Sobre presenças, ausências e a polêmica literária da vez

Nos últimos dias tem se discutido bastante sobre presenças e ausências, na polêmica literária da vez. Para quem não sabe do que estamos falando, recentemente a FUVEST divulgou uma lista com aquelas que serão as autoras lidas no seu vestibular do próximo triênio (2026-2028). Dizemos aqui “autoras” porque a lista é composta só por mulheres (a maioria delas já muito consagrada no meio literário), o que gerou um mal estar entre acadêmicos, que escreveram uma carta contra a fundação que organiza a prova, pedindo a mudança da lista.

Não estamos de acordo com a posição defendida pelos autores da carta, que aliás está assinada por nomes importantíssimos para os estudos de literatura no Brasil. Por isso, como não houve abaixo-assinado de acadêmicos contra as listas anteriores da FUVEST, decidimos deixar alguns pontos em que viemos pensando, para contribuir com o debate:

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Antes de qualquer coisa, é importante dar um google nas listas anteriores… Elas falam por si sós. (Deixamos no carrossel abaixo algumas das mais recentes. Apenas observem.)

Lista de 2016
Lista de 2017
Lista de 2020
Lista de 2021
Lista de 2022


Os dados podem ser sintetizados da seguinte forma: 2016 e 2017 (nenhuma autora); 2020, 2021 e 2022 (entra Helena Morley, em 2018, e em 2021, Cecília Meireles, apenas). Note-se a ausência absoluta de autoras não brancas antes de 2026. As quatro imagens finais são as novas listas (de 2026, 2027, 2028 e 2029).

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Uma lista composta apenas por autoras não é uma lista de literatura precária. Estamos falando de grandes nomes da literatura de língua portuguesa, que com frequência ganham menos destaque na historiografia literária que seus pares do sexo masculino. Não dá para comparar a projeção (de mercado e de estudos) entre a literatura escrita por homens e a escrita por mulheres: segundo a pesquisa de Regina Dalcastagnè, no Brasil, 72,7% dos autores são homens, 93,9% brancos.

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Vale a pena dar uma olhada na composição das listas de 2026 a 2028. São autoras como Rachel de Queiroz, Sophia de Mello Breyner Andersen, Lygia Fagundes Telles, Conceição Evaristo e Clarice Lispector, por exemplo, além de outras de menor projeção. Ou seja: não estamos falando de estreantes, mas de nomes consagrados e de muito prestígio no meio literário.

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Trazer uma lista de autoras, incluindo autoras negras, também significa trazer perspectivas diversas das que vêm sendo trazidas até aqui para o debate. Não é apenas reparação histórica ou representatividade, mas abertura para olhares e pontos de vista distintos no universo da literatura.

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Em tempo, parece preciso dizer: o fato de existir num livro uma grande personagem (Medeia, Antígona, Julieta, Hedda Gabler, Anna Karenina ou Capitu) não faz do autor do livro uma mulher. Por isso, não traz a perspectiva feminina, destacada no tópico anterior. Outra coisa, ser ou não feminista também não resolve, ainda que seja, claro, um ponto positivo. (Ou seja, o apelo a Machado e Capitu não dá conta das ausências no quadro geral).

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De qualquer forma, Machado estará de volta à lista já em 2029, junto com Érico Veríssimo e Luís Bernardo Honwana, além das autoras que ainda estiverem na composição do triênio. E nesse meio tempo, podem estar tranquilos, os grandes nomes do cânone não deixarão de ser lidos nos muitos outros espaços em que continuam sendo regra.

Aliás, serão só três anos das tais listas apenas com autoras. Quantos foram os anos com duas, uma ou nenhuma mulher na lista? A pergunta não é retórica: tentamos calcular e não conseguimos, já que são muitos.

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É sintomático que uma lista só de autoras cause tanto rebuliço, quando a maior parte das disciplinas da graduação em Letras (sem falar na estilística do Ensino Médio) é composta quase exclusivamente por autores homens (à exceção, claro, de Clarice, que aparece como menção honrosa ao gênero, para não dizer que não falamos das flores).

Por que essas listas incomodam tanto?

Sabemos: vão falar da literatura em perigo, da sociologização da literatura, da literatura como documento, da importância irrevogável de determinados nomes (tão seguramente indispensáveis quanto dispensáveis os das autoras até então ausentes), ou da militância errática, da injustiça com os autores (que de nada têm culpa), dos meios inadequados de buscar reparação, da perda do valor da literatura em si mesma, da pouca importância do gênero e da cor de quem escreveu (pois “o que importa é a qualidade”), dos ressentimentos (Harold Bloom mandou lembranças), etc etc etc.

Mas tudo isso está aí há muito tempo: a literatura está “em perigo” desde que nasceu. E tem se mantido pelo desejo de quem a ama. Por isso, repetimos a pergunta: por que tanto incômodo?

Às vezes, é preciso sustentar o mal-estar para continuar caminhando. 

A passos lentos, mas firmes, caminhamos. Avante.

5 livros de teatro imperdíveis: tesouros que não podem faltar em sua estante

Recentemente uma colega da Faculdade de Letras perguntou quais eram os livros que eu julgava os mais importantes para começar a construir uma biblioteca de teatro. Por esse motivo, montei uma pequena lista para ela, da qual destaquei 5 LIVROS DE TEATRO IMPERDÍVEIS que, na minha opinião, todo mundo precisa conhecer e ter em sua biblioteca particular de dramaturgias.

É claro que essas listas são sempre perigosas e incompletas, e costumam dizer mais sobre quem as fez do que propriamente do tema em si (seja teatro ou qualquer outro). Então, queria deixar claro o critério que usei para escolher os livros. Quando fui montar a lista, tentei escolher peças que costumam aparecer em disciplinas e cursos sobre teatro, que foram dados ou frequentados por mim ao longo da minha formação. O resultado obviamente não dá conta da diversidade do universo teatral, mas pode ser uma boa porta de entrada para quem quer começar a ler e estudar teatro.


Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona

Hamlet: o príncipe da Dinamarca

Esperando Godot

Vestido de Noiva

Auto da Compadecida

A lista que enviei para minha colega continha mais do que essas cinco obras que listei acima. Então vou disponibilizá-la aqui, para o caso de alguém se interessar pela lista completa.

Antigos

Modernos e contemporâneos

Brasileiros

Três poemas de “Educação pela pedra”, de João Cabral de Melo Neto

Há certa convenção de que Educação pela pedra é o livro no qual o poeta João Cabral de Melo Neto levou mais longe sua “engenharia poética”. Livro formado por vinte e quatro poemas com uma simetria que encanta – sendo quatro seções, de seis poemas cada e muitas repetições de forma e de sentido –, o livro lançado em 1966 é considerado um marco divisório para a lírica de Cabral, para a qual elementos que vinham sendo apresentados em obras anteriores ganham uma dimensão diferente e um tanto quanto desafiadoras. Educação pela pedra conta ainda com alguns dos poemas mais emblemáticos e aclamados do autor pernambucano, entre os quais estão o próprio poema homônimo: “Educação pela pedra”, mas também “O sertanejo falando”, “Tecendo a manhã” e “Catar feijão”.

Na publicação de hoje, resolvi trazer outros textos também de altíssima qualidade e que fogem um pouco dessa “santíssima quaderna” que está presente no livro de 1966: “Duas das festas da morte”, “O urubu mobilizado” e “A fumaça no Sertão”. Os três fazem parte da primeira seção do livro de Cabral – intitulada Nordeste A – e versam sobre alguns dos temas mais caros ao escritor: a morte e a vida sertaneja, já canonizada em sua lírica, pelo menos desde Morte e vida Severina.

No mais, espero que vocês aproveitem a leitura!

Duas das festas da morte

Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua,
ora seu próprio vivo, em dia de posse.

Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique,
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e, aliás, com uma boneca de verdade.

O urubu mobilizado

Durante as secas do Sertão, o urubu,
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.

Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.

A fumaça no Sertão

Onde tampouco a fumaça encorpa muito;
onde nem pode o barroco mil folheiro
da mangueira matriarca, corpopulenta,
de que na Mata a fumaça finge o jeito.
Nem o barroco, mais torto mas rasteiro,
de quando a fumaça se faz em cajueiro.

Onde também a fumaça encorpa pouco;
onde nem pode encopar-se de tão rala,
tanto quanto o ar ralo por que arvora
o fio da árvore que pode, desfiapada.
Onde porém, porque não pode o barroco,
ela pode empinar-se essencial, unicaule;
unicaule, mas bem diversa do coqueiro,
incapaz de ir linheiro ao empinar-se;
unicaule mais bem de palmeira a prumo,
de uma palmeira coluna, sem folhagem.

Por onde começar a ouvir Clube da Esquina

Por conta do “Top 10 álbuns” lançado pelo Podcast Discoteca Básica, o álbum Clube da Esquina (1972) entra mais uma e outra vez nos debates e ouvidos da população, tendo assumido a primeira posição em uma lista que contou com mais de quatrocentos discos avaliados por especialistas. O resultado dessa avaliação está sendo divulgado aos poucos pelos produtores do podcast citado, mas será disponibilizado, em definitivo, com a publicação do livro Os 500 maiores álbuns brasileiros de todos os tempos.

Mas o que será que faz de Clube da Esquina um disco tão especial? Por onde começar a  a escutá-lo e, mais, quais os motivos de seu destaque entre os melhores álbuns brasileiros já lançados?

Certamente, não há uma resposta única para essas perguntas. Ainda assim, uma breve viagem pela trajetória que leva ao célebre álbum de 1972 pode ajudar a esclarecer um pouco mais sua produção e também sua relevância e impacto enquanto “maior disco brasileiro de todos os tempos”, nas palavras dos produtores do Discoteca Básica.

Foto: Reprodução / O Tempo

O que é o Clube da Esquina?

Essa é uma pergunta importante para começar a entender o projeto musical que envolve o elepê duplo de 72. Isso porque, para alguns especialistas na obra do Clube da Esquina – como Sheila Diniz e Luiz Henrique Garcia – o nome não se refere especificamente a este ou àquele álbum (lembrando aqui também o lançamento de Clube da Esquina 2, de 1978, por Milton Nascimento), mas sim a uma formação cultural ou, ainda, um tipo de movimento musical feito a partir de Minas Gerais.

Nesse sentido, além de grupos e identidades sonoras como a Bossa Nova, a Tropicália, a Canção de Protesto e a Jovem Guarda, por exemplo, todas que ocorrem com certa proximidade e participam de um processo de modernização musical no Brasil, o país teria conhecido também uma inflexão musical encabeçada por um coletivo de músicos e letristas que passaram sua juventude na cidade de Belo Horizonte, e que acabaram ficando conhecidos pelo nome Clube da Esquina, por conta de uma canção e de dois elepês (que os consagraram).

Agora, com toda certeza, se visto enquanto movimento ou formação cultural, esse Clube acaba sendo muito maior do que a produção restrita de um disco, mesmo porque – segundo uma divisão já canônica, proposta por Leandro Garcia – sua trajetória data de 1967 até 1979, isto é, de quando Milton Nascimento lança seu primeiro elepê – Travessia (1967) – até o momento de publicação dos últimos trabalhos coletivos dos artistas envolvidos com o álbum Clube da Esquina, de 1972.

Por onde começar a ouvir?

Vamos voltar à pergunta chave desta publicação: por onde começar a ouvir e a entender Clube da Esquina? Bem, para ela, existem pelo menos duas respostas simples: a primeira delas, um tanto quanto óbvia, é partir diretamente para a escuta do elepê duplo de 1972 – ir direto na raiz. Afinal de contas, ele é certamente uma síntese dos elementos que, aos olhos da crítica e da historiografia musical brasileira, fazem parte não apenas da sonoridade específica do Clube, como também da modernização da canção popular no país. 

Porém, é interessante fazer uma escuta um pouco mais atenta do que de costume, pensando que o Clube da Esquina contém uma multidão e que, como mencionado anteriormente, se estende por cerca de dez anos de produção. Então, coloque o disco para tocar, mas se pergunte também: o que afinal define essa musicalidade?

Aqui vai uma dica, que também é uma redução um tanto quanto brusca: é possível dizer que existem três elementos de destaque na obra “mineira” – a “mineiridade”, a coletividade e a contradição – que são justamente os gatilhos para um experimentalismo de difícil comparação na música popular.

É claro que cada um desses traços poderia ser discutido longamente, mas deixo aqui apenas a sugestão de encontrá-los durante uma audição do disco de 1972. Repare, por exemplo, como “mineiridade” e contradição se manifestam no uso dos muitos signos tradicionais do estado, que são conjugados com elementos chamados “modernos”. Essa mistura entre tradição “regional” e modernização está tanto na musicalidade (com o uso de apitos, coro, órgão e tambores, associados a violão, bateria, guitarra, baixo, teclados eletrônicos e sintetizadores), como também nas letras das canções, que falam de trens, janelas que dão para cemitérios, estradas, ruas de uma capital provinciana etc.

Agora, no que diz respeito à coletividade, é interessante conhecer um pouco mais sobre a obra de cada artista que participou do álbum. Porém, pensando que são dezesseis envolvidos nessa concepção musical, minha sugestão é você restringir sua pesquisa a alguns nomes célebres: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes e o Som Imaginário, que cantam e tocam e dão o tom multifacetado que é encontrado em Clube da Esquina.

Isso nos leva para um caminho um tanto quanto paralelo àquele da primeira resposta, pois aponta para álbuns distintos do elepê duplo de 1972. Esses discos, no entanto, à sua própria maneira dão conta da produção musical mineira belo-horizontina e das tensões entre modernidade e tradição. Trata-se dos álbuns Milton (1970), assinado por Milton Nascimento; Som Imaginário (1970), do grupo de mesmo nome; Lô Borges (1972), do compositor homônimo; e Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelli, Toninho Horta (1973), elepê que recebeu o nome de seus artistas.

Todas essas obras representam uma espécie de gestação musical pela qual os músicos e letristas “mineiros” estavam passando e, nesse ponto, pode-se dizer que são laboratórios. Ainda, repare como são trabalhos muito diferentes se comparados entre si, mas que, quando colocados ao lado de Clube da Esquina, encontram uma estranha sintonia com ele, em canções que funcionam como espelhos ou fragmentos de um mesmo mosaico.

Cada vez mais Clube da Esquina

Como se trata de um álbum duplo, com suas boas 21 canções, é bem comum descobrir novas faces e movimentos a cada vez que voltamos ao Clube, o que fica ainda melhor quando somos orientados a perceber alguns pequenos detalhes e também a colocar o elepê em paralelo com outras produções contemporâneas. Com o tempo, começam a saltar aos ouvidos elementos como os vocais de apoio e a guitarra de Beto Guedes; os momentos épicos e sombrios do piano de Wagner Tiso (em canções como “Cais” e “Um gosto de sol”); o surrealismo das paisagens construídas pelas canções de Lô Borges, que contrastam com o tom político e ritualístico encampado por Milton; etc.

Se realmente é o “melhor disco brasileiro de todos os tempos” é difícil dizer, porque esses juízos são sempre limitados e duvidosos, ainda que embasados em alguma medida. Mas sem dúvida alguma com Clube da Esquina estamos diante de uma obra prima da canção moderna e popular no Brasil, além de ser um dos discos sem os quais minha vida e minhas experiências estéticas estariam mais pobres. Com isso, fica, outra vez, o convite à escuta: escute Clube da Esquina!

https://www.youtube.com/watch?v=WwTf61AZNEo&t=51s
Texto por Gabriel Reis Martins

“306 a 1929”, crônica por G. R. Martins

para Rafael Fava Belúzio

— Timinho difícil esse — o papai dizia, eu sem entender. Mas o diminutivo não era tanto por conta do tamanho do time – jogadores eram onze, do mesmo jeito, de um lado e de outro; ele dizia aquilo assim, porque aquele time tinha saído de lugar nenhum de dentro de Minas: “timinho”, do interior, era isso, ainda que vindo jogar na capital. A coisa do “difícil”, essa era mais fácil, porque, mesmo sendo “timinho”, a província vinha dar trabalho para a metrópole de um jeito que meu pai nem imaginava, e que mesmo eu mesmo ainda nem sei bem como, mas que, vira e mexe, aparece no gramado.

Neste ano, o time do meu pai atropelou província por província, capital por capital, e foi campeão mineiro e, agora, brasileiro, depois de cinquenta anos sem nem cheiro. Mas, para a sua decepção, eu não sou tão dado a futebol, comemorei pouco, me comovi com a derrota dos que eram menores. A verdade é que eu fico num jogo de quero e não quero saber da vitória e da derrota, jogo que me afunda e me levanta. Daí, enquanto ele comemorava a vitória, posso dizer, rebolando sobre as teclas, eu carangolava pela casa afora, mesmo que em festa de campeão seja difícil achar lugar para carangolices.

Se não são um verbo e um substantivo saborosos, uma mistura de calango, carambola e parabólica, que conheci desde há pouco. Nada eles têm a ver com futebol, eu acho; são um empréstimo útil que faço do último livro que li, que talvez nada tenha a ver comigo também, mas que, por ter gostado um tanto, vou pelo menos tentar resenhar de um jeito diferente, e timidamente, por aqui.

Título: 1929
Autor:
Rafael Fava Belúzio
Editora:
Impressões de Minas.
Ano: 2021

— Livrozinho difícil esse — eu dizia, ainda sem entender a frase muito bem. Deve ser porque também nunca fui dado à crônica, que tem lá sua coisa de futebol, e que é gênero menor da literatura. Nem sei muito bem como eu ando lendo… sei só que li as 29 crônicas que fazem 1929, e que fiquei sabendo um pouco sobre a cidade de Carangola, cidade mineira de coisa nenhuma, e que “1929” é o número do apartamento onde mora o autor do livro, na cidade grande, um tanto longe daquela Princesinha da Zona da Mata. Carangola: 50% é melancosmopolitismo. Outros 50%, carongolidade, numa conta que, quem sabe, não dá pra fechar com números bestas. A chance de vitória contra o time da casa é baixa, mas não sou matemático e nem comentarista esportivo, e, mesmo estudando literatura, o que sei eu de crônica pra falar alguma coisa sobre? Só que é um gênero menor da literatura.

— No sentido deleuziano? — perguntou minha noiva.

Não sei… Mas tem qualquer coisa no livro de disputa entre campeão do campeonato contra time que tenta evitar o rebaixamento. E qualquer outra coisa que se desprendeu de Carangola, de dentro do interior, pra ocupar meu gramado. Ontem encontrei um carangolense no pedinte do sinal, e nas crianças do playground no prédio, e outra comprando remédios com o balconista da farmácia… Nenhum deles deve conhecer Carangola, que eu saiba, mas a gente nunca sabe mesmo o que está fazendo com a nossa vida… Eu mesmo, nasci na cidade grande em que, hoje, o autor de 1929 tem morado; e vivi a maior parte da minha vida (até aqui) bem aqui. Isso, na verdade, nem tem importância nenhuma para Carangola, que não me conhece e nem precisa… Que sei eu de você, Carangola? Tanto quanto sei de crônica, que é o que me contou um livro, apenas.

Eu nunca fui até Carangola, mas acho que, algumas muitas vezes, ela veio visitar minha casa. Foi num domingo, bem no fim da tarde, na última cerveja do freezer, que congelou. Veio também numa quarta, à noite, quando li um verso de Drummond, e num outro dia, quando li um de Mário, e até num romance de Lygia Fagundes, num poema que escrevi, e detestei.

— Belo Horizonte, 2021.

Resenha – “A mão esquerda da escuridão”, de Ursula K. Le Guin

Ficção científica, política e de gênero

Não sei bem o que me levou a ler o livro A mão esquerda da escuridão, da escritora Ursula K. Le Guin, a não ser o fato de ter sido indicado por minha companheira, que o tinha lido para uma disciplina a respeito da ficção científica produzida nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ela gostara tanto da história de Le Guin que acabou comprando a versão física da obra, publicada em 2019, pela Editora Aleph, com tradução de Susana L. de Alexandria. Estando na estante e sem outras obras pendentes, acabei encarando a leitura e confesso que fiquei bastante impressionado.

Resumindo

Em A mão esquerda da escuridão nós acompanhamos a missão política empreitada por Genry Ai, um homem terráqueo, enviado para o planeta Inverno (ou Gethen), a fim de convencer seus “países” e habitantes a entrarem como planeta para o Ekumen, uma espécie de ONU interplanetária. O interesse do Ekumen em Gethen está ligado ao fato de os gethenianos serem parte de uma “humanidade maior”, apesar de o povo de Gethen não parecer ter qualquer interesse em tecnologias espaciais ou nas conquistas do progresso tecnológico, o que coloca o Sr. Ai, um alienígena entre eles, imerso em um jogo complexo de desconfiança e incredulidade.

Atravessando essa trama política está a maior dificuldade encontrada pelo terráqueo: o fator sexual e seus impactos na sociedade e na psique getheniana, ponto que é uma das cerejas do bolo confeitado por Le Guin. Os gethenianos, diferente dos “outros humanos”, de outros planetas, são ambissexuais, ou seja, têm a capacidade de desenvolver os dois órgãos genitais, o que se dá em períodos específicos de reprodução e/ou afeto: o kemmer. Genry Ai, homem da Terra, é um pervertido aos olhos de Gethen, por sempre estar “no cio” – ou no kemmer –, e ninguém no planeta confia nele, a não ser Therem Hart rem ir Estraven, um político getheniano, que, justamente por conta de seu interesse em Genry e no Ekumen, perde todo seu prestígio, sendo colocado diante de diversas armadilhas armadas por seus conterrâneos.

Os dois personagens, que são também os narradores da história, enfrentam uma odisseia política e social, criada por suas próprias escolhas, se vendo obrigados a enfrentar o povo e a cultura de um planeta que ainda passa por uma de suas eras glaciais e que ainda parece querer permanecer isolado.

Luz é a mão esquerda da escuridão
e escuridão, a mão direita da luz.
Dois são um, vida e morte, unidas
como amantes no kemmer,
como mãos entrelaçadas,
como o fim e a jornada.

Inteligência ficcional

Farei meu relatório como se contasse uma história, pois quando criança aprendi, em meu planeta natal, que a Verdade é uma questão de imaginação.

Em conversas com minha companheira, desde o começo de minha leitura, tenho elogiado a construção do universo de A mão esquerda da escuridão; quando as calotas polares derreterem e o mar cobrir a terra, ou quando o sol se apagar de vez, e não existir mais nada, eu vou continuar elogiando esta obra e a imaginação de sua autora. Isso porque é de uma inteligência invejável, e Ursula K. Le Guin consegue dar substância não só ao planeta glacial Inverno em si, como também à experiência e ao choque cultural vivido pelas duas personagens centrais. Nós, de fato, temos uma “percepção de alienígena”, ou no mínimo estrangeira, com relação a Estraven e aos códigos gethenianos, e temos a mesma impressão de Genry Ai, quando é Estraven quem está narrando, já que o terráqueo não é um homem da nossa terra e tão semelhante a nós, mas de uma Terra de alguns bons anos no futuro. A autora não deixa escapar nada e se vale de mitos, lendas, descrições geológicas e temporais, quase que completamente inventadas, para deixar o cenário mais real, mais palpável para o leitor. E diferente do que acontece com algumas obras, em que as descrições vão ficando enfadonhas e longas demais, em A mão esquerda da escuridão eu sempre queria avançar e descobrir mais um pouco sobre Gethen e sua gente. Acho que isso acontece porque os elementos descritivos estão espalhados por uma trama de acontecimentos bastante envolvente, que traz prisão, traição, assassinato, peregrinação e tudo mais.

A questão de gênero

Apesar da maestria com relação à construção do kemmer enquanto fator biológico e cultura local de Gethen, Ursula K. Le Guin acaba caindo em uma armadilha que ela mesma quer desconstruir nesta história: pelo fato de os gethenianos “não terem sexo definido”, todos os personagens que aparecem de forma central na trama apresentam traços tipicamente tratados como masculinos. É um livro de homens, contado por um homem terráqueo. Estes homens que convivem com Genry Ai são, no geral, tratados com pronomes e artigos masculinos, e o narrador sempre associa a eles a força, a racionalidade, a postura política e impositiva, a violência etc. Agora, quando, em algumas cenas, o Sr. Ai vê que algum personagem getheniano demonstra sensibilidade, fraqueza ou impaciência, ele imediatamente o associa ao feminino, reforçando alguns estereótipos que já não fazem sentido para nós, contemporâneos.

O livro de Le Guin saiu em 1969, ou seja, um ano depois do Maio de 68, o que significa que os debates acerca do gênero e da sexualidade ainda viviam uma espécie de germe de pensamento. O fato de ser antigo não invalida, é claro, as discussões levantadas em A mão esquerda da escuridão, principalmente no que diz respeito à relação entre masculinidade e feminilidade como parte de um sistema binário (e machista, em muitos casos), no qual se opõem: masculino e feminino, como positivo e negativo, ativo e passivo, racional e passional, destrutivo e construtivo etc.

“Yes i Say Yes i will yes”

Se não convenci com a resenha, tento agora com um pedido formal: – Leia A mão esquerda da escuridão.

Depois de eu ler uma série de e-livros, foi muito bom pegar um volume físico para ler, e melhor ainda foi encontrar esta obra prima da ficção, escrita por Ursula K. Le Guin, que, posso dizer com total certeza, foi um dos melhores livros que li em 2021. Assim, aos que querem ler uma boa ficção, não só científica, como também um bom livro, no geral, deixo essa indicação (essa EXIGÊNCIA, na verdade): – Leia A mão esquerda da escuridão.

Conto – “O segredo do chá”, de G. R. Martins

el visible universo es una ilusión o (más precisamente) un sofisma. los espejos y la paternidad son abominables

uno de esos gnósticos (paráfrase)

Conta a lenda que, para lá do oriente, alguns séculos antes da vinda de Cristo, um grande império, com sede construída à beira de um longo rio, desapareceu.

A história começa com o fato de que os habitantes da região eram apaixonados, hábeis com a espada e também com as palavras, por isso inundando as terras com guerras duras e duradouras. Mas o rei Qin, além dessas outras qualidades, era um regente poderoso e inteligente, que desejava muito unificar as províncias todas em um único e próspero império. Frente ao discurso e maestria militar, a maioria esmagadora não demorava a concordar, porém, na margem oposta do rio, existia o pequeno reino de um rei intragável: o rei Jie, o gorgulho da lavoura.

Apesar das tantas investidas políticas e militares contra ele, desde que começou as campanhas, o rei Qin e seus subordinados só receberam resultados negativos. Esse fato, somado a um mau agouro vindo num sonho, contribuiu para a decisão de interromper o envio de tropas e diplomatas, bem no começo do século III a.C.

Jie, apesar da pequenês frente ao império que Qin construía tijolo por tijolo, sempre declarava vitória, humilhando e diminuindo o adversário através de cartas. Além disso, naufragava muitas naus que flumenavam rio abaixo e que estavam ao alcance de suas flechas.

Ainda que mantivesse distantes seus soldados do lado de lá do rio, Qin monitorava Jie com os mais furtivos serviçais, pensando em como podia esmagar aquela pulga, antes que ela o picasse. Mas, afinal, o que era aquilo, se não uma simples coceira?

O tempo passava e o império de Qin inchava como uma abóbora; de norte a sul, falavam todos a mesma língua. Só o reino de Jie permanecia à parte, mesmo sendo incluído nos mapas, feito um siso prestes a sair. Batalhas intensas aconteciam nas fronteiras com o ocidente, o que fez Qin retirar seus valorosos serviçais das terras do rei Jie. Também, parou de ler as cartas ultrajantes que vinham do reino vizinho. Por isso, não ficou sabendo de imediato que o adversário tinha adquirido uma doença desconhecida: o soluço.

Foi só em um momento de alívio nas batalhas ocidentais, anos depois, que Qin descobriu o mal que tomava conta do corpo de Jie. Contudo, as incessantes pugnas que vinha enfrentando reduziram em muito o número de seus soldados e qualquer tentativa de dominação era arriscada: apertar o inseto com dedos machucados.

Com isso em mente, optou por ganhá-lo na palavra: se ofereceu a descobrir uma cura para o mal do rei vaidoso.

Após inúmeros testes, feitos com pessoas soluçantes e saudáveis, Qin descobriu uma pequena muda, que bastava lançar suas folhas em água quente. Bebido, livrava o corpo do mais profundo dos soluços, além de melhorar os sentidos e dar a sensação de vigor e poder para o ingestor.

Comunicou o outro regente sobre sua descoberta, ansioso por uma negociação, mas a resposta de Jie foi uma injúria ríspida e prepotente. Qin chegou até mesmo a experimentar, ele mesmo, o chá milagroso, pensando isso ajudar no julgamento do rei Jie, mas esse apenas começou a mandar que seus subordinados destruíssem violentamente qualquer embarcação que carregasse a bandeira do império.

Isso durou meses, até que, após uma noite de meditação, o rei Qin decidiu enviar todas as folhas que cultivou como, pelo menos, oferta de paz, para que cessasse o ato de destruir as naus.

Qin, em uma carta extensa, hoje exposta em qualquer museu por lá, jurou pela própria honra que aquele líquido ajudaria com a doença de Jie e recomendou que o pequeno rei tomasse comedidamente o chá e que guardasse bem aquelas folhas, tão finitas quanto qualquer outra.

Jie assistiu satisfeito, enquanto seu cavalo de madeira entrava pelo portão da Troia que construiu para si.
As folhas logo curaram sua doença. Além disso, tamanha era a energia e a astúcia adquiridos com poucos goles, o rei enrijeceu o regime de suas províncias e começou campanhas de expansão contra o império de Qin e contra os reinos para lá do oriente, isso por volta de 261 a.C.

O grande Qin, experiente nas artes da guerra, não se deixou abalar por ameaças e ataques: resistiu fortemente durante os combates que marcaram o século.

Mas não foi suficiente.

Foi destronado pelo rival alguns anos depois do começo das batalhas. Teve tempo de assistir ao rei Jie dominando e logo depois queimando por completo o seu império.

Não deixou de sorrir, quando perdeu a cabeça.

As ruínas e as árvores, depenadas, secas, compunham a paisagem estéril que se estendia infinitamente. Ao redor do Nilo, Jie fez o deserto nascer da guerra e da vaidade; as plantas só renasceriam com o passar dos anos e com inteligência no cultivo.

Só que nada disso interessava a Jie, que viveu sua glória imperial sem deixar herdeiros para o império. Império que não durou mais de vinte anos, pois as línguas se misturavam, o povo crescia e se revoltava e o chá, a cura para sua doença, era uma doce lembrança e ilusão.

Detalhes

O conto “O segredo do chá” integra a coletânea Primeiros e outros contos, editada e publicada por Gabriel Reis Martins, em 2019, e que ganhou uma versão digital para o kindle, em 2020. Na obra, o autor faz uma seleção de quinze histórias curtas autorais, transitando entre um estilo realista, de linguagem objetiva, e outro em que as brincadeiras com a linguagem e com a narrativa são mais frequentes.

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