“Infância”, de Graciliano Ramos: memória e transculturação narrativa

Texto de apresentação por Gabriel Reis Martins
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A memória, com seus funcionamentos e seus mistérios, é um tema que atravessa não só inúmeras obras da filosofia desde a antiguidade, como também se faz presente nos mais variados escritos da literatura. Quem não se lembra, por exemplo, dos três calhamaços que compõem Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, obra que, para além de sua beleza, funda inúmeros procedimentos narrativos, principalmente ligados à rememoração?

Pois bem, nesta publicação, gostaríamos de trazer um artigo que faz luz justamente na dimensão literária da memória – e, mais especificamente, da memória na literatura brasileira –, procurando entender de que maneira os autores frequentemente preenchem as lacunas, efeito natural do tempo, de suas lembranças. O artigo foi escrito pelo pesquisador de literatura brasileira Alexandre Fonseca, que analisa a obra Infância, de Graciliano Ramos, a partir de percepções extraídas do próprio livro e de considerações feitas por seus críticos.

Nós do Duras Letras agradecemos ao pesquisador pela redação do artigo e esperamos que suas palavras possam contribuir com a leitura de vocês, como contribuiu para a nossa!

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Repensando a sociedade com “Primeiro de Maio”, um conto de Mário de Andrade

O nome de Mário de Andrade (1893-1945) é tão corriqueiro e importante para a historiografia literária brasileira que dispensa apresentações longas. Autor do célebre Macunaíma e um dos protagonistas da Semana de Arte Moderna, de 1922, Mário pode muito bem ser considerado uma das “antenas da raça” – expressão utilizada por Ezra Pound para descrever os grandes literatos – que perambulava pelas ruas de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.

Antenado não só ao cotidiano da grande cidade moderna, Mário também se mostrava um leitor assíduo das teorias e correntes filosóficas que tiveram seu germe no século XIX, destilando em suas obras conteúdos que se assemelham às ideias de inconsciente, de Freud, de classe, a partir do marxismo, e de linguagem, no sentido saussuriano. A coletânea Contos novos, publicada postumamente, em 1947, organizada por amigos do escritor, condensa muitos desses traços significativos que Mário assimilou ao longo de seus anos de pesquisa estética. A oralidade e a linguagem cinematográfica estão entre os aspectos estilísticos de escrita que o autor esmerava, diretamente relacionados às vanguardas europeias, principalmente o Futurismo, de Marinetti (1876-1944). Além disso, as narrativas estão estritamente relacionadas aos acontecimentos vivenciados pelos brasileiros daquele tempo. Qualquer um desses elementos pode ser identificado em um dos nove contos que compõem a obra, como veremos a seguir.

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Um bom exemplo desse olhar sobre a história e sobre as grandes revoluções filosóficas aparece no conto Primeiro de Maio, terceira estória do livro. Nesse breve escrito, o narrador acompanha a trajetória e pensamentos de 35, um trabalhador da Estação da Luz, que queria celebrar e havia de celebrar o Dia do Trabalhador. Primeiramente, cabe dizer sobre esse conto que é aliado aos traços estilísticos próprios de Mário de Andrade (como o uso de “si“, ao invés de “se” e “pra“, ao invés de “para”), que há nessa narrativa um alinhamento entre um corpo social, uma ideia de trabalhador como classe, e um corpo psíquico, os desejos individuais do protagonista.

Mas, de fato, os primeiros traços que chamam a atenção no conto são os nomes das personagens, que, obviamente e não por acaso, se resumem a números (35, 22 e 486), e o tempo diegético da narrativa, que representam uma jornada de trabalho convencional, começando não bem às seis da manhã e terminando pouco depois das dezessete.

(19)35 – Ano da proclamação do Dia do Trabalhador;
(19)22 – Ano de fundação do Partido Comunista Brasileiro;
D. lei nº 486, de 10 de junho de 1938: institucionaliza o feriado de Primeiro de Maio.

Já no significado desses nomes encontramos uma ideia que se fazia presente naquele tempo e que ainda hoje possui repercussões: o alinhamento político-ideológico entre o trabalhador e o movimento comunista, que encontra seu ápice ao fim da narrativa, como uma esperança de mudança frente a todos os acontecimentos daquele dia de primeiro de maio, frustrado: 35 ajuda 22, também um trabalhador da Estação da Luz, a carregar as malas e, detalhe importante, não há cobranças por parte daquele. É nesse ponto da estória que a violência do protagonista se dissolve em um simples “soco só de pândega” no camarada: aquele que antes queria “dar um soco num polícia”, arranjar um “turumbamba” a todo instante, agora apenas caía na gargalhada com o colega.

A forma utilizada pelo protagonista para se expressar é majoritariamente violenta. Tal violência exacerbada é em parte responsável pelas inúmeras contradições da narrativa, pois ao mesmo tempo que se quer queimar a igreja, lembra-se que fez primeira comunhão quando era criança. Além disso, as repressões que perpassam 35 são simpáticas às repressões dos desejos por parte das instituições, como os bancos que estão dispostos sob o sol e os policiais que mantêm sob vigília os trabalhadores no pátio.

Também, desde o início, Mário faz questão de marcar, a partir da agressividade, a rivalidade e raiva que o protagonista possui com as instâncias de poder: a polícia, os políticos, a igreja, e inclusive com os próprios trabalhadores, o que se manifesta em um sentimento de desconfiança com isso tudo e que advém, segundo o próprio personagem, da experiência (o que é irônico, pois ele possui apenas vinte anos).

Assim, mesmo a mídia, que tem um protagonismo forte na vida dos trabalhadores daquela época, e que também era um veículo de informação capital, não escapa da desconfiança de 35. Ele lê recorrentemente o jornal, que anuncia a união e a revolução, contudo sua leitura cria um conflito de interesses entre a classe e seus desejos:

O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Também aqui se pode ver mais uma vez expressa a divergência entre o indivíduo e sua consciência de pertencimento à classe operária, fora o fato de sua postura com o jornal mostrar ao leitor que 35 não sabe se se alinha com o valor de nação e esforço (comemorando o Dia do Trabalhador), ou com os “revolucionários”, que espalham motins pelo mundo afora e expressam sua indignação com qualquer que seja o ponto.

Participar das comemorações do primeiro de maio ou das revoltas internacionais?

Eis uma resposta que 35 não responde e mal entende o porquê. Ora 35 é reconhecido por si e pelos outros, como quando os colegas vêm até ele perguntar sobre as cerimônias de comemoração, ora ele se reconhece e é reconhecido como a prostituta que passava na rua, que aparenta um sentimento de sem lugar, marginalizado, sem perspectivas.

Toda sua jornada aparece como uma aporia do desejo, pois sua vontade é nebulosa e complexa. Se quer celebrar e ao mesmo tempo não se quer; se quer violentar, mas sempre há uma desculpa para que não faça;  e a garota do apartamento continua como um sonho distante, no qual 35 reconhece que, apesar de todo o seu desejo, “nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez”.

Por fim, é necessário dizer que, apesar de Contos Novos ser publicado postumamente e consequentemente atribuído a uma fase madura do escritor paulista, as ideias que aparecem nessa obra e, de forma mais ilustrativa, no conto Primeiro de Maio, também podem ser encontradas em Pauliceia desvairada, livro de poemas publicado em 1922, em que as ideias de O rebanho estão próximas das expressas no conto (claro que com as devidas variações que dizem respeito ao contexto em que se inserem: República Velha nesse e Estado Novo naquele):

O Rebanho

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
Saírem de mãos dadas do Congresso…
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos salvadores do meu Estado amado!…

Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
Entre o trepidor dos taxis vascolejantes,
A rua Marechal Deodoro…
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos heróis do meu Estado amado!…

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos…
Emigram os futuros noturnos…
E verde, verde, verde!…
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
Mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhe os cornos, descem-lhe as barbinhas…
E vi que os chapéus altos do meu Estado amado,
Com os triângulos de madeira no pescoço,
Nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,
Se punham a pastar
Rente do palácio do senhor presidente…
Oh! minhas alucinações!

Brás Cubas, historiador

Publicado em 1881, Memórias Póstumas de Brás Cubas é considerado o livro que inaugura o Realismo no Brasil. A obra se constitui a partir dos relatos do narrador, Brás Cubas, que se define não como um autor defunto, mas como um defunto autor – ou seja, alguém que escreve depois de morto. Portanto, acerca do Realismo machadiano, pode-se dizer:

“A singularidade de Machado de Assis, por conseguinte, justifica-se muito menos por sua mimesis do que por sua redução em linguagem de aspectos sociais que denunciam quem são os brasileiros e o que eles têm de diferente em relação aos europeus.” (COUTO, 2016)

Resumidamente, o que o defunto autor nos conta são as principais memórias desde a infância até a fase adulta, em meio às suas desventuras amorosas e sociais. O livro, que não segue um enredo linear, se classifica como um romance psicológico, que apresenta elementos do modernismo e, absolutamente, seu próprio “realismo mágico” (MARCÍLIO).

Entretanto, o fato de que a narrativa não se organiza como um relato óbvio e denotativo da realidade (mimesis) não significa que a obra não possua valor enquanto relato histórico oitocentista. Pelo contrário, o livro expõe, em incontáveis ocasiões, a maneira como a sociedade brasileira e europeia se relacionavam, bem como as próprias relações entre os brasileiros do século XIX, as teorias pseudocientíficas que tentavam justificar os abusos e injustiças da época e o pensamento corrente da elite colonial:

“Em síntese, haveria, em Memórias póstumas de Brás Cubas, uma estrutura narrativa correspondente a uma estrutura social, isto é, uma coincidência entre narração autoritária (perceptível na diagramação dos capítulos, na condução das reminiscências etc.) e autoritarismo de classe.” (COUTO, 2016)

Segundo Marcílio, a chegada de Brás Cubas à idade adulta poderia simbolizar uma maturidade social brasileira, pela simultaneidade – supostamente intencional – entre o período da sua juventude e a Independência do Brasil, em 1822. Haveria, de certa forma, um paralelismo entre a história do país e os relatos de Brás Cubas, representante da elite aristocrata e do pensamento escravista:

“Brás Cubas é o protótipo do proprietário de terras e escravos aos moldes do século XIX; é, em outras palavras, o típico sujeito da elite, infiltrado no estamento burocrático e agindo como quem de sua estirpe agiria: imitando tudo o que se fazia na Europa, só que de maneira abrasileirada.” (COUTO, 2016)

Por essa razão, o testemunho de Brás Cubas pode ser examinado através da perspectiva do relato histórico, com valor não apenas literário e artístico, enquanto obra de ficção, mas também como exemplo de personagem-tipo que caracteriza o aristocrata oitocentista de uma realidade não tão distante:

“As memórias de Brás tornam-se, por conseguinte, um testemunho histórico importante sobre as transformações nas ideologias de sustentação do poder no período de crise da sociedade escravista.” (CHALHOUB, 2003)

É importante destacar, em meio a tanto, a relevância da época em que o autor-defunto escreve. Na década de 1870 houve numerosas mudanças que moldariam as relações econômicas e sociais então presentes. A ebulição política fazia dessa época uma caldeira prestes a transbordar, em conflitos cujos interesses eram de naturezas completamente opostas. De um lado, o interesse dos senhores de escravos em manter suas “posses”; de outro, a pressão social e econômica vinda da Europa em abolir a escravidão e mover o mercado consumidor em um rumo liberal.

“Entre a morte do “defunto autor”, em 1869, e o aparecimento do texto, em 1880, houve os acontecimentos políticos e sociais decisivos da década de 1870, os quais conformam, de fato, o conteúdo e o tom do relato de Brás. (…). Havia vários temas palpitantes nos anos 1870 — emancipação dos escravos, mudanças em políticas públicas, emergência de novas idéias políticas e filosóficas, e assim por diante.” (CHALHOUB, 2003)

Nesse sentido, os relatos post mortem de Brás Cubas não são fortuitos. Eles se encontram imersos em uma ideologia de dominação senhorial de cunho conservador, isto é, estão inseridos em um momento histórico do qual ele já não mais participa enquanto vivente, mas como um observador parcial:

“Afinal, Brás Cubas é defunto vivíssimo. Apesar de se descrever como um ‘punhado de pó’ espalhado ‘na eternidade do nada’, ele continua a ter a experiência da história” (CHALHOUB, 2003)

Esse ponto é de especial importância quando consideramos o leitor da época, acostumado aos romances românticos que possuíam um caráter e um objetivo completamente diferentes dos romances realistas – sem, aqui, entrar em méritos de valor. Por esse contexto, é intuitivo compreender a facilidade com que o público acatou (vez e outra vez, repetidamente) o ponto de vista do narrador; assim foi feito com Brás Cubas, bem como com Bentinho e outros mais.

“O leitor brasileiro facilmente adere ao ponto de vista dos narradores machadianos, dos ioiôs elegantes, acabando por ver com naturalidade a relação entre proprietários e agregados.” (COUTO, 2016)

Como se reconhece, Machado de Assis só pôde ser compreendido quando o leitor conseguiu se livrar dessa lógica, dessa ingênua e cega confiança no narrador. Obviamente, o que Machado escreveu em Memórias Póstumas de Brás Cubas não poderia ser jamais tido como uma apologia ao sistema escravista – essa visão demonstraria apenas uma leitura equívoca da obra machadiana, que é fortemente marcada pela ironia. Afinal, no século XIX, quando se passa a história, mas também quando Machado, homem negro, escreve, o próprio sucesso do autor se configurava como uma brilhante ironia:

“A própria condição de Machado como artista consagrado era maculada aos olhos da elite brasileira por ele ser um mulato de origem humilde. A ascensão econômica ou em termos culturais não significava adaptação completa à estrutura hierárquica do Império, mas de uma condição paradoxal. (…). Machado de Assis, um mulato bem sucedido, constituía um paradoxo vivo na sociedade brasileira.” (MISKOLCI, 2006)

Em pleno século XIX, prestes à abolição da escravidão – coisa que, oficialmente, ocorreu em 1888, com a assinatura da Lei Áurea, apenas sete anos após a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas – havia ainda uma visão deturpada que confundia Sociologia e Biologia, gerando entendimentos distorcidos do Darwinismo, que foram, da mesma forma, usados para justificar a escravidão e os massacres nazistas. Por isso, o sucesso social, embora incômodo para as oligarquias, não era considerado uma superação das origens de uma pessoa “baixa”. A hierarquia se justificava em uma suposta superioridade de uns sobre outros a partir, simplesmente, da sua ascendência:

“Percebe-se que a sociologia nascente se confundia com a Biologia em uma forma de compreensão da sociedade, que resultava tão liberal quanto autoritária. (…). Machado escreveu sobre a sociedade brasileira do Segundo Reinado, a qual era marcada pela hierarquia. A origem de um indivíduo era essencial para seu prestígio.” (MISKOLCI, 2006)

Evidentemente, Machado percebia as distorções feitas para acobertar as injustiças, o que denunciou em tom irônico, por exemplo, na teoria do Humanitismo – a teoria de que toda ação humana é válida, porque tem em sua finalidade a sobrevivência da espécie. Em Memórias Póstumas, nem mesmo Brás Cubas se convence por inteiro dessa teoria, que mais uma vez brinca com a ideia do Darwinismo social, escancarando a podridão com que os homens se apropriam da ciência para fins corruptos:

“A dissidência de Machado com relação ao liberalismo autoritário de traços darwinista-sociais indica que sua visão do papel do intelectual na sociedade era a daquele que se mantém fiel aos vencidos na luta pela existência.” (MISKOLCI, 2006)

Por essa razão, Miskolci descreve Machado de Assis como um outsider (literalmente: um estranho, forasteiro, intruso – em tradução livre). Negro, logo, para a época, inferior, e ao mesmo tempo um célebre autor, reconhecido, que ironiza a sociedade aristocrática e debocha das suas pretensões.

“Ainda que, na ficção, Machado brinque com a parcialidade de visão e, sobretudo, com o ideal de objetividade dos escritores de seus dias, não há como ignorar sua valorização da perspectiva do outsider, daquele que já não participa do jogo social nem crê mais em suas regras.” (MISKOLCI, 2006)

 

Essa desilusão com que escreve, bem como seu sarcasmo cáustico, renderam ao autor o rótulo simplista e resumidor de cético, que, embora não deixe de ser parcialmente adequado, não explica e não compreende Machado por completo – coisa que não poderia fazer alcunha alguma. Da sua posição – outsider social, autor reconhecido e paradoxo vivo – a ironia é uma excelente resposta, e o ceticismo uma perspectiva compreensível:

“De certo modo, supera-se o ceticismo quando se aceita, embora com amargura ou contido protesto, o “resto” que nos lega a vida. Talvez resida aí, bem distinto do humour inglês, a ironia machadiana, na qual talvez se oculte a capacidade brasileira de dar-se um jeito, quand-même, aos tropeços da existência.” (REALE, 1982)

A bem da verdade, para o público a quem Machado escrevia, a elite oitocentista, o raciocínio que se dava era tão-só o que se passava com o defunto que escreveu suas Memórias:

“(…) em 1880, seria difícil que Brás adotasse defesa ideológica da instituição da escravidão, mas haveria vontade de sobra, nele e em seus pares, para defender a propriedade escrava existente contra as incursões dos abolicionistas.” (CHALHOUB, 2003)

Mesmo com essa percepção, Machado de Assis foi capaz de manter uma visão sarcástica e amarga, mas que não se afundou em tragédia. Ainda que carregue um inconformismo com a inexorabilidade do destino, para o autor, a vida ainda vale a pena ser vivida:

“O mundo de Machado ‘não conhece a tragédia’, ou melhor, que ‘nele, o trágico dissolve-se no absurdo e o ridículo tem gosto amargo’.” (HOLANDA apud REALE, 1982)

Com sua capacidade ímpar de expor e desmoralizar o conservadorismo social e a calhordagem da aristocracia brasileira, Machado ainda conseguiu fazer que permanecesse acesa a vontade pela vida, sem ilusões ou utopias, mas como um imenso parque de diversões:

“Vale a pena viver o drama da existência quando se sabe ser, ao mesmo tempo, coche, cavalo e cocheiro, protagonista e espectador da fria indiferença do destino; quando, em suma, a despeito de saber que a vida não conduz a nada de certo ou positivo, ela vale como drama ou espetáculo.” (REALE, 1982)

Conduzindo a uma conclusão, Memórias Póstumas de Brás Cubas se mostra uma obra de alto valor histórico, em que Machado foi capaz da artimanha de construir uma narrativa em que os valores e as vilezas da sociedade colonial fossem expostos e ridicularizados, sem jamais perder a sua ironia e a sua postura de outsider, provando ser não só um enorme mestre da literatura brasileira, mas um homem que se coloca ao lado da justiça, mesmo que para isso precisasse rejeitar as conveniências sociais de que poderia usufruir. Sua visão, cética, não demonstra uma derrota pela sociedade, mas um desapego pelas imposturas e recalques da vida mundana. Com o justo comentário de Miguel Reale, esse ensaio se conclui:

“De certa forma, Machado de Assis foi um ‘heideggeriano’ avant la lettre, sobretudo pelo desconsolado sentimento de que a cada ser humano toca viver uma vida que ele não escolheu, e cujo começo e fim lhe escapam.” (REALE, 1982)

Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 1ª Ed. São Paulo: MEDIAfashion, 2016.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
COUTO, Elvis. Roberto Schwarz e a crítica social na literatura de Machado de Assis. Revista Florestan Fernandes, UFSCar, Ano 3, N. 5, 2016, p. 151-163. Disponível em <http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/issue/view/8> (Acesso em 21/01/2017)
MARCÍLIO, Fernando. Memórias Póstumas de Brás Cubas <http://educacao.globo.com/literatura/assunto/resumos-de-livros/memorias-postumas-de-bras-cubas.html> (Acesso em 21/01/2017)
MISKOLCI, Richard. Machado de Assis, o outsider estabelecido. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 15, jan/jun 2006, p. 352-377. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/soc/n15/a13v8n15.pdf>. (Acesso em 21/01/2017)
REALE, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis: Antologia Filosófica de Machado de Assis. São Paulo: Pioneira, 1982.


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