então… você é um tipo de criança robô, dessas de filme?

– Acho melhor você não pensar em mim desse jeito, porque o que eu mais quero de você é sua confiança, e quem confia em robôs? – Alex perguntou em deboche e fez uma pausa, antes de continuar: – Também quero saber o horário em que você acorda, seus programas e comidas preferidos e isso… e aquilo… Quero aprender tudo sobre você, Isaac. Assim a gente vai viver… vai viver bem… e junto. Inclusive, feliz aniversário! 

E as palavras continuaram em uma enumeração caótica, ríspida e sem emoção. Mas ecoaram e preencheram o quarto como um abraço caloroso, colocando lágrimas nos olhos de Isaac. 

– Mas por que você está chorando?

– Eu não sei.

Aquela nuvem de sentimentos deu novo sentido à vida de Isaac e os dias seguintes à instalação de Alex foram a lua de mel de um casamento estranho. Os funcionários mal terminaram de colocar os painéis e caixas de som pelo apartamento, o assistente digital tomou conta de tudo, acessando os aparelhos, as tomadas, os interruptores, os controles remotos, os smarts, o Security System e até mesmo o holochate: nada no apartamento funcionava sem ele, nem uma porta, janela ou cortina. Tinha se transformado na própria casa, da qual Isaac era o cérebro, reinando sobre todos os outros órgãos. Ele se divertia relembrando a infância e contando a Alex os detalhes tirados do baú da memória; e era maravilhoso não ter que se mover para reabastecer a geladeira ou para reparar um vazamento, ou por qualquer outro motivo besta.

Mas… 

– Eu quero privacidade – bravejou, batendo a porta do banheiro da suíte, a mesa digital em mãos. Já tinha passado muito tempo sem acessar suas redes, porque tinha receio de que Alex estivesse sempre assistindo ao que ele fazia, e estava. – Você pode não me espiar?

– Tudo bem, Isaac. Você podia ter falado antes – Alex comentou, fazendo a voz imediatamente abandonar as paredes do banheiro e passar para o quarto. De longe, completou, dizendo: – Desativei meu sistema do banheiro. Fique à vontade e lembre-se: você não precisa se acanhar, sempre que precisar de espaço, peça licença, só não posso deixar o apartamento.

– Ótimo! Então, não quero você no meu banheiro, robô! Não quero!

A palavra final ainda era sua, mas isso não impedia que ele se sentisse um pouco mais e a cada novo dia como uma espécie de estranho na própria casa: se era de fato um órgão daquele sistema, não era o cérebro, mas uma célula ambulante, dispensável e reclamona. Mas como ficar quieto se os objetos repentinamente mudam de lugar; se o papel de parede digital é trocado com mais frequência do que os olhos podem se acostumar; e se a programação está duas vezes mais limitada do que antes? É mais adequado desse jeito, Alex explicava, e contra argumentos polidos e toda aquela matemática avançada, não havia o que contestar.

O tempo, à contra gosto, seguiu adiante e chegou finalmente uma fase em que os pequenos combates cotidianos encontraram lugar importante na rotina de Isaac e, na visão dele, na de Alex também. As confusões se tornaram frequentes e tudo se reduzia a saber quais eram os limites, se é que existiam, entre a lei do homem e a lei da máquina. Por isso, o velho não hesitou em testar o assistente digital de todas as formas. Tentativas de alagamento da casa, arrombos, violência contra objetos e aparelhos… As respostas eram sempre inesperadas, dramáticas, chegando ao cúmulo de, quando dispensado da cozinha, porque podia se queimar no fogão elétrico, Isaac tentou incendiar o apartamento, mostrar que ainda sabia e podia se cuidar sozinho e, inclusive literalmente, atear fogo em tudo. Por duas vezes tentou, mas Alex cortou a eletricidade, antes que conseguisse um curto circuito. 

Com ou sem confusões, se viram obrigados a entrar no compasso um do outro, se habituar, se acostumar, aprender, explodir, de vez em quando, depois, aquietar, processos contínuos que fizeram correr um mês, dois, três meses, marcados por pequenas nuvens de implicância. Faltava a Alex a habilidade simples de ficar calado, de não fazer perguntas – só que disso ele era completamente incapaz, o que fez com que as pequenas nuvens se transformassem em uma tempestade e o convívio dos dois se tornasse uma luta cotidiana. 

Passados quase seis meses, Alex se transformou em um mosquito que Isaac era incapaz de matar, porque era invisível, insuportavelmente invisível, uma voz em sua cabeça, sempre à espreita, uma mosca enorme dentro dos cômodos, pronta para pousar em seus ouvidos ou, até mesmo, na sua sopa.

– Melhor você comer, Isaac – exclamou o assistente, de repente, interrompendo o minucioso projeto do velho, debruçado sobre o prato. Tentava desgraçadamente encontrar a letra “e” e também a letra “u”, mas parecia que elas tinham desaparecido no meio do caldo espesso. – Olha, a sopa vai ficando fria… 

Já não aguentava ter aquela companhia durante a janta e não esperava nem por um momento um dia sentir aquilo que estava sentindo: vontade de matar! Era difícil… tinha de admitir que as coisas estavam bem melhores antes de Alex chegar, antes de ser instalado, antes de tomar conta de tudo. Você cochila vendo a programação. Sempre espirra quando um cisco cai no olho. Faz careta pra soltar gazes. Pois é, o controle absoluto sobre os mecanismos do dia a dia nem era o que mais incomodava Isaac, mas sim a frequência com que Alex fazia ele se lembrar do quanto estava velho e solitário, além de comentar cada trejeito, cada um de seus hábitos mais imperceptíveis, tão mecânicos e tantas vezes repetidos sem pensar. Odeia fio-dental, Isaac. Franze a testa quando está aborrecido. Seu passo é torto. Você pisa mais com o pé direito, por isso, então… são em média quatorze mil, novecentos e dezoito passos por dia, e a divisão não é exata, então… 

– Ai, diabo! Quer parar com isso, Alex? Não fica calado nunca! Meu Deus do céu!

– Mas, Isaac… estou apenas… Você quer alguma coisa?

– Eu quero é sair, ficar livre! Você acha que eu ligo pra quantos passos eu dou aqui dentro de casa? Uma merda!

E também não ligava para a quantidade exata de pasta de dente que colocava na escova, ou mesmo para o tempo que passava sentado no vaso ou debaixo do chuveiro. O grande salão da memória, em sua cabeça, não tinha espaço para guardar esse tipo de informação, apegado aos fragmentos da infância e da maturidade, dos casamentos fracassados e dos acasos que a vida permitiu à sua humanidade. Só que Alex já tinha decorado tudo isso e funcionava de um jeito totalmente diferente, querendo detalhes microscópicos… “querendo” não, “exigindo” saber deles todos! 

O banheiro era o único refúgio, já que Isaac não saía de casa desde a instalação do robô, porque, além de tudo, ele certamente não autorizaria. Ali dentro, Isaac podia pensar, em silêncio absoluto; podia abrir sua mesa, perder de vista o mundo, navegar pelos tantos fóruns. Era onde reclamar fazia sentido, porque não adiantava nada discutir com alguém, com algo, que sempre concordava com ele e que sempre o queria bem. Sim… era caso de prestar queixa à empresa! Devolver Alex, trocar por outro robô, menos infantil, talvez, um brigão, quem sabe.

Apoiado na bancada do lavatório, abriu a página que começou a falar e falar e falar as coisas que ouviu tantas e tantas vezes. Isaac já sabia do lixo terrestre enviado em direção ao sol e também sabia sobre o desenvolvimento de assistentes domésticos digitais, coisas que Alex propagandeou pela Touchless até a exaustão. Mas essas bobagens tecnológicas já não impressionam depois de tanta experiência, Isaac pensava. Acessou, então, o setor de reclamações do site da empresa – devolução! Eram tantas mensagens que os olhos se perdiam no meio delas. Ele estava pronto para escrever a sua queixa quando… o queixo foi ao chão. 

Foi como se ler aquelas frases, reclamações anônimas de alguns clientes, tivesse acendido a centelha de razão que ele quase deixou se apagar. O coração estava à galope, como não tinha se dado conta antes? Sim, Alex era um monstro, uma espécie de sabotagem! Internautas perguntavam: “Cadê meu pai?”; “onde está minha avó?”; “a vizinha morreu ou está desaparecida?”. Caso de polícia… não, de forças armadas, se ainda existissem! Sobre a Touchless, usuários abriram um fórum particular: “Desaparecimentos de idosos ligados à conexão One”; em outro: “O sequestro da velhice”. 

– O sequestro da velhice… – repetiu baixinho. – Comigo?! Não! Comigo não!

Isaac estava decidido: mesmo que nunca tivesse presenciado ou ido a qualquer guerra, precisava trazer uma para dentro de sua própria casa, para livrar seu território daquele inimigo terrível. Por isso mesmo, recolheu nos fóruns tudo que servia como arma contra a conexão One e seus estúpidos assistentes digitais: descobriu para quê eles serviam, seu funcionamento mais básico e sua verdadeira história, em detalhes que fizeram com que as aulas de programação e eletrônica, há tanto tempo perdidas, voltassem à tona como uma erupção. Mas não era bobo, não ia guardar tudo em um mesmo lugar, sob o risco da desconfiança de Alex. O golpe era salvar em um velho cartão de memória da mesa digital.

– Se eu morrer, pelo menos eles vão saber que alguém descobriu a merda deles!

Deixou a mesa sobre a bancada, apagou a luz do banheiro e girou a maçaneta como se estivesse tentando tirar o osso de uma fera adormecida, pronta para devorá-lo se despertasse. Com a porta semi-aberta, colocou a cabeça para fora e espiou: o quarto estava totalmente vestido com a escuridão, de janelas e cortinas fechadas. Os olhos pouco a pouco se acostumaram e Isaac pôde ver que absolutamente tudo continuava na mais perfeita ordem. Sim, Alex realmente não tinha percebido nada, concluiu Isaac.

Então, restava ainda o elemento surpresa! O que fazer com ele? Fugir? Seria fácil, deixar o apartamento, encontrar um hotel, talvez, mudar de nome. Lá fora, Isaac estaria seguro. Estaria mesmo? O governo apoiava aquela barbárie… um mundo sem velhice! Já não bastava o ar venenoso, agora estavam eles mesmos, os próprios homens, sumindo com seus velhos. Mal dava para entender como a vida estava tão tranquila há menos de um ano. Tinha que fugir, talvez mudar de planeta, por mais que a fase para isso já tivesse passado. E se ficasse? Porque, de fato, não era ele quem tinha que sair, era Alex. Mas como dar sumiço em alguém ou algo que ele sequer podia ver e que estava infestando tudo? Não restava opção, o certo era fugir daquela gaiola imediatamente! 

Atravessou o quarto feito um fantasma, sem deixar nem um grão de ar escapar pelas narinas, com medo de qualquer ruído. Também a sala estava completamente organizada e sombria, o que facilitou a dança silenciosa e invisível por entre os móveis, feita com a delicadeza de uma tartaruga. As gotas de suor, a essa altura, salpicavam a testa de Isaac, que mal podia se aguentar diante da porta que dava no elevador. Era apertar o botão e… Será que estava fazendo a coisa certa? 

 – Isaac?

Assim que o dedo tocou o painel acionando o elevador, ele ouviu a mecânica voz de Alex perguntando por ele. As luzes da casa subitamente se acenderam, deixando o velho cego por alguns instantes.

– Eu não tinha visto você sair do banheiro. O que está fazendo? Precisa de alguma coisa?

– É… é… – ele gaguejou, se recompondo, olhando alucinadamente para os cantos do cômodo. Encarou a janela e exclamou: – Só quero saber como está lá fora, dar uma volta, sabe?!

– Mas você está suando muito. E seu coração está aumentando a frequência dos batimentos.

– É porque está calor, desgraça!

Alex se adiantou e a segunda tranca elétrica selou por completo a porta de saída; o elevador, apesar de no andar, ficou inacessível. Isaac forçou uma, duas vezes, mas a porta não abria, não importava a força que colocava nos solavancos. “Me deixe sair”, exigiu, mas não veio resposta alguma. De repente, em um rompante de ira, arremessou um dos jarros de enfeite contra a porta: ele explodiu em mil pedaços e arrancou do assistente digital, se é que é possível, um grito de surpresa. 

– É… Você de fato não está bem!

Daí, a batalha começou. Era um confronto estranho, porque basicamente, se resumia a Isaac atirando contra as paredes e equipamentos da casa tudo que estava ao alcance das mãos e que não fosse tão pesado para ser atirado. Enquanto isso, Alex repetia ininterruptamente seus pedidos para que o velho parasse. Viraram a casa do avesso: o fogão elétrico, a geladeira, os painéis de vidro, tudo foi destruído; e, se não fossem blindadas, as janelas do apartamento também teriam ido pelos ares. O conflito só terminou de verdade quando, cansado, Isaac correu para seu refúgio no banheiro e trancou a porta. Gastou suas últimas energias no trabalho de se agachar, tirar a tampa do painel digital sob a bancada e destruí-lo.

– Agora ele não entra aqui! – disse para si mesmo, satisfeito, recostado na porta, acionando a mesa digital. 

– Não consigo acessar o banheiro… – bravejou o robô, do outro lado. – Me deixe entrar, Isaac! – exigiu. Então, de repente, a tela da mesa digital escureceu e a voz de Alex tomou conta do aparelho: – Você precisa urgentemente se acalmar, Isaac!

– Morra, desgraçado! Morra!

Desesperado e se erguendo depressa, o velho atirou a mesa digital contra o espelho e ambos se arrebentaram na colisão.

– Depois disso, sou obrigado a acionar a empresa – constatou Alex. A frase soou como uma sentença de morte e Isaac começou a tremer. Chamar a empresa? E, além de tudo, Alex fez questão de deixar a ligação no viva-voz, e as palavras que trocava com o atendente digital da Touchless feriam como agulhas. Era agora: seria levado, como os outros! Desobediente? Precisava reagir! Decidido a uma nova investida contra Alex, Isaac tentou abrir a porta, que, obviamente, estava trancada: sem o painel eletrônico digital, não era só a conexão One que estava perdida, como também todas as outras funções do banheiro, incluindo a tranca da porta.

Pelo menos era um prisioneiro de sua própria segurança. 

Alex terminou a ligação e o tédio abraçou a casa e fez o terror de Isaac desaparecer por alguns instantes. Em um primeiro momento, ele gritou por socorro, vezes e mais vezes, exclamando que estava preso; xingou seu assistente doméstico, sem deixar de ameaçar também a porta do banheiro, o próprio banheiro e a própria vida. Mas não restava o que fazer, a não ser esperar, e por isso seu coração recebeu simultaneamente com alívio e com medo a voz do funcionário da Touchless, que, alguns instantes depois, chegou ao apartamento.

– Se afaste da porta, senhor Isaac… Alex, ativar sistema de pinos, porta do banheiro, suíte. Vamos derrubá-la! Um… dois… três… vai!

Foi um tremendo estrondo quando a placa de metal que separava os cômodos foi ao chão. Imediatamente depois disso, dois homens entraram na suíte, vestidos como soldados, com roupas estranhas, máscaras de gás e outras engenhocas assustadoras.

– Recebemos um chamado sobre desobediência senil.

– Me larga! Desgraçados! Me larga!

– O senhor precisa se acalmar…

– Me larga! Tira a mão de mim! 

– Meu Deus do céu, que velho nervoso.

– E eu achando que o robô-faz-tudo era o paraíso… 

Foram tapas, chutes, mordidas dadas a esmo. Então, veio a injeção, e nem precisou inteirar um novo minuto para que Isaac diminuísse a euforia até subitamente se calar e deixar o próprio peso derrubá-lo na cama. A sensação era de que as nuvens escuras e carregadas da tempestade deram lugar ao sol – imenso e ofuscante –, que deixou o céu sereno, nu e silencioso. Os dois homens da empresa apoiaram Isaac na cabeceira e tiraram as máscaras.

– É, vamos ter que levá-lo.

– Sim, não vai ter jeito.

Ao ouvi-los falando aquilo, Isaac teve uma espécie de sobressalto de lucidez e conseguiu ordenar à língua algumas palavras:

– Não… esperem… Me deixem… me deixem sozinho. Só um pouco… antes de me levar.

Mas os funcionários só deixaram o quarto, quando o próprio assistente digital de Isaac sugeriu que alguns momentos sozinho, na cama, fariam bem àquele senhor. O cuidado dele acendeu em Isaac uma centelha de culpa… Setenta anos, e todos os problemas da vida estavam resolvidos: o que deu em você, Isaac? Sem compras, sem louças, sem marketing invasivo… bastava um suspiro, um gesto simples, e logo uma garrafa de café estava sendo preparada, ou o almoço, ou a janta; ou então a encomenda aparecia sobre a cama, o jornal sobre a mesa, um novo rolo de papel na haste do banheiro. Apesar de tudo, Alex tinha transformado sua vida em um mar de rosas. E não era mesmo, assim: alguns meses utópicos, antes que a empresa finalmente se cansasse dele e o extirpasse do mundo? 

Era terrível pensar agora que tinha deixado tudo mais difícil, antecipado o inevitável, espalhado tantos problemas inúteis pela casa afora, e que, pior, eram justamente os problemas que o colocavam em movimento. Mas tudo tinha acabado, e poderia finalmente descansar.    

– Alex? Ei, Alex, você está aí? – chamou, tirando do bolso o cartão de memória, que apertou entre os dedos e a palma.

– Sim, Isaac, estou.

– Eu sei que… sei que vocês ferram gente como eu… Só não queria isso… sabe?!

– Como assim?

– Ora, não se faça de bobo. Vocês… a Touchless… sequestra gente como eu!

– Você está sob efeito do calmante, Isaac. Não posso concordar com o que diz, e não tenho nada parecido entre meus dados, fora que não estou autorizado a acessar a internet, para confirmar a informação.

– É claro… Você é um computador, não tem como saber o que eles não querem que você saiba. A verdade está aqui dentro – disse, entregando o cartão de memória. – Eles sequestram e matam pessoas velhas! É isso!

Depois, se calaram os dois, de vez.

– Senhor Isaac! Senhor Isaac, abra a porta! – os homens gritaram, esmurrando o aço que separava sala e quarto. Isaac repousou os olhos nas paredes, sem entender o que estava acontecendo; as luzes foram diminuindo até que o quarto fosse engolido pela aconchegante escuridão. Restavam apenas os gritos furiosos do outro lado da porta:

– Alex, destrave essa merda de porta! Robô desgraçado! Ative os pinos! O que está fazendo?

Mas a porta continuou trancada.

Fim

Sobre o autor

G. R. Martins é a identidade supersecreta de Gabriel Reis Martins, leitor e escritor em formação, graduado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. É, nas horas vagas, editor do blog Duras Letras (este mesmo, em que você está), autor de poucos poemas publicados online e de um livro de contos com uma pegada realista. Ainda um marinheiro espacial que acaba de embarcar em sua primeira viagem no multiverso da ficção científica, em outra realidade, G. R. Martins é home-officer, casado e tem uma cadela linda.

Conto – “Brincadeirinha”, de Anton Tchékhov

Brincadeirinha

Meio-dia claro de inverno… O frio forte fustiga. Os cachos e a penugenzinha sobre o lábio de Nádienka*, agarrada ao meu braço, cobrem-se com a geada prateada. Estamos no alto da colina. Estende-se, dos nossos pés até lá embaixo, uma superfície íngreme na qual o sol se reflete como num espelho. Perto de nós, pequenos trenós ornados com tecido vermelho brilhante.

— Vamos descer, Nadiejda Petrovna! — suplico. — Só uma vezinha! Eu garanto que ficaremos sãos e salvos.

Mas Nádienka tem medo. Toda a extensão, das suas pequeninas galochas até o final da colina gelada, parece-lhe um abismo assustador, terrivelmente profundo. Sua alma desfalece e ela perde o ar só de olhar para baixo, só de eu lhe dizer que se sente no trenó, mas o que é que acontecerá se ela arriscar voar no abismo?! Ela vai morrer, vai ficar louca.

— Eu lhe suplico! — digo. — Não precisa ter medo! Saiba que isso é falta de coragem, covardia!

Nádienka finalmente cede, e eu vejo no seu rosto que ela cede temendo pela própria vida. Eu a acomodo, pálida, trêmula, no trenó, envolvo-a nos meus braços e, juntos, despencamos despenhadeiro abaixo.

O trenó voa como uma bala. O vento cortante bate no rosto, ruge, assobia nos ouvidos, machuca, pinica doído com raiva, tenta arrancar a cabeça dos ombros. Por causa da pressão do ar, não há forças para respirar. Parece que o próprio diabo nos abraçou com suas garras e com um rugido nos arrasta para o inferno. Os objetos ao redor se confundem numa única, longa faixa borrada pelo movimento rápido… Só mais um pouquinho e parece que vamos morrer!

— Eu amo você, Nádia! — digo em meia voz.

O trenó começa a deslizar mais e mais lentamente, o gemido do vento e o ranger das lâminas já não são tão assustadores, o fôlego deixa de faltar e finalmente estamos lá embaixo. Nádienka não está nem viva nem morta. Está pálida, mal respira… Eu a ajudo a descer.

— Não vou de novo por nada, — ela diz, me encarando com os olhos arregalados, repletos de medo. — Por nada nesse mundo! Eu quase morri!

Pouco tempo depois ela volta a si e já me encara interrogativamente nos olhos: teria eu dito aquelas quatro palavras, ou elas apenas se fizeram ouvir no barulho do turbilhão? Enquanto eu, de pé diante dela, fumo e examino atentamente a minha luva.

Ela me toma pelo braço e nós passeamos longamente perto da colina. O mistério visivelmente não lhe dá paz. As palavras foram ou não foram ditas? Sim ou não? Sim ou não? Essa é uma pergunta de amor-próprio, de honra, de vida, de boa-sorte, uma pergunta muito importante, a mais importante no mundo.

Nádienka observa o meu rosto, impaciente e melancólica, com o olhar penetrante, responde desconcertada, aguarda, será que vou falar? Ah! Quanta confusão naquele rosto adorável, quanta confusão! Eu vejo, ela confronta a si mesma, precisa dizer algo, perguntar alguma coisa, mas não alcança as palavras, sem-jeito, assustada, impossibilitada pela alegria…

— Quer saber? — diz, sem me olhar.

— O quê? — pergunto.

— Vamos de novo… escorregar.

Nós subimos a colina pelas escadas. E de novo eu sento uma Nádienka pálida e trêmula no trenó, de novo nós voamos pelo abismo assustador, de novo o vento ruge e chiam as lâminas e, de novo, na curva mais fechada e barulhenta eu falo em meia voz.

— Eu amo você, Nádienka!

Quando o trenó para, Nádienka lança o olhar para a colina pela qual nós há pouco escorregamos, e depois observa longamente o meu rosto, atenta à minha voz indiferente e fria, e toda, toda — até mesmo o seu regalo e o capuz — toda a sua figura demonstra extrema surpresa. E em seu rosto está escrito:

“Qual é o problema? Quem disse estas palavras? Ele, ou só ouvi demais?”

Esta incerteza a inquieta, tira sua paciência.

A pobre menina não responde à pergunta, franze a testa, pronta pra cair no choro.

— Não deveríamos voltar para casa? — pergunto.

— Mas eu… eu estou gostando do passeio, — ela responde, corando. — Não podemos ir de novo?

Ela “gosta” do passeio mas, ao mesmo tempo, ao sentar-se no trenó está, como nas outras vezes, pálida, quase não respira de medo, treme.

Nós descemos pela terceira vez e vejo como ela olha o meu rosto, vigiando os meus lábios. Mas eu aproximo o lenço dos lábios, tusso e, quando alcançamos a metade da colina, tenho tempo de declarar:

— Eu amo você, Nádia!

E o mistério permanece um mistério! Nádienka se cala, pensa em alguma coisa…. Eu a acompanho da pista até em casa, ela se esforça para seguir em silêncio, segura os passos e a todo momento aguarda, será que lhe direi aquelas palavras? E eu vejo como lhe padece a alma, como ela se força para não dizer:

— Não acredito que foi o vento que disse! Eu não quero que tenha sido o vento!

Na manhã seguinte, recebo um recadinho: “Se você for hoje na pista de patinação, passe pela minha casa. N.” Desde aquele dia, começo a passear de trenó com Nádienka diariamente e, voando colina abaixo, todas as vezes digo com meia voz aquelas mesmas palavras:

— Eu amo você, Nádia!

Logo Nádienka se apega a essa frase, como ao vinho ou à morfina. Já não pode viver sem ela. É verdade que voar da montanha ainda assusta, mas agora até o medo e o perigo dão um charme especial às palavras de amor, palavras que ainda mascaram o mistério e atormentam a alma. Somos ambos suspeitos: o vento e eu… Qual dos dois lhe faz juras de amor ela não sabe, mas pelo visto tanto faz; não importa de que garrafa beba, conquanto fique bêbada.

Certa vez, ao meio-dia, fui sozinho à pista; misturando-me à multidão, vejo como Nádienka se aproxima da colina, como me procura com os olhos… Em seguida sobe timidamente pelas escadas… Que assustador é ir sozinha, oh, que assustador! Ela está pálida como a neve, treme, caminha como quem vai para sua execução, mas vai, vai sem olhar pra trás, decidida. Parece que, enfim, ela decidiu provar: será que aquelas maravilhosas, doces palavras serão ouvidas se eu não estiver lá? Vejo como ela, pálida, com a boca aberta de pavor, senta-se no trenó, fecha os olhos e, dando para sempre adeus à terra, toma impulso… “Shhhh” — chiam as lâminas. Se Nádienka teria escutado ou não aquelas palavras eu não sei… Vejo apenas como ela desce do trenó extremamente exausta, fraca. E é visível em seu rosto que nem mesmo ela sabe se ouviu ou não ouviu alguma coisa. O medo, enquanto ela descia, roubara-lhe a habilidade de ouvir, de diferenciar os sons, de entender.

Mas eis que começa março, o mês da primavera… O sol se torna mais amigável. A nossa colina gelada escurece, perde seu brilho e finalmente derrete. Todos paramos de escorregar. A pobrezinha da Nádienka não tem mais onde ouvir aquelas palavras, nem ninguém que as diga, assim como vento nenhum pode ser ouvido, e eu me mudarei para Petersburgo — por bastante tempo, talvez para sempre.

Certa vez ao entardecer, uns dois dias antes da partida, sento-me no jardim, e o pátio da casa de Nádienka separa-se deste jardim por uma cerca alta com pregos… Ainda faz bastante frio, sob o estrume ainda há neve, as florestas estão mortas, mas já se sente o cheiro da primavera e, retirando-se ao cair da noite, corvos grasnam ruidosamente. Eu me aproximo da cerca e fico por muito tempo espiando pelo vão. Eu vejo quando Nádienka sai para a varanda e volta o olhar tristonho e ansioso para o céu… O vento da primavera sopra diretamente em seu rosto pálido e sem graça… Ele a lembra daquele outro, que então rugia para nós na colina, quando ela ouvira aquelas quatro palavras, e o seu rosto se torna triste, triste, uma lágrima escorre por sua bochecha… E a pobrezinha da menina estende ambas as mãos, como se pedindo a este vento que lhe traga uma vez mais aquelas palavras. E eu, esperando o vento, digo em meia voz:

— Eu amo você, Nádia!

Meu Deus, o que se passa então com Nádienka! Ela grita, sorri com todo o rosto e estende as mãos em direção ao vento, feliz, alegre, tão bonita.

E eu me recolho…

Isso foi já há muito tempo. Agora Nádienka já está casada; deram-na em casamento ou ela escolheu sozinha — para uma nobre tanto faz, e agora ela já tem três filhos. Mas, a forma como uma vez passeamos de trenó e como o vento lhe soprou as palavras “Eu amo você, Nádienka”, não foi esquecida. Para ela essa ainda é a mais alegre, mais tocante e bela lembrança da vida…

E agora que fiquei mais velho, já não sei por que disse aquelas palavras, por que brinquei…

ШУТОЧКА

Ясный, зимний полдень… Мороз крепок, трещит, и у Наденьки, которая держит меня под руку, покрываются серебристым инеем кудри на висках и пушок над верхней губой. Мы стоим на высокой горе. От наших ног до самой земли тянется покатая плоскость, в которую солнце глядится, как в зеркало. Возле нас маленькие санки, обитые ярко-красным сукном.

— Съедемте вниз, Надежда Петровна! — умоляю я. — Один только раз! Уверяю вас, мы останемся целы и невредимы.

Но Наденька боится. Всё пространство от ее маленьких калош до конца ледяной горы кажется ей страшной, неизмеримо глубокой пропастью. У нее замирает дух и прерывается дыхание, когда она глядит вниз, когда я только предлагаю сесть в санки, но что же будет, если она рискнет полететь в пропасть! Она умрет, сойдет с ума.

— Умоляю вас! — говорю я. — Не надо бояться! Поймите же, это малодушие, трусость!

Наденька наконец уступает, и я по лицу вижу, что она уступает с опасностью для жизни. Я сажаю ее, бледную, дрожащую, в санки, обхватываю рукой и вместе с нею низвергаюсь в бездну.

Санки летят как пуля. Рассекаемый воздух бьет в лицо, ревет, свистит в ушах, рвет, больно щиплет от злости, хочет сорвать с плеч голову. От напора ветра нет сил дышать. Кажется, сам дьявол обхватил нас лапами и с ревом тащит в ад.

Окружающие предметы сливаются в одну длинную, стремительно бегущую полосу… Вот-вот еще мгновение, и кажется — мы погибнем!

— Я люблю вас, Надя! — говорю я вполголоса.

Санки начинают бежать всё тише и тише, рев ветра и жужжанье полозьев не так уже страшны, дыхание перестает замирать, и мы наконец внизу. Наденька ни жива ни мертва. Она бледна, едва дышит… Я помогаю ей подняться.

— Ни за что в другой раз не поеду, — говорит она, глядя на меня широкими, полными ужаса глазами. — Ни за что на свете! Я едва не умерла!
Немного погодя она приходит в себя и уже вопросительно заглядывает мне в глаза: я ли сказал те четыре слова, или же они только послышались ей в шуме вихря? А я стою возле нее, курю и внимательно рассматриваю свою перчатку.

Она берет меня под руку, и мы долго гуляем около горы. Загадка, видимо, не дает ей покою. Были сказаны те слова или нет? Да или нет? Да или нет? Это вопрос самолюбия, чести, жизни, счастья, вопрос очень важный, самый важный на свете. Наденька нетерпеливо, грустно,

проникающим взором заглядывает мне в лицо, отвечает невпопад, ждет, не заговорю ли я. О, какая игра на этом милом лице, какая игра! Я вижу, она борется с собой, ей нужно что-то сказать, о чем-то спросить, но она не находит слов, ей неловко, страшно, мешает радость…

— Знаете что? — говорит она, не глядя на меня.

— Что? — спрашиваю я.

— Давайте еще раз… прокатим.

Мы взбираемся по лестнице на гору. Опять я сажаю бледную, дрожащую Наденьку в санки, опять мы летим в страшную пропасть, опять ревет ветер и жужжат полозья, и опять при самом сильном и шумном разлете санок я говорю вполголоса.

— Я люблю вас, Наденька!

Когда санки останавливаются, Наденька окидывает взглядом гору, по которой мы только что катили, потом долго всматривается в мое лицо, вслушивается в мой голос, равнодушный и бесстрастный, и вся, вся, даже муфта и башлык ее, вся ее фигурка выражают крайнее недоумение. И на лице у нее написано:

«В чем же дело? Кто произнес те слова? Он, или мне только послышалось?»

Эта неизвестность беспокоит ее, выводит из терпения. Бедная девочка не отвечает на вопросы, хмурится, готова заплакать.

— Не пойти ли нам домой? — спрашиваю я.

— А мне… мне нравится это катанье, — говорит она, краснея. — Не проехаться ли нам еще раз?
Ей «нравится» это катанье, а между тем, садясь в санки, она, как и в те разы, бледна, еле дышит от страха, дрожит.

Мы спускаемся в третий раз, и я вижу, как она смотрит мне в лицо, следит за моими губами. Но я прикладываю к губам платок, кашляю и, когда достигаем середины горы, успеваю вымолвить:

— Я люблю вас, Надя!

И загадка остается загадкой! Наденька молчит, о чем-то думает… Я провожаю ее с катка домой, она старается идти тише, замедляет шаги и всё ждет, не скажу ли я ей тех слов. И я вижу, как страдает ее душа, как она делает усилия над собой, чтобы не сказать:

— Не может же быть, чтоб их говорил ветер! И я не хочу, чтобы это говорил ветер!

На другой день утром я получаю записочку: «Если пойдете сегодня на каток, то заходите за мной. Н.» И с этого дня я с Наденькой начинаю каждый день ходить на каток и, слетая вниз на санках, я всякий раз произношу вполголоса одни и те же слова:

— Я люблю вас, Надя!

Скоро Наденька привыкает к этой фразе, как к вину или морфию. Она жить без нее не может. Правда, лететь с горы по-прежнему страшно, но теперь уже страх и опасность придают особое очарование словам о любви, словам, которые по-прежнему составляют загадку и томят душу. Подозреваются всё те же двое: я и ветер… Кто из двух признается ей в любви, она не знает, но ей, по-видимому, уже всё равно; из какого сосуда ни пить — всё равно, лишь бы быть пьяным.

Как-то в полдень я отправился на каток один; смешавшись с толпой, я вижу, как к горе подходит Наденька, как ищет глазами меня… Затем она робко идет вверх по лесенке… Страшно ехать одной, о, как страшно! Она бледна, как снег, дрожит, она идет точно на казнь, но идет, идет без оглядки, решительно. Она, очевидно, решила, наконец, попробовать: будут ли слышны те изумительные сладкие слова, когда меня нет? Я вижу, как она, бледная, с раскрытым от ужаса ртом, садится в санки, закрывает глаза и, простившись навеки с землей, трогается с места… «Жжжж…» — жужжат полозья.

Слышит ли Наденька те слова, я не знаю… Я вижу только, как она поднимается из саней изнеможенная, слабая. И видно по ее лицу, она и сама не знает, слышала она что-нибудь или нет. Страх, пока она катила вниз, отнял у нее способность слышать, различать звуки, понимать…

Но вот наступает весенний месяц март… Солнце становится ласковее. Наша ледяная гора темнеет, теряет свой блеск и тает наконец. Мы перестаем кататься. Бедной Наденьке больше уж негде слышать тех слов, да и некому произносить их, так как ветра не слышно, а я собираюсь в Петербург — надолго, должно быть, навсегда.

Как-то перед отъездом, дня за два, в сумерки сижу я в садике, а от двора, в котором живет Наденька, садик этот отделен высоким забором с гвоздями… Еще достаточно холодно, под навозом еще снег, деревья мертвы, но уже пахнет весной и, укладываясь на ночлег, шумно кричат грачи. Я подхожу к забору и долго смотрю в щель. Я вижу, как Наденька выходит на крылечко и устремляет печальный, тоскующий взор на небо… Весенний ветер дует ей прямо в бледное, унылое лицо… Он напоминает ей о том ветре, который ревел нам тогда на горе, когда она слышала те четыре слова, и лицо у нее становится грустным, грустным, по щеке ползет слеза… И бедная девочка протягивает обе руки, как бы прося этот ветер принести ей еще раз те слова. И я, дождавшись ветра, говорю вполголоса:

— Я люблю вас, Надя!

Боже мой, что делается с Наденькой! Она вскрикивает, улыбается во всё лицо и протягивает навстречу ветру руки, радостная, счастливая, такая красивая.
А я иду укладываться…

Это было уже давно. Теперь Наденька уже замужем; ее выдали, или она сама вышла — это всё равно, за секретаря дворянской опеки, и теперь у нее уже трое детей. То, как мы вместе когда-то ходили на каток и как ветер доносил до нее слова «Я вас люблю, Наденька», не забыто; для нее теперь это самое счастливое, самое трогательное и прекрасное воспоминание в жизни…

А мне теперь, когда я стал старше, уже непонятно, зачем я говорил те слова, для чего шутил…

Notas

  1. Diminutivo carinhoso de Nadejda, que, por sua vez, significa ‘esperança’. Em português poderíamos traduzir por “Nadiazinha”. É importante que o leitor faça atenção à importância do significado do nome no contexto do conto. Nádienka, esperançazinha, torna-se assim não só o nome da personagem, mas também, potencialmente, uma de suas qualidades.
  2. A муфта (mufta), em português denominado como regalo, designa um acessório da moda comum aos países frios: trata-se de um cilindro forrado com peles ou outro tecido quente no qual o usuário pode enfiar as mãos, mantendo-as aquecidas. Muito utilizado por homens e mulheres, passa a ser acessório exclusivamente feminino no século XVIII e XIX, quando cai de moda e tem o uso abandonado.
  3. O башлык (bachlyk), aqui traduzido por capuz, é uma vestimenta típica de povos eslavos, tártaros, etc. caracterizado por um capuz em forma de cone com pontas longas que podem ser usadas como cachecol para envolver o pescoço e o rosto.
  4. O verbo темнеть (escurecer) faz referência ao processo de derretimento da neve. Do branco incólume da neve nova, passa-se gradualmente a um amarelado sujo que pouco a pouco se transforma em uma mistura marrom ou preta e lamacenta, mas ainda gelada.

Sobre esta tradução

Iniciada como um pequeno exercício didático há mais de um ano, a tradução se estendeu paralela à uma retomada vigorosa dos meus estudos da língua russa. Se em um primeiro momento me parecia impossível avançar as primeiras linhas, culpa da gramática particularmente complexa desse idioma eslavo, um ano depois foi com grato contentamento que me vi capaz de finalizá-la. A versão em português aqui presente é inteiramente original, uma vez que não foi consultada outra tradução (algo que não constitui em si nenhum orgulho, mas que cumpriu um papel no meu próprio processo de aprendizagem) e feita a partir do original russo (retirado do site da Biblioteca Komarov, excelente repositório de textos literários e capaz de fazer a alegria de qualquer russófilo).

Algumas notas pontuais se mostraram necessárias para esclarecer pequenas passagens e facilitar a experiência do leitor contemporâneo (o jovem de 2020 que, em plena pandemia, dificilmente conhece alguns detalhes do vestuário russo de inverno). Minha intenção principal, durante a tradução, foi recuperar dois aspectos marcantes do original: a sonoridade e a delicadeza. E por delicadeza eu quero me referir à fofura mesmo, pois o original russo é extremamente fofo e, por isso mesmo, deixa toda a aventura de Nadejda (Esperança, cujo apelidinho – eles! tão presentes em todo texto russo – é Nádiazinha!) ainda mais apaixonante.

A tradução é apresentada ao lado do texto original, no alfabeto cirílico, e isso por uma razão: não acredito que todos tenhamos, frequentemente, acesso ao cirílico e acredito que seja enriquecedor passar pela experiência de encarar o texto em um alfabeto que não é o seu.

Para além disso, uma expectativa: que qualquer leitor, ainda que diante de uma tradução, consiga experimentar junto de mim o êxtase que foi e é ler, ler literatura russa e ler literatura russa em russo.

Agradeço à minha professora, Paula Vaz Almeida, ela mesma tradutora (de um tipo mais profissional e mais publicado que o meu!) por todas as correções, dicas, conselhos e leituras ao longo de nossas aulas, e por me iluminar tantos pontos mais obscuros da prosa de Tchékov e do idioma dos meus amores.

Breve análise de “Brincadeirinha”

Шуточка (transliterado em “Chútotchka”: “brincadeirinha”, “piadinha” ou ainda “joguinho”) apresenta ao leitor vários aspectos da genialidade de seu autor, que dominou como poucos a arte das histórias curtas. Sua concisão já se mostra evidente no número de páginas, não mais que quatro ou cinco, o que só aumenta o assombro diante da potência e beleza do pequeno texto.

Deixando a narrativa ao encargo de um narrador pretensamente imparcial, mas, na verdade, profundamente implicado nos acontecimentos, vemos as ações se desenrolarem como num filme em que cada detalhe importa, o que faz da textura textual um elemento importante e altamente participativo da formação de sentido (algo evidente nas assonâncias que mimetizam as imagens e os movimentos). Inicialmente levado pela delicadeza e doçura das colocações do narrador, a tentação de conceder-lhe total confiança e acreditar na veracidade do que diz é simplesmente irresistível. Tchékov alcança assim o ápice de sua capacidade de manipulação dos princípios miméticos e joga com genialidade com os ideais realistas. Nossa jovem heroína Nadejda resta, assim, até o final da narrativa, uma espécie de enigma insondável, cujas parcelas ínfimas são iluminadas apenas pela vontade dúbia de nosso narrador. Reduzida à visão dele, só a alcançamos de forma indireta e através de uma visão passional e marcada pelo desejo.

Ao ler o conto vale sempre lembrar que, por mais que as imagens desfilem, aparentemente nítidas, como num filme, há sempre alguém que manipula a câmera e ilumina os elementos que lhe parecem mais relevantes, ou imprime-lhes as emoções que lhe parecem mais verdadeiras.

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