Conto – “Primeiro de Maio”, de Mário de Andrade

Apresentação

Todo ano, neste dia de 01/05, feriado para uns, dia comum para outros, eu volto ao conto de Mário de Andrade, publicado entre seus Contos Novos. É um texto que me faz rir bastante, não só por sua linguagem e pelas aspirações fantasiosas e esperançosas do operário 35 (personagem central da narrativa), mas principalmente pela atualidade da questão trabalhista no Brasil e de nosso cotidiano teatro das conquistas.

Há algum tempo atrás, cheguei a escrever um pequeno ensaio sobre “Primeiro de Maio”, que está disponível aqui no Duras Letras – deixo, abaixo, o link para acesso. Por isso, não vou tomar muito tempo com esta introdução: o conto fala por si só, assim como o nome de seu autor.

https://durasletras.com/2018/09/04/breve-analise-do-conto-primeiro-de-maio-de-mario-de-andrade/

No mais, feliz Dia dos Trabalhadores!

Primeiro de Maio

Texto de Mário de Andrade

No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar.

Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.

Dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.

Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas ruças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.

O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer… Comunismo? … Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas ruças dum polícia… A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.

Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar… E o 35 comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.

Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.

E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E continuou no passo em férias.

Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!…” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons… Depois vinham as notícias. Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as ruças de algum… polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.

Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino…), é melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos menos… O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais degradantemente desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem siquer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de
bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado
de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quasi trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas
brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua ter-
ra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.

O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de “motim”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.

Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.

Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandando assim na gente… O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.

Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:

— Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no parque ninguém não pára não!

Cabeças-chatas… E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.

O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.

Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro…

Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus “proletários” também.

E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.

Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: “Assim não serve não! As malas não vão não!” Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas “não largavam não”, só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.

O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.

— Deixe que te ajudo, chegou o 35.

E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.

Conto – “Briga das pastoras”, de Mário de Andrade

Chegáramos à sobremesa daquele meu primeiro almoço no engenho e embora eu não tivesse a menor intimidade com ninguém dali, já estava perfeitamente a gosto entre aquela gente nordestinamente boa, impulsivamente generosa, limpa de segundos pensamentos. E eu me pus falando entusiasmado nos estudos que vinha fazendo sobre o folclore daquelas zonas, o que já ouvira e colhera, a beleza daquelas melodias populares, os bailados, e a esperança que punha naquela região que ainda não conhecia. Todos me escutavam muito leais, talvez um pouco longínquos, sem compreender muito bem que uma pessoa desse tanto valor às cantorias do povo. Mas concordando com efusão, se sentindo satisfeitamente envaidecidos daquela riqueza nova de sua terra, a que nunca tinham atentado bem.

Foi quando, estávamos nas vésperas do Natal, da “Festa” como dizem por lá, sem poder supor a possibilidade de uma rata, lhes contei que ainda não vira nenhum pastoril, perguntando se não sabiam da realização de nenhum por ali.

— Tem o da Maria Cuncau, estourou sem malícia o Astrogildo, o filho mais moço, nos seus treze anos simpáticos e
atarracados, de ótimo exemplar “cabeça chata”.

Percebi logo que houvera um desarranjo no ambiente. À sra. dona Ismália, mãe do Astrogildo, e por sinal que linda senhora de corpo antigo, olhara inquieta o filho, e logo disfarçara, me respondendo com firmeza exagerada:

— Esses brinquedos já estão muito sem interesse por aqui… (As duas moças trocavam olhares maliciosos lá no fundo da mesa, e Carlos, a esperança da família, com a liberdade de seus vinte e dois anos, olhava a mãe com um riso sem ruído, espalhado no rosto). Ela porém continuava firme: pastoril fica muito dispendioso, só as famílias é que faziam… antigamente. Hoje não fazem mais.

Percebi tudo. A tal de Maria Cuncau certamente não era “família” e não podia entrar na conversa. Eu mesmo, com a maior naturalidade, fui desviando a prosa, falando em bumba meu boi, cocos, € outros assuntos que me vinham agora apenas um pouco encurtados pela preocupação de disfarçar. Mas o senhor do engenho, com o seu admirável, tão nobre quanto antidiluviano cavanhaque, até ali impassível à indiscrição do menino, se atravessou na minha fala, confirmando que eu deveria estar perfeitamente à vontade no engenho, que os meus estudos haviam naturalmente de me prender noites fora de casa, escutando os “coqueiros”, que eu agisse com toda a liberdade, o Carlos havia de me acompanhar. Tudo sussurrado com lentidão e uma solicitude suavíssima que me comoveu: Mas agora, com exceção do velho, o mal-estar se tornara geral. A alusão era sensível e eu mesmo estava quase estarrecido, se posso me exprimir assim. Por certo que a Maria Cuncau era pessoa de importância naquela família, não podia imaginar o que, mas garantidamente não seria apenas alguma mulher perdida, que causasse desarranjo tamanho naquele ambiente.

Mas foi deslizantemente lógico todos se levantarem pois que o almoço acabara, e eu senti dever uma carícia à sra. dona Ismália, que não podia mais evitar um certo abatimento naquele seu mutismo de olhos baixos. Creio que fui bastante convincente, no tom filial que pus na voz pra lhe elogiar os maravilhosos pitus, porque ela me sorriu, e nasceu entre nós um desejo de acarinhar, bem que senti. Não havia dúvida: Maria Cuncau devia ser uma tara daquela família, e eu me amaldiçoava de ter falado em pastoris. Mas era impossível um carinho entre mim e a dona da casa, apenas conhecidos de três horas; e enquanto o Carlos ia ver se os cavalos estavam prontos para o nosso passeio aos partidos de cana, fiquei dizendo coisas meio ingênuas, meio filiais à sra. dona Ismália, jurando no íntimo que não iria ao Pastoril da Maria Cuncau. E como num momento as duas moças, ajudando a criadinha a tirar a mesa, se acharam ausentes, não resisti mais, beijei a mão da sra. dona Ismália. E fugi para o terraço, lhe facilitando
esconder as duas lágrimas de uma infelicidade que eu não tinha mais direito de imaginar qual.

O senhor do engenho examinava os arreios do meu cavalo. Lhe fiz um aceno de alegria e lá partimos, no arranco dos animais fortes, eu, o Carlos, e mais o Astrogildo num petiço atarracado e alegre que nem ele. A mocidade vence fácil os mal-estares. O Astrogildo estava felicíssimo, no orgulho vitorioso de ensinar o homem do sul, mostrando o que era boi, o que era carnaúba; e das próprias palavras do mano, Carlos tirava assunto pra mais verdadeiros esclarecimentos, Maria Cuncau ficara pra trás, totalmente esquecida.

Foram três dias admiráveis, passeios, noites atravessadas até quasi o “nascer da bela aurora”, como dizia a toada, na conversa e na escuta dos cantadores da zona, até que chegou o dia da Festa. E logo a imagem da Maria Cuncau, cuidadosamente escondida aqueles dias, se impôs violentamente ao meu desejo. Eu tinha que ir ver o Pastoril de Maria Cuncau. O diabo era o Carlos que não me largava, e embora já estivéssemos amigos íntimos e eu sabedor de todas as suas aventuras na zona e farras no Recife, não tinha coragem de tocar no assunto nem meios pra me desvencilhar do rapaz. Nas minhas conversas com os empregados € cantadores bem que me viera uma vontadinha de perguntar quem era essa Maria Cuncau, mas si eu me prometera não ir ao Pastoril da Maria Cuncau! por que perguntar!… Tinha certeza que ela não me interessava mais, até que com a chegada da Festa, ela se impusera como uma necessidade fatal. Bem que me sentia ridículo, mas não podia comigo.

Foi o próprio Carlos quem tocou no assunto. Delineando o nosso programa da noite, com a maior naturalidade deste mundo, me falou que depois do Bumba que viria dançar de-tardinha na frente da casa-grande, daríamos um giro pelas rodas de coco, fazendo hora pra irmos ver o Pastoril da Maria Cuncau. Olhei-o e ele estava simples, como se não houvesse nada. Mas havia. Então falei com minha autoridade de mais velho:

— Olhe, Carlos, eu não desejava ir a esse pastoril. Me sinto muito grato à sua gente que está me tratando como não se trata um filho, e faço questão de não desagradar a… a ninguém.

Ele fez um gesto rápido de impaciência:

— Não há nada! isso é bobagem de mamãe!… Maria Cuncau parece que… Depois ninguém precisa saber de nada, nós voltamos todos os dias tarde da noite, não voltamos?… Vamos só ver, quem sabe si lhe interessa… Maria Cuncau é uma velha já, mora atrás da “rua”, num mocambo, coitada…

E veio a noitinha com todas as suas maravilhas do Nordeste. Era uma noite imensa, muito seca e morna, lenta, com aquele vaguíssimo ar de tristeza das noites nordestinas. O bumba meu boi, propositalmente encurtado pra não prender muito a gente da casa-grande, terminara lá pela meia-noite. A sra. dona Ismália se recolhera mais as filhas e a raiva do Astrogildo que teimava em nos acompanhar. O dono da casa desde muito que dormia, indiferente àquelas troças em que, como lhe escapara numa conversa, se divertira bem na mocidade, Retirado o grande lampião do
terraço, estávamos sós, Carlos e eu. E a imensa noite. O pessoal do engenho se espalhara. Os ruídos musicais se alastravam no ar imóvel. Já desaparecera nalguma volta longe do caminho, o rancho do Boi que demandava a rua, onde ia dançar de novo o seu bailado até o raiar do dia. Um “chama” roncava longíssimo, talvez nalgum engenho vizinho, nalguma roda de coco. As luzes se acendiam espalhadas como estrelas, eram os moradores chegando em suas casas pobres. E de repente, lá para os lados do açude onde o massapê jazia enterrado mais de dois metros no areião, desde a última cheia, depois de uns ritmos debulhados de ganzá, uma voz quente e aberta, subira noite em fora, iniciando um coco bom de sapatear.

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

Era sublime de grandeza. A melancolia da toada, viva e ardente, mas guardando um significado íntimo, misterioso, quasi trágico de desolação, casava bem com a meiga tristeza da noite.

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

E as risadas feriam o ar, os gritos, o coco pegara logo animadíssimo, aquela gente dançava, sapateava na dança, alegríssima, 0 coro ganhava amplidão no entusiasmo, as estrelas rutilavam quasi sonoras, o ar morno era quasi sensual, tecido de cheiros profundos. E era estranhíssimo. Tudo cantava, Cristo nascia em Belém, se namorava, se ria, se dançava, a noite boa, o tempo farto, o ano bom de inverno, vibrava uma alegria enorme, uma alegria sonora, mas em que havia um quê de intensamente triste. E um solista espevitado, com uma voz lancinante, própria de aboiador, fuzilava sozinho, dilacerando o coro, vencendo os ares, dominando a noite:

Vô m'imbora, vô m'imbora
Pá Paraíba do Norte!...

E o coro, em sua humanidade mais serena:

Olê, rosêra, 
Murchaste a rosa!...

Nós caminhávamos em silêncio, buscando o Pastoril e Maria Cuncau. Minha decisão já se tornara muito firme pra que eu sentisse qualquer espécie de remorso, havia de ver a Maria Cuncau. E assim liberto, eu me entregava apenas, com delícias inesquecíveis, ao mistério, à grandeza, às contradições insolúveis daquela noite imensa, ao mesmo tempo alegre e triste, era sublime, E o próprio Carlos, mais acostumado e bem mais insensível, estava calado. Marchávamos rápido, entregues ao fascínio daquela noite da Festa.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais degradantemente desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem siquer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de
bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado
de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quasi trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas
brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua terra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Maria Cuncau, assim que nos vira, empalidecera muito sob o vermelho das faces, obtido com tinta de papel de seda. Mas logo se recobrara, erguera o rosto, sacudindo pra trás a violenta cabeleira agrisalhada, ainda voluptuosa, e nos olhava com desafio. Rebolava agora com mais cuidado, fazendo um esforço infinito pra desencantar do fundo da memória, as graças antigas que a tinham celebrizado em moça. E era sórdido. Não se podia siquer supor a sua beleza falada, não ficara nada. A não ser aquele vestido de lantejoulas rutilantes, que pendiam, num ruidinho escarninho, enquanto Maria Cuncau malhava os ossos curtos, frágil, baixinha, olhos rubescentes de alcoolizada, naquele reboleio de pastora.

Quando dei tento de mim, é que a coisa acabara, com uns fracos aplausos em torno e as risadas altas dos homens. As pastoras se dispersavam na sala, algumas vinham se esconder no sereno, passando por nós de olhos baixos, encabuladíssimas. Carlos, bastante inconsciente, examinava sempre os manejos da Diana moça, na sua feroz animalidade de rapaz. Mas eu lhe tocava já no braço, queria partir, me livrar daquele ambiente sem nenhum interesse folelórico, e que me repugnava pela sordidez. Maria Cuncau, que fingindo conversar com as mulheres da sala,
enxugava muito a cara, nos olhando de soslaio, adivinhou minha intenção. Se dirigiu francamente pra nós e convidou, meio apressada mas sem nenhuma timidez, com decisão:

— Os senhores não querem adorar a lapinha!…

Decerto era nisso que todas aquelas mulheres pensavam porque num segundo vi todas as pastoras me olhando na sala e as que estavam de fora se chegando à janelinha pra me examinar, Percebi logo a finalidade do convite, quando cheguei junto da lapinha, enquanto o Carlos se atrasava um pouco, tirando um naco desajeitado de conversa com a Diana. Os outros assistentes também desfilavam junto ao presépio, parece que rezavam alguma coisa, e alguns deixavam escorregar qualquer níquel num pires colocado bem na frente do Menino-Deus. Fingi contemplar
com muito respeito a lapinha, mas na verdade estava discutindo dentro comigo quanto daria. Já não fora pouco o que o rancho do Boi me levara, e aliás as pessoas da casa-grande estavam sempre me censurando pelo muito que eu dava aos meus cantadores. Puxei a carteira, decidido a deixar uns vinte milréis no pires. Seria uma fortuna entre aqueles níqueis magriços em que dominava uma única rodela mais volumosa de cruzado. Porém, se ansiava por sair dali, estava também muito comovido com toda aquela miséria, miséria de tudo. A Maria Cuncau então me dava
uma piedade tão pesada, que já me seria difícil especificar bem si era comiseração si era horror.

Sinto é maltratar os meus leitores. Este conto que no princípio parecia preparar algum drama forte, e já está se tornando apenas uma esperança de dramazinho miserável, vai acabar em plena mesquinharia. Quando puxei a carteira, decidido a dar vinte mil-réis, a piedade roncou forte, tirei com decisão a única nota de cinquenta que me restava da noite e pus no pires. Todos viram muito bem que era uma nota, e eu já me voltava pra partir, encontrando o olho de censura que o Carlos me enviava. O mal foi um mulatinho esperto, não sei si sabia ler ou conhecia dinheiro, que estava junto de mim, me devorando os gestos, extasiado. Não pôde se conter, casquinou uma risada estrídula de comoção assombrada, e apenas conseguiu ainda agarrar com a mão fechada a enorme palavra-feia que esteve pra soltar, gritou:

— Pó… cincoentão!

Foi um silêncio de morte. Eu estava desapontadíssimo, ninguém me via, ninguém se movia, as pastoras todas estateladas, com os olhos fixos no pires. Carlos continuava parado, esquecido. da Diana que também não o via mais, olhava o pires. E ele sacudia de leve o rosto para os lados, me censurando.

— Vamos, Carlos.

E nos dirigimos para a porta da saída. Mas nisto, aquela pastora do cordão encarnado que estava mais próxima da lapinha, num pincho agílimo (devia estar inteiramente desvairada pois lhe seria impossível fugir), abrindo caminho no círculo apertado, alcançou o pires, agarrou a nota, enquanto as outras moedinhas rolavam no chão de terra socada. Mas Maria Cuncau fora tão rápida como a outra, encontrara de peito com a fugitiva, foi um baque surdo, e a luta muda, odienta, cheia de guinchos entre as duas pastoras enfurecidas. Nós nos voltáramos aturdidos com o caso e a multidão devorava a briga das pastoras, também pasma, incapaz de socorrer ninguém. E aqueles braços se batiam,
se agarravam, se entrelaçavam numa briga chué, entre bufidos selvagens, até que Maria Cuncau, mordendo de fazer sangue o punho da outra, lhe agarrou a nota, enfiou-a fundo no seio, por baixo da faixa azul apertada. A outra agora chorava, entre borbotões de insultos horríveis.

— É da lapinha! que Maria Cuncau grunhia, se encostando na mesa, esfalfada, É da lapinha!

Os homens já se riam outra vez com caçoadas ofensivas, e as pastoras se ajuntando, faziam dois grupos em torno das briguentas, consolando, buscando consertar as coisas.

Partimos apressados, sem nenhuma vontade ainda de rir nem conversar, descendo por entre as árvores, com dificuldade, desacostumados à escureza da noite. Já estávamos quasi no fim da descida, quando um ruído arrastado de animal em disparada, cresceu por trás de nós. Nem bem eu me voltara que duas mãos frias me agarraram pela mão, pelo braço, me puxavam, era Maria Cuncau. Baixinha, magríssima, naquele esbulho grotesco de luz das lantejoulas, cabeça que era um ninho de cabelos desgrenhados…

— Moço! ôh moço!… me deixa alguma nota pra mim também, aquela é da lapinha!… eu preciso mais! aquela é da lapinha, moço!

.Aí, Carlos perdeu a paciência, Agarrou Maria Cuncau com aspereza, maltratando com vontade, procurando me libertar dela:

— Deixe de ser sem-vergonha, Maria Cuncau! Vocês repartem o dinheiro, que história é essa de dinheiro pra lapinha! largue o homem, Maria Cuncau!

— Moço! me dá uma nota pra… me largue, seu Carlos!

E agora se estabelecia uma verdadeira luta entre ela e o Carlos fortíssimo, que facilmente me desvencilhara dela.

— Carlos, não maltrate essa coitada…

— Coitada não! me largue, seu Carlos, eu mordo!…

— Vá embora, Maria Cuncau!

— Olha, esta é pra…

— Não! não dê mais não! faço questão que…

Porém Maria Cuncau já arrancara o dinheiro da minha mão e num salto pra trás se distanciara de nós, olhando a nota. Teve um risinho de desprezo:

— Vôte! só mais vinte!…

E então se aprumou com orgulho, enquanto alisava de novo no corpo o vestido desalinhado. Olhou bem fria o meu companheiro:

— Dê lembrança a seu pai.

Desatou a correr para o mocambo.

Amarrados pela pátria: três belos poemas em português

Eu estava perdido entre as imagens e textos do Instagram, quando parei para ler o fragmento de uma canção, recortada e postada por um amigo (e também autor aqui no blog): o pesquisador Otávio Moraes, grande leitor e escritor exemplar de nossas belas letras. A foto dele era a reprodução de um trecho de “Língua”, famigerada música de Caetano Veloso, que deixo aqui, para servir de ruído de fundo às palavras suscitadas pela publicação de Otávio.

A proposta principal deste post é apresentar três poemas amarrados pelo signo da pátria: tema tão delicado a nós que vivemos essa lenta catástrofe do mundo contemporâneo – o mundo dos embargos e das diásporas, o mundo que definha cada dia um pouco mais, nas mãos de presidentes, facções e bancos. Mas antes de passar aos poemas propriamente escritos, gostaria de fazer uma breve contação (entre ficção e fato), para dar tempo não só de terminar a reprodução da canção, como também para contextualizar meu encontro com os versos que vou colocar adiante.

Pois bem, começo destacando que – à parte o relato pessoal de Otávio, que serve de legenda à foto postada em seu perfil – o trecho emprestado de Caetano é o seguinte:

E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua

O que me fisgou foram justamente os últimos versos: “E deixe os Portugais morrerem à míngua / Minha pátria é minha língua”, que, martelando em minha memória, fizeram de mim um inseto preso àquela teia de informações que a aranha da vida acabou tecendo, depois de tanto tempo aqui dentro da cabeça vazia. De repente, eu estava ali, diante dessa aranha, que amarrava outro verso àqueles últimos que li:

A pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações

E lá se foi uma manhã inteira, mastigando o tal verso, tentando adivinhar a autoria, porque têm horas que leitor é bicho orgulhoso e, contrariando a facilidade da internet, se empoleira na estante no exercício meticuloso de refazer os passos e as palavras que já leu. Sabia que era poeta de minha pátria (escrevia em português, é claro), mas quem podia ser? Perguntei à minha companheira, que também não se lembrava ou conhecia, e, daí, fui aos livros, tentando arrancar os segredos desde as lombadas.

Sempre que folheava e não encontrava nada parecido, eu me sentia exilado daquilo que restava só como algo familiar, mas pouco concreto, e quase cedi à vontade de ligar o computador e googlar aquelas poucas palavras de que me lembrava. Mas, apesar da demora do tomo a tomo, quando finalmente recuperei a possível origem daquele verso, o que encontrei foi uma surpresa feliz. Eu estava enganado: não se tratava apenas de um poema de qualquer brasileiro, na verdade, o verso se abriu em três joias raras de nossa seara lusófona, misturadas e picotadas pelo cotidiano e guardadas na forma simples que a memória encontrou: um pouco de “pátria” mais “língua” mais uns verbos mais umas nasais.

Eram três! Mário de Andrade, Rui Knopfli e Jorge de Sena… três nomes, três países, três continentes. Uma língua, uma pátria. O fato de serem poetas de lugares distintos reforçava a ideia que se fazia presente nos seus poemas e versos: o idioma como uma camisa, como a própria identidade (nacional e pessoal). Daí, o que antes era “a pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações” se tornou:

Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der (Mário de Andrade – Brasileiro)
Pátria é só a língua em que me digo (Rui Knopfli – Moçambicano)
A pátria é a língua que escrevo por acaso de gerações (Jorge de Sena – Português)

Cada um deles pediria uma análise atenta e pausada, a que não me proponho nesta publicação. Por isso, faço só uma pequena consideração final, porque, ainda que me sinta compatriota de tão belos versos e poetas, tento não esquecer o lugar que ocupa essa nossa língua, o português (língua de colonizadores), que traz consigo toda uma tradição altissonante ocidental, e muitas vezes bárbara, construída a preço de muitas e muitas “outras pátrias”.

É isso… Contada a anedota e desenovelada essa divagação curta, deixo vocês na companhia dos poemas, dos poetas, da pátria que pode e que quer ser língua.

O poeta come amendoim, de Mário de Andrade

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurús conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta república temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...

Estou com desejos de desastres...
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na cangerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.

Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.
Pátria, de Rui Knopfli

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.
Em Creta, com o Minotauro, de Jorge de Sena 

I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.


II


O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.



III


É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV


Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.


V


Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.

Vanguardas europeias e poesia modernista no Brasil em dois poemas

Dentre as inúmeras raízes que a cultura brasileira possui está incluída a europeia. Desde o processo de colonização até as atualizações nos padrões políticos e econômicos contemporâneos, somos atravessador por valores que encontram seu berço no continente europeu. Evidentemente, por ser uma relação tão próxima, todos os campos do saber são afetados, o que explica a similaridade entre os primeiros movimentos modernistas em território nacional com a chamada Era dos Manifestos da Europa.

Nos poemas Tietê (1922), de Mário de Andrade, e Cartão-Postal (1930), de Murilo Mendes. encontramos alguns desses pontos em comum com a arte vanguardista europeia do começo do Século XX:

Tietê

Era uma vez um rio...
Porém os Borba-Gatos dos ultra-nacionais
esperiamente!

Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição…
E as gigânteas!
As embarcações singravam rumo do abismal
Descaminho…

Arroubos… Lutas… Setas… Cantigas… Povoar!…
Ritmos de Brecheret!… E a santificação da morte!…
Foram-se os ouros!… E o hoje das turmalinas!…

– Nadador! vamos partir pela via dum Mato-Grosso?
– Io! Mai!… (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)
Vado a pranzare com la Ruth.

(Mário de Andrade. In: Pauliceia desvairada, 1922)

Cartão-Postal

Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Passam braços e seios com um jeitão
que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.

O sol afunda-se no ocaso
como a cabeça daquela menina sardenta
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.

(Murilo Mendes. In: Poemas, 1930)

Em ambos os poemas, a linguagem nominal prevalece, traço que é facilmente localizado no segundo verso do texto de Andrade e nos três primeiros do de Mendes: sentenças compostas por sintagmas sem verbo aparente. Para elaborá-las os autores lançam mão das formas nominais dos verbos, como o particípio (pensativo) e o gerúndio (corando), e de neologismos e advérbios (esperiamente). Tais recursos se assemelham aos utilizados pelos expressionistas, os quais faziam poemas com protagonismo nominal no sintagmas.

No poema de Mário encontramos também traços comuns ao futurismo: além da desconstrução da sintaxe tradicional, na terceira estrofe deparamo-nos com uma glorificação (ou constatação positiva) da morte (mesmo que de forma irônica), lugar comum da poesia futurista. Há, além disso, a ausência de um ‘sujeito do poema’ psicologizado. Ou seja, a relação de subjetivação do mundo se dá de forma diferente, beirando a forma literária épica. Esse movimento permite a simultaneidade do passado e do presente, atravessados pelo evento histórico (colonialismo) que é narrado.

Vale lembrar que Mário, em seu primeiro livro de poemas pós-22, mantém uma relação de proximidade com o Futurismo de Marinetti, o que foi sugerido em comentário de Oswald de Andrade sobre o livro, mas refutado no Prefácio Interessantíssimo, que abre Pauliceia Desvairada, pelo próprio Mário de Andrade.

No poema de Murilo Mendes as referências às vanguardas europeias também são claras. Além de também apresentar uma linguagem predominantemente nominal, há uma dissolução do sujeito psicológico do poema em um sujeito mundano, o que se soma à preferência por imagens cotidianas e não sublimes. Ainda que ao fim do poema haja uma imagem, digamos, belíssima, ele a emparelha com um gesto qualquer: o da menina que deita a cabeça na almofada. Essa composição e inter-relação entre imagens lembra a técnica de colagem utilizada pelos cubistas.

A crítica feita à tradição romântica – que europeíza e glorifica o colonialismo como forma de aprendizado e de assimilação da ‘cultura legitimamente brasileira’ – é identificada com maior clareza no poema Cartão-postal, pois aparece marcadamente no quarto verso. Contudo, isso não significa que Tietê não critique o colonialismo: o processo de apropriação do léxico ameríndio, começado pelos poetas românticos, foi preservado por Mário, que diferente daqueles não romantiza o processo colonial.

Apesar das similaridades com as correntes europeias, ambos os poetas deixam marcas de uma identidade moderna nacional, como as já citadas referências à tradição romântica brasileira e as marcas de localidade. Outra particularidade que deve ser ressaltada é justamente a diferença que estes poemas possuem entre si, demonstrando que não há de fato um alinhamento total com parâmetros pré-estabelecidos pelos movimentos modernistas da Semana de 1922 ou do chamado Modernismo de Primeira Fase.

Tanto Mário como Murilo transbordaram os parâmetros técnicos do qual se apropriaram para criar uma obra moderna, o que entra em sintonia com um comentário de Nuno Ramos, poeta, pintor etc. contemporâneo, feito na conferência Conversando com Nuno Ramos, do 50º Festival de Inverno da UFMG. Nele o artista diz que as imposições formais das escolas estéticas acabam por se render nas mãos do amadorismo e do improviso dos brasileiros, sempre em busca de uma “brasilidade” a partir desse lugar estranho.

Repensando a sociedade com “Primeiro de Maio”, um conto de Mário de Andrade

O nome de Mário de Andrade (1893-1945) é tão corriqueiro e importante para a historiografia literária brasileira que dispensa apresentações longas. Autor do célebre Macunaíma e um dos protagonistas da Semana de Arte Moderna, de 1922, Mário pode muito bem ser considerado uma das “antenas da raça” – expressão utilizada por Ezra Pound para descrever os grandes literatos – que perambulava pelas ruas de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.

Antenado não só ao cotidiano da grande cidade moderna, Mário também se mostrava um leitor assíduo das teorias e correntes filosóficas que tiveram seu germe no século XIX, destilando em suas obras conteúdos que se assemelham às ideias de inconsciente, de Freud, de classe, a partir do marxismo, e de linguagem, no sentido saussuriano. A coletânea Contos novos, publicada postumamente, em 1947, organizada por amigos do escritor, condensa muitos desses traços significativos que Mário assimilou ao longo de seus anos de pesquisa estética. A oralidade e a linguagem cinematográfica estão entre os aspectos estilísticos de escrita que o autor esmerava, diretamente relacionados às vanguardas europeias, principalmente o Futurismo, de Marinetti (1876-1944). Além disso, as narrativas estão estritamente relacionadas aos acontecimentos vivenciados pelos brasileiros daquele tempo. Qualquer um desses elementos pode ser identificado em um dos nove contos que compõem a obra, como veremos a seguir.

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Um bom exemplo desse olhar sobre a história e sobre as grandes revoluções filosóficas aparece no conto Primeiro de Maio, terceira estória do livro. Nesse breve escrito, o narrador acompanha a trajetória e pensamentos de 35, um trabalhador da Estação da Luz, que queria celebrar e havia de celebrar o Dia do Trabalhador. Primeiramente, cabe dizer sobre esse conto que é aliado aos traços estilísticos próprios de Mário de Andrade (como o uso de “si“, ao invés de “se” e “pra“, ao invés de “para”), que há nessa narrativa um alinhamento entre um corpo social, uma ideia de trabalhador como classe, e um corpo psíquico, os desejos individuais do protagonista.

Mas, de fato, os primeiros traços que chamam a atenção no conto são os nomes das personagens, que, obviamente e não por acaso, se resumem a números (35, 22 e 486), e o tempo diegético da narrativa, que representam uma jornada de trabalho convencional, começando não bem às seis da manhã e terminando pouco depois das dezessete.

(19)35 – Ano da proclamação do Dia do Trabalhador;
(19)22 – Ano de fundação do Partido Comunista Brasileiro;
D. lei nº 486, de 10 de junho de 1938: institucionaliza o feriado de Primeiro de Maio.

Já no significado desses nomes encontramos uma ideia que se fazia presente naquele tempo e que ainda hoje possui repercussões: o alinhamento político-ideológico entre o trabalhador e o movimento comunista, que encontra seu ápice ao fim da narrativa, como uma esperança de mudança frente a todos os acontecimentos daquele dia de primeiro de maio, frustrado: 35 ajuda 22, também um trabalhador da Estação da Luz, a carregar as malas e, detalhe importante, não há cobranças por parte daquele. É nesse ponto da estória que a violência do protagonista se dissolve em um simples “soco só de pândega” no camarada: aquele que antes queria “dar um soco num polícia”, arranjar um “turumbamba” a todo instante, agora apenas caía na gargalhada com o colega.

A forma utilizada pelo protagonista para se expressar é majoritariamente violenta. Tal violência exacerbada é em parte responsável pelas inúmeras contradições da narrativa, pois ao mesmo tempo que se quer queimar a igreja, lembra-se que fez primeira comunhão quando era criança. Além disso, as repressões que perpassam 35 são simpáticas às repressões dos desejos por parte das instituições, como os bancos que estão dispostos sob o sol e os policiais que mantêm sob vigília os trabalhadores no pátio.

Também, desde o início, Mário faz questão de marcar, a partir da agressividade, a rivalidade e raiva que o protagonista possui com as instâncias de poder: a polícia, os políticos, a igreja, e inclusive com os próprios trabalhadores, o que se manifesta em um sentimento de desconfiança com isso tudo e que advém, segundo o próprio personagem, da experiência (o que é irônico, pois ele possui apenas vinte anos).

Assim, mesmo a mídia, que tem um protagonismo forte na vida dos trabalhadores daquela época, e que também era um veículo de informação capital, não escapa da desconfiança de 35. Ele lê recorrentemente o jornal, que anuncia a união e a revolução, contudo sua leitura cria um conflito de interesses entre a classe e seus desejos:

O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Também aqui se pode ver mais uma vez expressa a divergência entre o indivíduo e sua consciência de pertencimento à classe operária, fora o fato de sua postura com o jornal mostrar ao leitor que 35 não sabe se se alinha com o valor de nação e esforço (comemorando o Dia do Trabalhador), ou com os “revolucionários”, que espalham motins pelo mundo afora e expressam sua indignação com qualquer que seja o ponto.

Participar das comemorações do primeiro de maio ou das revoltas internacionais?

Eis uma resposta que 35 não responde e mal entende o porquê. Ora 35 é reconhecido por si e pelos outros, como quando os colegas vêm até ele perguntar sobre as cerimônias de comemoração, ora ele se reconhece e é reconhecido como a prostituta que passava na rua, que aparenta um sentimento de sem lugar, marginalizado, sem perspectivas.

Toda sua jornada aparece como uma aporia do desejo, pois sua vontade é nebulosa e complexa. Se quer celebrar e ao mesmo tempo não se quer; se quer violentar, mas sempre há uma desculpa para que não faça;  e a garota do apartamento continua como um sonho distante, no qual 35 reconhece que, apesar de todo o seu desejo, “nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez”.

Por fim, é necessário dizer que, apesar de Contos Novos ser publicado postumamente e consequentemente atribuído a uma fase madura do escritor paulista, as ideias que aparecem nessa obra e, de forma mais ilustrativa, no conto Primeiro de Maio, também podem ser encontradas em Pauliceia desvairada, livro de poemas publicado em 1922, em que as ideias de O rebanho estão próximas das expressas no conto (claro que com as devidas variações que dizem respeito ao contexto em que se inserem: República Velha nesse e Estado Novo naquele):

O Rebanho

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
Saírem de mãos dadas do Congresso…
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos salvadores do meu Estado amado!…

Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
Entre o trepidor dos taxis vascolejantes,
A rua Marechal Deodoro…
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos heróis do meu Estado amado!…

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos…
Emigram os futuros noturnos…
E verde, verde, verde!…
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
Mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhe os cornos, descem-lhe as barbinhas…
E vi que os chapéus altos do meu Estado amado,
Com os triângulos de madeira no pescoço,
Nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,
Se punham a pastar
Rente do palácio do senhor presidente…
Oh! minhas alucinações!

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