Três poemas de Henriqueta Lisboa

Desde que entrei na Faculdade de Letras da UFMG e tomei conhecimento do Acervo de Escritores Mineiros (AEM), criei um caso antigo com alguns dos autores e autoras que estão naquela casa. O espaço, uma mistura de museu, biblioteca, galeria de arte e arquivo, ficava àquele tempo na Biblioteca Central da universidade, sendo aberto para visitações do público em geral. Em um dos passeios que fiz lá, conheci Henriqueta Lisboa.

Melhor dizendo: aprendi seu nome, pois levaria uns anos para entrar em contato com a obra que a escritora produziu. Lembro-me agora de que chamou minha atenção àquela época o fato de ser um dos maiores acervos do AEM: com livros, cartas, objetos, mobília etc., tudo da autora. Também fiquei encantado com o fato de um dos meus professores, Reinaldo Marques, estar então organizando a publicação da obra completa de Henriqueta Lisboa, o que colocava toda aquela pilha de papeis em um formato condensado e mais acessível, que podia levar para casa.

Henriqueta Lisboa. Reprodução Arquivo AEM.

Isso tudo foi em 2016… Mas só agora, ao fim de 2023, adquiri a obra reunida da autora. 

Trata-se de uma box, organizada em três volumes e publicada pela Editora Peirópolis. Tendo saído da esfera do privado para o público, quando o acervo chegou à UFMG, agora, com a organização de Reinaldo Marques e Wander Melo, a obra de Henriqueta faz o caminho contrário e volta, do público para o privado. 

É com a intenção de entrar nessa equação, que não só gravei um vídeo sobre a obra completa de Henriqueta Lisboa, comentando dois de seus textos, como também compartilho aqui no Duras Letras três poemas da autora.

Serenidade

Serenidade. Encantamento.
A alma é um parque sob o luar.
Passa de leve a onda do vento,
fica a ilusão no seu lugar.

Vem feito flor o pensamento,
como quem vem para sonhar.
Gotas de orvalho. Sentimento.
Névoas tenuíssimas no olhar.

Tombam as horas, lento e lento,
como quem não nos quer deixar.
Êxtase. Vésperas. Advento.

Ouve! O silêncio vai falar!
Mas não falou…Foi-se o momento…
E não me canso de esperar”.

Convite

Eu sou amiga dos que sofrem.

Aproxima-te do meu coração, Amado.
Amado, conta-me teus segredos.
Onde nasceu a tristeza que nos teus olhos mora,
que causa tem a palidez que unge teus lábios
e esse tremor que tuas mãos comunicam às minhas?

Por que não vens, à hora confidencial do crepúsculo
sobre o banco de pedra esquecido entre as árvores,
junto à fonte chorosa
e os afagos do vento perfumado de flores,
derramar no meu coração
as palavras reveladoras
que me fariam participar da tua amargura,
do teu desespero,
ou simplesmente do teu cansaço de viver?…

Quando desfalecesse a tua voz em sussurro
e o luar surgisse acariciando o céu em penumbra,
talvez, Amado, talvez sorrisses,
vendo aflorar nos meus olhos noturnos
a lua pequenina da lágrima.

Prisioneira da noite

Eu sou a prisioneira da noite.
A noite envolveu-me nos seus liames, nos seus musgos,
as Pelas atiraram-me poeira nas pestanas,
s dedos do luar partiram-me os fios do pensamento,
os ventos marinhos fecharam-se ao redor de minha cintura.

Quero os caminhos da madrugada e estou presa,
quero fugir aos braços da noite e estou perdida.
Onde fica a distância? Dizei-me, ó Peregrinos,
K e. fica a distância da qual me chegam misteriosos apelos?
Alguém me espera, alguém me esperará para sempre,
porque sou a prisioneira da noite.

A noite me adormenta com suas flautas esflorando veludos de pêssego,
a noite me enerva com suas grandes corolas desmaiadas nos caules,
vejo madressilvas com os pequenos dentes de pérola sorrindo enlaçadas aos troncos fortes,
e o frio da noite é um desejo de faces aconchegadas,
e há tepidez nas grotas verde-negras, tão próximas… 

Oh forças para caminhar! Forças para vencer o inebriamento da noite,
forças para desprender-me da areia que canta sob meus pés como cordas de violino,
forcas para pisar a relva macia e tenra com suas gotas de sereno,
forças para desvencilhar-me dos afagos numerosos do vento!

Na noite não posso ficar como uma rosa pendida 
porque o homem solitário viria tomar-me pela mão
imaginando que sou a que procura amor.

Na noite não ficarei com a túnica esvoaçante e os cabelos em desordem,
porque uma criança poderia pensar que sou a louca sem pouso,
na noite não, porque a velhinha trêmula viria perguntar-me se acaso sou a sua filha desaparecida.

Oh! Quem me ensina os caminhos da madrugada?
Por que não se acendem agora, sim, agora, os candelabros das igrejas?
Por que não se iluminam as casa onde há noivas felizes?
Por que de tantas estrelas no céu ao menos uma não se desprende
para vir pousar no meu ombro como um sinal de esperança?

Tenho um encontro marcado há longo, longo tempo…

Mas não chegarei porque sou a prisioneira da noite.

Três poemas de “Vil Metal”, de Ferreira Gullar

Ferreira Gullar é um poeta famoso, que tem pelo menos duas faces mais consagradas na literatura brasileira: a de poeta engajado – tendo participado fortemente da luta contra a ditadura e pela revolução social no país, com uma vasta lírica política – e a de polêmico, por conta principalmente de sua conversão ao liberalismo e ao conservadorismo, sobretudo a partir dos anos 2000. 

Tentando escapar um pouco dessas duas máscaras, decidimos trazer três poemas de Ferreira Gullar. São textos que fazem parte de uma de suas obras que acabou ficando esquecida nas prateleiras de sebos, mas que demonstra um intenso diálogo do poeta com a tradição surrealista e concretistas, e suas tentativas de encontrar uma linguagem mais pessoal.

Com vocês, três poemas de Vil metal!

Escrito

A prata é um vegetal como a alface.
Primaveril, frutifica em setembro.
É branca, dúctil, dócil (como diz a Lucy)
e, em março, venenosa.

O cobre é um metal que se extrai da flor do fumo.
Tem o azul do açúcar.
É turvo, doce e disfarçado.

O ouro é híbrido — flor e alfabeto.
Osso de mito, quando oiro é teia de abelha.
A precisão do maduro. Dele se fabricam a urina e a velhice.

Frutas

Sobre a mesa no domingo
(o mar atrás)
duas maçãs e oito bananas num prato de louça
São duas manchas vermelhas e uma faixa amarela
com pintas de verde selvagem:
uma fogueira sólida
acesa no centro do dia
O fogo é escuro e não cabe hoje nas frutas:
chamas,
as chamas do que está pronto e alimenta.

Recado

Os dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
a ferrugem substituída ao pólen vivo.
São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perspectiva de febre que mente a morte.
Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo:
meu corpo multiplicado em fachos.
Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
— e obrigo o tempo a ser verdade.

Três poemas de “Educação pela pedra”, de João Cabral de Melo Neto

Há certa convenção de que Educação pela pedra é o livro no qual o poeta João Cabral de Melo Neto levou mais longe sua “engenharia poética”. Livro formado por vinte e quatro poemas com uma simetria que encanta – sendo quatro seções, de seis poemas cada e muitas repetições de forma e de sentido –, o livro lançado em 1966 é considerado um marco divisório para a lírica de Cabral, para a qual elementos que vinham sendo apresentados em obras anteriores ganham uma dimensão diferente e um tanto quanto desafiadoras. Educação pela pedra conta ainda com alguns dos poemas mais emblemáticos e aclamados do autor pernambucano, entre os quais estão o próprio poema homônimo: “Educação pela pedra”, mas também “O sertanejo falando”, “Tecendo a manhã” e “Catar feijão”.

Na publicação de hoje, resolvi trazer outros textos também de altíssima qualidade e que fogem um pouco dessa “santíssima quaderna” que está presente no livro de 1966: “Duas das festas da morte”, “O urubu mobilizado” e “A fumaça no Sertão”. Os três fazem parte da primeira seção do livro de Cabral – intitulada Nordeste A – e versam sobre alguns dos temas mais caros ao escritor: a morte e a vida sertaneja, já canonizada em sua lírica, pelo menos desde Morte e vida Severina.

No mais, espero que vocês aproveitem a leitura!

Duas das festas da morte

Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua,
ora seu próprio vivo, em dia de posse.

Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique,
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e, aliás, com uma boneca de verdade.

O urubu mobilizado

Durante as secas do Sertão, o urubu,
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.

Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.

A fumaça no Sertão

Onde tampouco a fumaça encorpa muito;
onde nem pode o barroco mil folheiro
da mangueira matriarca, corpopulenta,
de que na Mata a fumaça finge o jeito.
Nem o barroco, mais torto mas rasteiro,
de quando a fumaça se faz em cajueiro.

Onde também a fumaça encorpa pouco;
onde nem pode encopar-se de tão rala,
tanto quanto o ar ralo por que arvora
o fio da árvore que pode, desfiapada.
Onde porém, porque não pode o barroco,
ela pode empinar-se essencial, unicaule;
unicaule, mas bem diversa do coqueiro,
incapaz de ir linheiro ao empinar-se;
unicaule mais bem de palmeira a prumo,
de uma palmeira coluna, sem folhagem.

Amarrados pela pátria: três belos poemas em português

Eu estava perdido entre as imagens e textos do Instagram, quando parei para ler o fragmento de uma canção, recortada e postada por um amigo (e também autor aqui no blog): o pesquisador Otávio Moraes, grande leitor e escritor exemplar de nossas belas letras. A foto dele era a reprodução de um trecho de “Língua”, famigerada música de Caetano Veloso, que deixo aqui, para servir de ruído de fundo às palavras suscitadas pela publicação de Otávio.

A proposta principal deste post é apresentar três poemas amarrados pelo signo da pátria: tema tão delicado a nós que vivemos essa lenta catástrofe do mundo contemporâneo – o mundo dos embargos e das diásporas, o mundo que definha cada dia um pouco mais, nas mãos de presidentes, facções e bancos. Mas antes de passar aos poemas propriamente escritos, gostaria de fazer uma breve contação (entre ficção e fato), para dar tempo não só de terminar a reprodução da canção, como também para contextualizar meu encontro com os versos que vou colocar adiante.

Pois bem, começo destacando que – à parte o relato pessoal de Otávio, que serve de legenda à foto postada em seu perfil – o trecho emprestado de Caetano é o seguinte:

E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua

O que me fisgou foram justamente os últimos versos: “E deixe os Portugais morrerem à míngua / Minha pátria é minha língua”, que, martelando em minha memória, fizeram de mim um inseto preso àquela teia de informações que a aranha da vida acabou tecendo, depois de tanto tempo aqui dentro da cabeça vazia. De repente, eu estava ali, diante dessa aranha, que amarrava outro verso àqueles últimos que li:

A pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações

E lá se foi uma manhã inteira, mastigando o tal verso, tentando adivinhar a autoria, porque têm horas que leitor é bicho orgulhoso e, contrariando a facilidade da internet, se empoleira na estante no exercício meticuloso de refazer os passos e as palavras que já leu. Sabia que era poeta de minha pátria (escrevia em português, é claro), mas quem podia ser? Perguntei à minha companheira, que também não se lembrava ou conhecia, e, daí, fui aos livros, tentando arrancar os segredos desde as lombadas.

Sempre que folheava e não encontrava nada parecido, eu me sentia exilado daquilo que restava só como algo familiar, mas pouco concreto, e quase cedi à vontade de ligar o computador e googlar aquelas poucas palavras de que me lembrava. Mas, apesar da demora do tomo a tomo, quando finalmente recuperei a possível origem daquele verso, o que encontrei foi uma surpresa feliz. Eu estava enganado: não se tratava apenas de um poema de qualquer brasileiro, na verdade, o verso se abriu em três joias raras de nossa seara lusófona, misturadas e picotadas pelo cotidiano e guardadas na forma simples que a memória encontrou: um pouco de “pátria” mais “língua” mais uns verbos mais umas nasais.

Eram três! Mário de Andrade, Rui Knopfli e Jorge de Sena… três nomes, três países, três continentes. Uma língua, uma pátria. O fato de serem poetas de lugares distintos reforçava a ideia que se fazia presente nos seus poemas e versos: o idioma como uma camisa, como a própria identidade (nacional e pessoal). Daí, o que antes era “a pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações” se tornou:

Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der (Mário de Andrade – Brasileiro)
Pátria é só a língua em que me digo (Rui Knopfli – Moçambicano)
A pátria é a língua que escrevo por acaso de gerações (Jorge de Sena – Português)

Cada um deles pediria uma análise atenta e pausada, a que não me proponho nesta publicação. Por isso, faço só uma pequena consideração final, porque, ainda que me sinta compatriota de tão belos versos e poetas, tento não esquecer o lugar que ocupa essa nossa língua, o português (língua de colonizadores), que traz consigo toda uma tradição altissonante ocidental, e muitas vezes bárbara, construída a preço de muitas e muitas “outras pátrias”.

É isso… Contada a anedota e desenovelada essa divagação curta, deixo vocês na companhia dos poemas, dos poetas, da pátria que pode e que quer ser língua.

O poeta come amendoim, de Mário de Andrade

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurús conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta república temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...

Estou com desejos de desastres...
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na cangerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.

Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.
Pátria, de Rui Knopfli

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.
Em Creta, com o Minotauro, de Jorge de Sena 

I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.


II


O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.



III


É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV


Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.


V


Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.

Lirismo enquanto doença

Na nossa cultura, o conhecimento (segundo uma antinomia que Aby Warburg acabou diagnosticando como a “esquizofrenia” do homem ocidental) está cindido entre um pólo estático-inspirado e um pólo racional-consciente, sem que nenhum dos dois consiga reduzir integralmente o outro.

– Giorgio Agamben, em Estâncias  

No poema “Num monumento à aspirina” é possível tomar como mote o movimento metafórico entre o remédio e o sol. A predicação do primeiro caminhando em direção ao segundo, mas a partir de uma polifonia que alça o astro-rei para o papel de consciência formal, superego de uma tradição poética que através da lírica indisciplinou o consciente. Leio, portanto, este poema concentrado nas possibilidades metapoéticas da antilírica cabralina.

Antes, contudo, transcrevo-o abaixo, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo:

Num monumento à aspirina – João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

“O sol de um comprimido de aspirina”, exuberante sol, desvelador das formas, patrono de uma clareza cristalina, capaz de cegar o intuitivo, o dito natural. O sol é o pressuposto de uma operação que assume o criar enquanto oficina, é perigoso manipular máquinas em meio ao breu, lesões, acidentes e imprecisões deformam a forma.

O latejar do crânio, preambulo da aspirina, é anterior ao poema, o remédio demanda a doença e a doença faz par com o remédio. Exatamente pelo aflorar orgânico da imprecisão das formas, suas abstrações pretéritas ao nome, faz-se preciso um fármaco solar: consciência, método.

O poema articula-se enquanto o elogio do remédio “Principalmente porque, sol artificial”.  Elogio, pois, afirma-se contra o crescer vertiginoso da linguagem. O fármaco, como produto do espírito, formaliza a distância radical entre a espontaneidade e o labor. Ode, portanto, ao artifício.  

A antilírica prossegue na defesa do botânico contra o jardineiro, o método em recusa da inspiração, afinal, somente o sol em pílula é “(..) imune às leis da meteorologia”. A técnica poética, o cálculo, é apresentado como gesto ou prática capaz de se não abolir ao menos driblar a contingência romântica imposta pela inspiração.   

Convergem: a aparência e os efeitos 
da lente do comprimido de aspirina: 
o acabamento esmerado desse cristal, 
polido a esmeril e repolido a lima, 
prefigura o clima onde ele faz viver 
e o cartesiano de tudo nesse clima.

“Convergem: a aparência e os efeitos”, a luz, como lâmina, propõe, escolhe, recorta, qual sombra deve dilatar-se pelas páginas abertas da mente-oficina. Exatamente por ser conflito entre o doer e o anestesiar o momento ímpar, aquele de mais perene equilíbrio, é quando o fármaco se encontra como ao meio dia. Luz total, meridiana e penetrante, mas já antevendo o ascender das sombras, o porvir da lua. Nesse sentido, a aspirina surge enquanto emergência, objeto de uso crónico, espécie de reparo ou dique que impede que aquelas ondas fortes do oceano lírico roubem ainda mais areia à praia.

O poeta antilírico sofre como se fosse lírico pois contínua recebendo as ofensivas incoordenadas da linguagem, o sentir que precede a forma.  É como em um haikai de Matsuo Basho, que traduzo com honesta imprecisão a partir do inglês,

Nuvens 
Uma chance 
Desver a lua  
Clouds - 
a chance to dodge 
moonviewing. (Poema disponível aqui)

A perturbação aumenta a nitidez do objeto, nada melhor do que ocultar para acabar revelando. O interessante, no sentido romântico do termo, capacidade de ser gerador de interrogações, é o poema abordar uma ferida crónica, uma dor que passa somente para voltar mais forte e que por isso mesmo mantem o poeta atento, firme, na espera da derrota final contra a linguagem.

De outro lado, porque lente interna, 
de uso interno, por detrás da retina, 
não serve exclusivamente para o olho 
a lente, ou o comprimido de aspirina: 
ela reenfoca, para o corpo inteiro, 
o borroso de ao redor, e o reafina.

O remédio solar funciona tal qual lente, “Ela reenfoca, para o corpo inteiro”, cindindo interioridade e exterioridade em um todo formal, como se almejasse que a palavra fosse capaz de dar unidade ao todo.  “Lente interna”, pois no exercício de desembaraçar “o barroso de ao redor” reforça a capacidade ordenadora da linguagem poética.

A construção desse poema, suas imagens, me fazem pensar que existe algo de utópico, algo além do humanismo romântico que deu forma ao lirismo moderno. Só que no caso de Cabral eu apostaria que mais do que alcançar outro lugar, o utópico assume uma espécie de não geografia, a poesia mais interessada em ser dis-topíca do que lugar: somente nessa estância dissociada de endereço que a criação poderia assumir o rigor demiúrgico almejado pelo poeta.

Claramente: o mais prático dos sóis, 
o sol de um comprimido de aspirina: 
de emprego fácil, portátil e barato, 
compacto de sol na lápide sucinta.

Entre Ramos e Rosa: os narradores do sertanejo em comparação

Guimarães Rosa (1908-1967) e Graciliano Ramos (1892-1953) são autores que dispensam longas apresentações. Cada um, em seu respectivo tempo, propôs um retrato cultural que se afastava dos lugares comuns da primeira metade do século XX, tematizando principalmente a vida sertaneja; entretanto, mesmo agindo de fora das convenções literárias, os dois tiveram contato e assimilaram traços da literatura moderna produzida no Brasil para desenvolver suas respectivas literaturas e alçarem lugar no cânone brasileiro.

Neste texto, vou tentar fugir das leituras que reduzem os autores a apenas suas supostas escolas literárias (neo-realismo, no caso de Graciliano Ramos; e, para alguns, pós-modernismo no caso de Guimarães Rosa). Por isso mesmo estou comparando rapidamente alguns elementos que colocam esses dois autores distintos em sintonia, sem deixar, contudo, de apontar também aqueles traços que os diferenciam. A pedra angular será o signo do Sertão, junto aos personagens que habitam essa região mitológica da literatura de Rosa e de Ramos, e que, por conta não só da experiência geográfica de cada um deles, é tão diferente e ao mesmo tempo tão próximo.

O povo e a terra

Pois bem, começo por uma das semelhanças mais claras: o uso do Sertão como lugar e cultura.

Rosa, assim como Graciliano, coloca os sertanejos e jagunços como peças centrais da maior parte de suas autorias, que costumam acontecer em cenários típicos do sertão. Como exemplo disso, podemos citar obras como Vidas Secas e São Bernardo, ambas de Graciliano Ramos, e Sagarana e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

Mas não se engane por esse detalhe tão breve, porque, por mais que sejam autores do “sertão”, cada um deles dá características bem particulares para seus personagens e para esse cenário! Portanto, o que os aproxima, nesse uso, é que, ao fazerem esse movimento que busca centralizar os sertanejos, os dois autores abrem espaço para que as complexas narrativas dos marginalizados apareçam em primeiro plano, tornando os narradores em coletores dos discursos de indivíduos não citadinos, como Riobaldo e Fabiano e sua família.

De um lado está Graciliano Ramos, com uma linguagem crua, que se dedica a enfatizar as mazelas causadas pela seca, pela fome e pela miséria vividas no sertão nordestino, que lança o indivíduo à procura de soluções extremas, violentas e desesperadas, rumo ao sul. Já no outro lado, está Guimarães Rosa, evidenciando com neologismos e hiper-referências um sertão oceânico, vasto e enigmático, com uma teia enorme de culturas e pequenas narrativas encantadoras.

É importante destacar que esses tratamentos praticamente opostos não são excludentes: eles são simultâneos (colocados em paralelo já pelo uso da mesma palavra: “Sertão”) e estão diretamente ligados à intenção que cada autor dá para o texto e sua recepção no meio literário. Enquanto Ramos faz uma espécie de denúncia e retratação fria de uma realidade social perturbadora, Rosa alça a cultura sertaneja ao divino e ao canônico ocidental, criando versos opostos de uma mesma folha de papel, que funciona de forma complementar, ainda que contraditória.

A língua

Nesse ponto, a linguagem possui lugar de destaque, pois é a principal ferramenta de que dispõem os autores para compor esse cenário recheado de intensões particulares. Assim, Graciliano se ocupa com o uso da norma culta, preocupação talvez relacionada com a frieza mencionada anteriormente: a mensagem que se quer passar em seus textos não pode ser opaca. Desse modo, podemos interpretar esse uso de uma linguagem mais técnica e que respeita a gramaticalidade, como uma maneira de comunicar de forma clara, objetiva, episódios de repressão (Memórias do Cárcere e Angústia), a condição de diferentes sertanejos (Vidas Secas e São Bernardo) ou ainda uma infância nebulosa e distante (Infância), interpretação essa que se soma à leitura que o crítico brasileiro Antônio Cândido faz de Graciliano: uma ficção de tom confessional.

Rosa, pelo contrário, traz consigo uma grande liberdade de composição lexical, com a elaboração de muitos neologismos e a subversão da sintaxe tradicional, que, diferente de comunicar com clareza, aprofunda e expande os signos e as imagens descritas no texto, a exemplo do que acontece em Grande Sertão: Veredas e Primeiras estórias. Além disso, a aproximação intencional com a oralidade acrescenta a suas narrativas uma fluidez, propiciado por lembrar justamente a fala, traço que não é encontrado recorrentemente nas obras de Graciliano, ainda que, também este, faça uma simulação da fala dos sertanejos.

Essa proximidade com a tradição oral é uma das técnicas utilizadas por Rosa para transferir o protagonismo da voz do citadino (o “doutor da cidade”) para o jagunço (Riobaldo) que conta a narrativa para aquele. 

A mente por trás da escrivaninha

Apesar dessa transposição de voz, Rosa, diferente de Graciliano, deixa transparecer sua grande intelectualidade nos diversos textos que escreveu. No caso de Ramos, o escritor só aparecerá com mais clareza nas obras de cunho biográfico (Infância e Memórias do Cárcere) e naquela em que o trabalho de revisão foi menor do que ele gostaria (Angústia).

O autor de Grande Sertão expõe de forma mais aberta a sua proximidade com o cânone ocidental, recheando a narrativa de alusões aos textos fundadores, como a Odisseia e a Ilíada, de Homero, e ao Fausto, de Goete, o que devolve a narrativa um tom intelectualizado. Esse mesmo tom não se quer presente e não se deixa aparecer frequentemente em histórias como Vidas Secas, porque, como vimos, a história precisa ser o mais comunicativa e objetiva possível.

Mais que um Sertão alagado em linguagens distintas ao colocarmos Ramos e Rosa lado a lado, deparamo-nos com um Sertão – de linguagem – alargado, expandido em suas inúmeras diferenças.

Interrompo o texto por aqui, sabendo que poderia trazer ainda mais aproximações e distanciamentos desses dois autores; isso fugiria à proposta deste texto, que é analisá-los de forma concisa, mostrando apenas a ponta de um iceberg sem fim, que flutua no oceano de nossa imensa literatura brasileira.


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Vanguardas europeias e poesia modernista no Brasil em dois poemas

Dentre as inúmeras raízes que a cultura brasileira possui está incluída a europeia. Desde o processo de colonização até as atualizações nos padrões políticos e econômicos contemporâneos, somos atravessador por valores que encontram seu berço no continente europeu. Evidentemente, por ser uma relação tão próxima, todos os campos do saber são afetados, o que explica a similaridade entre os primeiros movimentos modernistas em território nacional com a chamada Era dos Manifestos da Europa.

Nos poemas Tietê (1922), de Mário de Andrade, e Cartão-Postal (1930), de Murilo Mendes. encontramos alguns desses pontos em comum com a arte vanguardista europeia do começo do Século XX:

Tietê

Era uma vez um rio...
Porém os Borba-Gatos dos ultra-nacionais
esperiamente!

Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição…
E as gigânteas!
As embarcações singravam rumo do abismal
Descaminho…

Arroubos… Lutas… Setas… Cantigas… Povoar!…
Ritmos de Brecheret!… E a santificação da morte!…
Foram-se os ouros!… E o hoje das turmalinas!…

– Nadador! vamos partir pela via dum Mato-Grosso?
– Io! Mai!… (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)
Vado a pranzare com la Ruth.

(Mário de Andrade. In: Pauliceia desvairada, 1922)

Cartão-Postal

Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Passam braços e seios com um jeitão
que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.

O sol afunda-se no ocaso
como a cabeça daquela menina sardenta
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.

(Murilo Mendes. In: Poemas, 1930)

Em ambos os poemas, a linguagem nominal prevalece, traço que é facilmente localizado no segundo verso do texto de Andrade e nos três primeiros do de Mendes: sentenças compostas por sintagmas sem verbo aparente. Para elaborá-las os autores lançam mão das formas nominais dos verbos, como o particípio (pensativo) e o gerúndio (corando), e de neologismos e advérbios (esperiamente). Tais recursos se assemelham aos utilizados pelos expressionistas, os quais faziam poemas com protagonismo nominal no sintagmas.

No poema de Mário encontramos também traços comuns ao futurismo: além da desconstrução da sintaxe tradicional, na terceira estrofe deparamo-nos com uma glorificação (ou constatação positiva) da morte (mesmo que de forma irônica), lugar comum da poesia futurista. Há, além disso, a ausência de um ‘sujeito do poema’ psicologizado. Ou seja, a relação de subjetivação do mundo se dá de forma diferente, beirando a forma literária épica. Esse movimento permite a simultaneidade do passado e do presente, atravessados pelo evento histórico (colonialismo) que é narrado.

Vale lembrar que Mário, em seu primeiro livro de poemas pós-22, mantém uma relação de proximidade com o Futurismo de Marinetti, o que foi sugerido em comentário de Oswald de Andrade sobre o livro, mas refutado no Prefácio Interessantíssimo, que abre Pauliceia Desvairada, pelo próprio Mário de Andrade.

No poema de Murilo Mendes as referências às vanguardas europeias também são claras. Além de também apresentar uma linguagem predominantemente nominal, há uma dissolução do sujeito psicológico do poema em um sujeito mundano, o que se soma à preferência por imagens cotidianas e não sublimes. Ainda que ao fim do poema haja uma imagem, digamos, belíssima, ele a emparelha com um gesto qualquer: o da menina que deita a cabeça na almofada. Essa composição e inter-relação entre imagens lembra a técnica de colagem utilizada pelos cubistas.

A crítica feita à tradição romântica – que europeíza e glorifica o colonialismo como forma de aprendizado e de assimilação da ‘cultura legitimamente brasileira’ – é identificada com maior clareza no poema Cartão-postal, pois aparece marcadamente no quarto verso. Contudo, isso não significa que Tietê não critique o colonialismo: o processo de apropriação do léxico ameríndio, começado pelos poetas românticos, foi preservado por Mário, que diferente daqueles não romantiza o processo colonial.

Apesar das similaridades com as correntes europeias, ambos os poetas deixam marcas de uma identidade moderna nacional, como as já citadas referências à tradição romântica brasileira e as marcas de localidade. Outra particularidade que deve ser ressaltada é justamente a diferença que estes poemas possuem entre si, demonstrando que não há de fato um alinhamento total com parâmetros pré-estabelecidos pelos movimentos modernistas da Semana de 1922 ou do chamado Modernismo de Primeira Fase.

Tanto Mário como Murilo transbordaram os parâmetros técnicos do qual se apropriaram para criar uma obra moderna, o que entra em sintonia com um comentário de Nuno Ramos, poeta, pintor etc. contemporâneo, feito na conferência Conversando com Nuno Ramos, do 50º Festival de Inverno da UFMG. Nele o artista diz que as imposições formais das escolas estéticas acabam por se render nas mãos do amadorismo e do improviso dos brasileiros, sempre em busca de uma “brasilidade” a partir desse lugar estranho.

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