Resenha – “A mão esquerda da escuridão”, de Ursula K. Le Guin

Ficção científica, política e de gênero

Não sei bem o que me levou a ler o livro A mão esquerda da escuridão, da escritora Ursula K. Le Guin, a não ser o fato de ter sido indicado por minha companheira, que o tinha lido para uma disciplina a respeito da ficção científica produzida nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ela gostara tanto da história de Le Guin que acabou comprando a versão física da obra, publicada em 2019, pela Editora Aleph, com tradução de Susana L. de Alexandria. Estando na estante e sem outras obras pendentes, acabei encarando a leitura e confesso que fiquei bastante impressionado.

Resumindo

Em A mão esquerda da escuridão nós acompanhamos a missão política empreitada por Genry Ai, um homem terráqueo, enviado para o planeta Inverno (ou Gethen), a fim de convencer seus “países” e habitantes a entrarem como planeta para o Ekumen, uma espécie de ONU interplanetária. O interesse do Ekumen em Gethen está ligado ao fato de os gethenianos serem parte de uma “humanidade maior”, apesar de o povo de Gethen não parecer ter qualquer interesse em tecnologias espaciais ou nas conquistas do progresso tecnológico, o que coloca o Sr. Ai, um alienígena entre eles, imerso em um jogo complexo de desconfiança e incredulidade.

Atravessando essa trama política está a maior dificuldade encontrada pelo terráqueo: o fator sexual e seus impactos na sociedade e na psique getheniana, ponto que é uma das cerejas do bolo confeitado por Le Guin. Os gethenianos, diferente dos “outros humanos”, de outros planetas, são ambissexuais, ou seja, têm a capacidade de desenvolver os dois órgãos genitais, o que se dá em períodos específicos de reprodução e/ou afeto: o kemmer. Genry Ai, homem da Terra, é um pervertido aos olhos de Gethen, por sempre estar “no cio” – ou no kemmer –, e ninguém no planeta confia nele, a não ser Therem Hart rem ir Estraven, um político getheniano, que, justamente por conta de seu interesse em Genry e no Ekumen, perde todo seu prestígio, sendo colocado diante de diversas armadilhas armadas por seus conterrâneos.

Os dois personagens, que são também os narradores da história, enfrentam uma odisseia política e social, criada por suas próprias escolhas, se vendo obrigados a enfrentar o povo e a cultura de um planeta que ainda passa por uma de suas eras glaciais e que ainda parece querer permanecer isolado.

Luz é a mão esquerda da escuridão
e escuridão, a mão direita da luz.
Dois são um, vida e morte, unidas
como amantes no kemmer,
como mãos entrelaçadas,
como o fim e a jornada.

Inteligência ficcional

Farei meu relatório como se contasse uma história, pois quando criança aprendi, em meu planeta natal, que a Verdade é uma questão de imaginação.

Em conversas com minha companheira, desde o começo de minha leitura, tenho elogiado a construção do universo de A mão esquerda da escuridão; quando as calotas polares derreterem e o mar cobrir a terra, ou quando o sol se apagar de vez, e não existir mais nada, eu vou continuar elogiando esta obra e a imaginação de sua autora. Isso porque é de uma inteligência invejável, e Ursula K. Le Guin consegue dar substância não só ao planeta glacial Inverno em si, como também à experiência e ao choque cultural vivido pelas duas personagens centrais. Nós, de fato, temos uma “percepção de alienígena”, ou no mínimo estrangeira, com relação a Estraven e aos códigos gethenianos, e temos a mesma impressão de Genry Ai, quando é Estraven quem está narrando, já que o terráqueo não é um homem da nossa terra e tão semelhante a nós, mas de uma Terra de alguns bons anos no futuro. A autora não deixa escapar nada e se vale de mitos, lendas, descrições geológicas e temporais, quase que completamente inventadas, para deixar o cenário mais real, mais palpável para o leitor. E diferente do que acontece com algumas obras, em que as descrições vão ficando enfadonhas e longas demais, em A mão esquerda da escuridão eu sempre queria avançar e descobrir mais um pouco sobre Gethen e sua gente. Acho que isso acontece porque os elementos descritivos estão espalhados por uma trama de acontecimentos bastante envolvente, que traz prisão, traição, assassinato, peregrinação e tudo mais.

A questão de gênero

Apesar da maestria com relação à construção do kemmer enquanto fator biológico e cultura local de Gethen, Ursula K. Le Guin acaba caindo em uma armadilha que ela mesma quer desconstruir nesta história: pelo fato de os gethenianos “não terem sexo definido”, todos os personagens que aparecem de forma central na trama apresentam traços tipicamente tratados como masculinos. É um livro de homens, contado por um homem terráqueo. Estes homens que convivem com Genry Ai são, no geral, tratados com pronomes e artigos masculinos, e o narrador sempre associa a eles a força, a racionalidade, a postura política e impositiva, a violência etc. Agora, quando, em algumas cenas, o Sr. Ai vê que algum personagem getheniano demonstra sensibilidade, fraqueza ou impaciência, ele imediatamente o associa ao feminino, reforçando alguns estereótipos que já não fazem sentido para nós, contemporâneos.

O livro de Le Guin saiu em 1969, ou seja, um ano depois do Maio de 68, o que significa que os debates acerca do gênero e da sexualidade ainda viviam uma espécie de germe de pensamento. O fato de ser antigo não invalida, é claro, as discussões levantadas em A mão esquerda da escuridão, principalmente no que diz respeito à relação entre masculinidade e feminilidade como parte de um sistema binário (e machista, em muitos casos), no qual se opõem: masculino e feminino, como positivo e negativo, ativo e passivo, racional e passional, destrutivo e construtivo etc.

“Yes i Say Yes i will yes”

Se não convenci com a resenha, tento agora com um pedido formal: – Leia A mão esquerda da escuridão.

Depois de eu ler uma série de e-livros, foi muito bom pegar um volume físico para ler, e melhor ainda foi encontrar esta obra prima da ficção, escrita por Ursula K. Le Guin, que, posso dizer com total certeza, foi um dos melhores livros que li em 2021. Assim, aos que querem ler uma boa ficção, não só científica, como também um bom livro, no geral, deixo essa indicação (essa EXIGÊNCIA, na verdade): – Leia A mão esquerda da escuridão.

Resenha – “A Trança”, de Laetitia Colombani

Histórias que se amarram no “ser mulher”

A trança é uma história – quase uma poesia – lançada em 2021 por Laetitia Colombani, que já vendeu mais de 1,4 milhões de exemplares. Conta a história de três mulheres, de três culturas diferentes, que passam por três problemas diferentes, de acordo com o “ser, aqui, agora” de cada uma. Cada uma dessas mulheres representa uma mecha, cuidadosamente apresentada, tratada e trançada durante a narrativa, que, no fim, vão se juntar em um ponto de amarração, união. Essa trança, formada por meio da história das protagonistas, envolve cada uma de nós, leitoras.

“Estranho bailado esse, dos meus dedos. Escreve uma história de tranças e entrelaços; Essa história é a minha história. Embora não me pertença.”

A narrativa impecável trançada por Laetitia é composta por um pouco da vida de Smita, de Giulia e de Sarah. Smita é uma mulher da Aldeia de Badlapur, Uttar Pradesh, na Índia. Uma dalit, uma intocável, uma espécie julgada impura pelos demais, que acorda todos os dias, desde criança, para exercer o único trabalho da qual é considerada digna pelas outras classes: limpar a merda dos outros (no sentido mais literal e cruel do termo). Mas Smita também é mãe, e para sua filha de seis anos, Lalita, não quer o mesmo destino. Assim, ela se arrisca para que a menina tenha o básico, algo que a própria Smita nunca teve: a oportunidade de frequentar a escola.

Em paralelo a essa história, temos Giulia, uma jovem residente de Palermo, Sicília, cujo oficio e tradição familiar é tratar e vender cabelos italianos. Seu pai é sua inspiração e os negócios da família, seu legado. Mas a vida não é simples, e Giulia vê seu pai, e seu ateliê, entre a vida e a morte. Assim, entre a tradição e as inovações, a menina precisa tomar uma decisão que irá mudar o rumo de sua vida.

Por fim, temos Sarah, uma advogada de sucesso de Montreal, no Canadá. Sarah sempre se dedicou ao trabalho, e quer ser uma das poucas mulheres que atingem o ápice profissional. Mas sendo mulher, Sarah enfrenta desafios que em geral os homens não precisam encarar, porque a gravidez e os filhos não costumam ser um obstáculo para eles. E, quando enfim se encontra tão perto do tão almejado cargo, Sarah é diagnosticada com câncer de mama, deixando de ser Sarah, para virar “o câncer”.

“Ela amaldiçoa essa sociedade que esmaga seus fracos, suas mulheres, suas crianças, todos aqueles que devia proteger.

À primeira vista, as histórias dessas mulheres têm pouco em comum. Todas elas são fortes, mas estão inseridas em uma sociedade machista, injusta e hipócrita. Todas elas travam suas batalhas, internas e externas, dia após dia, a fim de conseguir o que é seu por direito: uma vida digna, simples. A delicadeza com que as histórias são trançadas, e a forma como nós, mulheres, nos encaixamos entre esses fios, é o que faz dessa leitura, dessas poucas mais de 100 páginas, algo tão belo, tão válido e tão profundo.

“Que estranho, repara, a vida às vezes junta os momentos mais sombrios com os mais luminosos. Dá e tira ao mesmo tempo”.

Principais Impressões

Decidi ler A trança por pura curiosidade: – É uma leitura curta, aparentemente simples, por que não? – Mas o que eu não esperava era a tamanha identificação que senti com as três histórias, tão distintas entre si, e tão distintas da minha. É interessante perceber como a autora, capítulo após capítulo, de forma lenta e cuidadosa, costura as histórias, até que, no fim, elas se encontrem e se amarrem de forma sutil. O que mais me encantou nessa leitura foi a forma como Laetitia Colombani mostra que, em qualquer lugar do mundo, mulheres encontram dificuldades que são comuns a todas as outras mulheres. O desafio de levantar sua voz diante de uma sociedade patriarcal, a luta para alcançar o sucesso profissional, a luta por direitos que deveriam ser básicos… Enfim, a luta diária que enfrentamos por sermos mulheres: para sobreviver, crescer, ser. E, mesmo que as personagens não saibam da existência umas das outras, suas histórias ainda se encontram, sem que elas percebam, assim como, de alguma forma, se encontram com a minha e com tantas outras por aí. Uma frase que, para mim, define a leitura é: Não estamos sozinhas, somos únicas, e somos muitas, e somos juntas. E se tem um ponto que poderia ser considerado negativo (mas não é), é o gosto que senti no final, o de querer saber ainda mais sobre essas mulheres tão fortes, tão diferentes e que carregam um pouco de mim.

“Sou apenas um elo, um ponto de união irrisório, que segue firme na interseção de suas vidas, um fio tênue a uní-las, fino como fio de cabelo, invisível ao mundo e aos olhos…”

“Fractal”, um poema de Paulo Bittencourt

O pensamento como quebra-cabeças de vidro estilhaçado que me corta a cada movimento de peças e cujo encaixe é ilimitado para extrair dos meus dedos o pouco de sangue que lhes resta. Dar ao oceano a medida certa de urina para salgar-lhe o sexo reptício das areias submarinas cristalizar a rocha dos cotovelos animais e dos cancros-utensílios de ferir a alma alheia dos homens. Abandonar completamente a esperança ao penetrar no reino surdo das palavras sem nexo afogadas no mais brilhante desespero soturno da vida que brota no deserto.

A solidão infinita dos peixes que se esquecem de nadar.

A paixão infinita dos seres que se esquecem de amar.

A tração infinita dos bois que se esquecem de marchar.

Pintura de René Magritte (1926)

Eis a imagem fundamental do silêncio-tormento do tiroteio si-por-si entre flores sorridentes só para testar quem resta por último aberta e finalmente poder fechar-se em si vitoriosa do sofrimento. Matar não para conquistar enrijecer dominar submeter cativar embrutecer animalizar escarnecer mas para livrar.

Andar com a faca presa aos mil elos dentais que brotam da gengiva.

O olhar fixado na saliva que se acumula ao canto da boca última gota de mar que escorre violentamente sobre o queixo como feixe de azul que escancara o meio dia das dores e que faz brotar outras mil por debaixo da língua. Ceifar o corvo sem penas que paira fênix do mais virginal edênico paraíso celeste em que deuses e putas ejaculam seus orgasmos pernósticos.

E por fim fazer crescerem os prédios mais altos cujos cumes atingem as verdades sobre a pilha de corpos pútridos que produzem incontáveis litros do mais negro chorume. O paraíso titânico do vidro que escancara as tripas abrindo o esterno com máquinas tracionadas hidraulicamente deixam à vista crua do sol o último batimento cardíaco o último suspiro de morte.

Finalmente.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

30 contos incríveis de H. G. Wells para adicionar hoje à sua lista de leituras

H. G. Wells (Londres, 1866-1946) é até hoje um dos mais prodigiosos e conhecidos autores de ficção científica, tendo escrito clássicos como A guerra dos mundos, A ilha do doutor Moreau, O homem invisível e A máquina do tempo. Mas o que muita gente não sabe é que, entre as centenas de histórias mais ou menos famosas que Wells escreveu, há uma grande quantidade de contos extraordinários que, além da ficção científica, contemplam os gêneros da fantasia, do terror, da aventura e até do realismo (geralmente, contos muito cômicos ou filosóficos neste último caso).

Pensando nisso, elaboramos para vocês uma lista com a seleção dos meus 30 contos favoritos de Wells, mesclando entre esses diversos gêneros que a literatura do autor abarca. (Até agora, nenhuma coletânea incluiu a tradução de todos eles para o português em volume único, mas um passarinho me contou que vem coisa boa por aí! Aguardem. ♥)

Decidimos não dividir a lista por gênero porque muitos dos contos caberiam em mais de um enquadramento. Por exemplo, será que The Star ficaria melhor classificado como ficção científica ou terror cósmico? E My first aeroplane“Alauda Magna”, aventura ou realismo? Do mesmo modo, muitos outros podem ser lidos e compreendidos por mais de um ponto de vista, já que não existe pureza na distinção dos gêneros literários. De um jeito ou de outro, temos certeza de que nessa seleção é possível encontrar contos para os mais diversos tipos de leitores.

Ah! Outro ponto importante: os contos não estão na ordem dos meus favoritos – preferi organizá-los por ordem cronológica, de acordo com o ano da primeira publicação (vocês sabem, é tão difícil escolher… rs). Alguns deles já foram traduzidos e podem ser encontrados à venda em sites e livrarias. Recomendamos a leitura do e-book de A porta no muro, lançado pela editora Wish no projeto Sociedade das Relíquias Literárias. O livro pode ser baixado gratuitamente clicando aqui. 📚🦊

Também vamos deixar no final desse post alguns links para compra de livros de H. G. Wells. Usando nosso link, você apoia o nosso trabalho sem pagar nem um centavo a mais por isso. 🤩

A lista completa dos 30 contos de H. G. Wells vocês conferem logo abaixo. Esperamos que gostem!

  1. The Diamond Maker (1894)
  2. Mr. Ledbetter’s Vacation (1894)
  3. The Flowering of the Strange Orchid (1894)
  4. Aepyornis Island (1894)
  5. In the Abyss (1894)
  6. In the Modern Vein (1894)
  7. The Obliterated Man (1895)
  8. The Moth (1895)
  9. Pollock and the Porroh Man (1895)
  10. A Catastrophe (1895)
  11. The Magic Shop (1895)
  12. A Slip Under the Microscope (1896)
  13. The Story of Late Mr. Elvesham (1896)
  14. The Rajah’s Treasure (1896)
  15. The Red Room (1896)
  16. The Apple (1896)
  17. The Sea Raiders (1896)
  18. The Crystal Egg (1897)
  19. The Star (1897)
  20. A Story of the Stone Age (1897)
  21. Miss Winchelsea’s Heart (1898)
  22. The Man who Could Work Miracles (1898)
  23. Jimmy Goggles the God (1898)
  24. A Dream of Armageddon (1901)
  25. The Story of the Inexperienced Ghost (1902)
  26. The Country of the Blind (1904)
  27. The Door in the Wall (1906)
  28. A Moonlight Fable (1909)
  29. My First Aeroplane – “Alauda Magna” (1910)
  30. Little Mother up the Mörderberg (1910)

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🪐 A Guerra dos Mundos

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🪐 A Ilha do doutor Moreau

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🪐 A Máquina do Tempo

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Conto – “O Palácio de Cristal”, de Paulo Bittencourt

Os portões do Palácio de Cristal estavam intactos, mesmo seus arredores estando completamente arruinados. Apesar de os escombros dificultarem a chegada até os arcos metálicos que circundavam a entrada, o fenômeno era misterioso de uma maneira tal que se me apresentava irresistível em seu convite. Com um pouco de esforço e levado pela curiosidade, cheguei frente à aldraba — um condor esculpido em prata, encardida pela poeira circundante e pelo efeito do tempo, cuja argola pendia do bico como uma presa inevitável.

Adentrei, e a impressão foi atravessar logo a barreira do tempo alguns séculos atrás. A disparidade era visível: o local estava impecavelmente limpo, o que ressaltou ainda mais o contraste com o lado de fora, que agora se apresentava para mim como um local longínquo, mesmo estando ainda há poucos metros da entrada já fechada. Mas para além mesmo da notável diferença nas condições do local, adentrá-lo reservou a meu corpo uma mudança súbita de estado — antes, o escuro tomava conta, e a criança chorava toda sua angústia em desespero, imprimindo sobre o escândalo sua energia; agora, o calor do peito da mãe acalentava, e é como se nada mais existisse nos arredores e a escuridão nunca houvera existido. Dentre as várias portas à minha vista, apenas uma delas estava entreaberta, e de lá emanava um parco feixe de luz capaz de iluminar parcialmente o trajeto até o local.

Mesmo com o coração em ritmo acelerado, estranhamente à medida que me aproximava daquele cômodo, aumentava em mim o sentimento de segurança. Não houve sequer hesitação ao lançar impávido a mão sobre a maçaneta e lentamente abrir a pesada porta de madeira ornada em metal ondulado, simulando colunas jônicas, ao melhor estilo neoclássico. Lá se viam duas poltronas de couro marrom separadas por uma pequena mesa de centro, à altura dos braços, em cuja superfície fixava-se um candelabro com espaço para até cinco velas de tamanho médio, apesar de apenas três estarem lá fixadas e uma acesa, tornando o ambiente mal iluminado, mas suficientemente visível aos olhos.

À cadeira esquerda assentava-se um homem de feição apagada, à sombra de seu chapéu estilo fedora, de abas curtas e levemente curvadas à esquerda, que impedia a luz da vela de fazer claros os contornos de seu rosto. Nenhum centímetro de pele ficava à vista: o fraque e as luvas, as calças e o sapato, cobriam finamente o corpo bem ajustado e de pernas cruzadas do silencioso sujeito. Sentei-me na poltrona à sua esquerda com a perna arqueada e levemente irrequieta. A cena era convidativa à conversa, pois me pus a falar, rompendo primeiro a barreira do silêncio:

“Atlas Turned to Stone” – Edward Burne-Jones (1878)

— O senhor aparentemente está no mais pleno conforto aqui, em seu isolamento, cercado pela estrutura intocável deste palácio… Confesso que ao adentrar seu recinto, um inédito sentimento de segurança se apossou de meu corpo e, sem hesitar ou sequer me preocupar com qualquer formalidade de etiqueta, cá me apresento ao seu lado. Diga-me, como posso chamar-lhe? A quem devo prestar meu mais sincero respeito? — Procurei dirigir as palavras com serenidade e num tom algo grave, demonstrando ao mesmo tempo seriedade e empatia, para não causar nenhum tipo de constrangimento ao ambiente tão pacífico que construíra o homem.

Silêncio absoluto. A sombra tampava perfeitamente a feição deste estático senhor, o que tornava sua presença algo espectral.

— Sei que aqui, sentado ao seu lado, nada mais para mim se parece necessário. Você está absolutamente cercado da mais bela salvaguarda. Absteve-se da vulnerabilidade atormentadora do exterior, que agora encontra-se em ruínas. As espessas paredes de vidro que o separam daquele universo sequer sofreram um arranhão, e a calma rígida deste quarto, do seu corpo em estrutura formosíssima, seduzem-me à semelhança de uma torre de marfim, dentro da qual não há a menor exposição às intempéries daquele caos. O senhor me desperta uma aura de tão cristalina serenidade; mesmo o caráter lúgubre deste cômodo interior, em contraste à arquitetura translúcida do palácio, sequer traduz a impressão de qualquer solidão. Creio que este é um dos motivos que me levaram à desinibição de assentar-me aqui, ao seu lado. — Esta fala respeitosa com o mesmo tom da anterior, ao mesmo tempo suscitava um possível diálogo sobre aquela condição tão perfeita ao passo que pretendi de forma tangente um certo pedido de desculpas por minha entrada abrupta e desavisada.

Novamente nenhuma reação ou som procedeu de minha tentativa de estabelecer a comunicação. Cruzei as pernas de forma bastante similar àquele senhor, e mesmo na situação de silêncio um tanto quanto constrangedora a olhos alheios, meu corpo ainda se sentia plenamente seguro diante daquela figura, sem nenhuma vontade de levantar-me e sair.

— Sabe… O senhor é que está certo. Não há razão para se aventurar naquela selvageria. O mundo nunca se mostra da maneira como esperamos. De forma geral, há sempre um receio oculto das mais imprevisíveis surpresas. Por mais que por vezes avistemos belas flores a desabrocharem, virginais, à sorte das florestas, as rédeas nunca parecem corresponder aos nossos comandos, e o trote ligeiro imprime uma passagem invencível. Se junto àquela flor deixo minha alma, jamais a recobro; sigo com o corpo fechado, em estado de vertigem.

Senti aquelas finas camadas da mais perfeita segurança se sedimentando lentamente e transformando-se, de súbito, num tremor em minha mão direita, que repousava até então no braço de couro da poltrona. O estranhamento se me apossou ao perceber que esse mesmo tremor que agora tomava conta do meu corpo também assolava o fino senhor ao meu lado. Era como se a longa exposição àquele colo de mãe perdesse seu calor pelo costume banal, e fosse necessário agora negá-lo friamente, somente assim tornando-se possível a avaliação da perda. Impetuosamente dirigi àquele sujeito minha mão, que nervosa e flácida se aproximava da sua. O toque frio rapidamente desfez à minha frente sua imagem, e o espelho que nos separava estilhaçou-se. O fraque e o chapéu, as calças e o sapato, vestiam-me perfeitamente, como se feitos sob medida. O último suspiro da vela não me permitiu identificar a forma do meu próprio rosto. Agora a escuridão toma conta deste Palácio de Cristal, intransponível.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Lirismo enquanto doença

Na nossa cultura, o conhecimento (segundo uma antinomia que Aby Warburg acabou diagnosticando como a “esquizofrenia” do homem ocidental) está cindido entre um pólo estático-inspirado e um pólo racional-consciente, sem que nenhum dos dois consiga reduzir integralmente o outro.

– Giorgio Agamben, em Estâncias  

No poema “Num monumento à aspirina” é possível tomar como mote o movimento metafórico entre o remédio e o sol. A predicação do primeiro caminhando em direção ao segundo, mas a partir de uma polifonia que alça o astro-rei para o papel de consciência formal, superego de uma tradição poética que através da lírica indisciplinou o consciente. Leio, portanto, este poema concentrado nas possibilidades metapoéticas da antilírica cabralina.

Antes, contudo, transcrevo-o abaixo, para que aqueles que não o conhecem possam lê-lo:

Num monumento à aspirina – João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

“O sol de um comprimido de aspirina”, exuberante sol, desvelador das formas, patrono de uma clareza cristalina, capaz de cegar o intuitivo, o dito natural. O sol é o pressuposto de uma operação que assume o criar enquanto oficina, é perigoso manipular máquinas em meio ao breu, lesões, acidentes e imprecisões deformam a forma.

O latejar do crânio, preambulo da aspirina, é anterior ao poema, o remédio demanda a doença e a doença faz par com o remédio. Exatamente pelo aflorar orgânico da imprecisão das formas, suas abstrações pretéritas ao nome, faz-se preciso um fármaco solar: consciência, método.

O poema articula-se enquanto o elogio do remédio “Principalmente porque, sol artificial”.  Elogio, pois, afirma-se contra o crescer vertiginoso da linguagem. O fármaco, como produto do espírito, formaliza a distância radical entre a espontaneidade e o labor. Ode, portanto, ao artifício.  

A antilírica prossegue na defesa do botânico contra o jardineiro, o método em recusa da inspiração, afinal, somente o sol em pílula é “(..) imune às leis da meteorologia”. A técnica poética, o cálculo, é apresentado como gesto ou prática capaz de se não abolir ao menos driblar a contingência romântica imposta pela inspiração.   

Convergem: a aparência e os efeitos 
da lente do comprimido de aspirina: 
o acabamento esmerado desse cristal, 
polido a esmeril e repolido a lima, 
prefigura o clima onde ele faz viver 
e o cartesiano de tudo nesse clima.

“Convergem: a aparência e os efeitos”, a luz, como lâmina, propõe, escolhe, recorta, qual sombra deve dilatar-se pelas páginas abertas da mente-oficina. Exatamente por ser conflito entre o doer e o anestesiar o momento ímpar, aquele de mais perene equilíbrio, é quando o fármaco se encontra como ao meio dia. Luz total, meridiana e penetrante, mas já antevendo o ascender das sombras, o porvir da lua. Nesse sentido, a aspirina surge enquanto emergência, objeto de uso crónico, espécie de reparo ou dique que impede que aquelas ondas fortes do oceano lírico roubem ainda mais areia à praia.

O poeta antilírico sofre como se fosse lírico pois contínua recebendo as ofensivas incoordenadas da linguagem, o sentir que precede a forma.  É como em um haikai de Matsuo Basho, que traduzo com honesta imprecisão a partir do inglês,

Nuvens 
Uma chance 
Desver a lua  
Clouds - 
a chance to dodge 
moonviewing. (Poema disponível aqui)

A perturbação aumenta a nitidez do objeto, nada melhor do que ocultar para acabar revelando. O interessante, no sentido romântico do termo, capacidade de ser gerador de interrogações, é o poema abordar uma ferida crónica, uma dor que passa somente para voltar mais forte e que por isso mesmo mantem o poeta atento, firme, na espera da derrota final contra a linguagem.

De outro lado, porque lente interna, 
de uso interno, por detrás da retina, 
não serve exclusivamente para o olho 
a lente, ou o comprimido de aspirina: 
ela reenfoca, para o corpo inteiro, 
o borroso de ao redor, e o reafina.

O remédio solar funciona tal qual lente, “Ela reenfoca, para o corpo inteiro”, cindindo interioridade e exterioridade em um todo formal, como se almejasse que a palavra fosse capaz de dar unidade ao todo.  “Lente interna”, pois no exercício de desembaraçar “o barroso de ao redor” reforça a capacidade ordenadora da linguagem poética.

A construção desse poema, suas imagens, me fazem pensar que existe algo de utópico, algo além do humanismo romântico que deu forma ao lirismo moderno. Só que no caso de Cabral eu apostaria que mais do que alcançar outro lugar, o utópico assume uma espécie de não geografia, a poesia mais interessada em ser dis-topíca do que lugar: somente nessa estância dissociada de endereço que a criação poderia assumir o rigor demiúrgico almejado pelo poeta.

Claramente: o mais prático dos sóis, 
o sol de um comprimido de aspirina: 
de emprego fácil, portátil e barato, 
compacto de sol na lápide sucinta.

Resenha – Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski

O pior castigo do homem é sua consciência

Crime e Castigo (1886) é considerada uma das maiores obras da literatura mundial, e segue tendo grande influencia na literatura devido ao seu caráter caótico e impecável ao apresentar ao leitor a condição humana de forma bruta. Aliás, o marcante existencialismo presente na obra é visto também na maior parte (talvez em todas) das obras de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), com uma escrita desordenada, personagens complexos e anti-heróis antipáticos, irritantes e um tanto “antissociais”.

Nesse livro, o autor russo conta a história de Rodion Românovitch Raskólnikov, um jovem estudante de Direito que se muda para a São Petersburgo do século XIX, forçado a abandonar os estudos devido a falta de recursos financeiros e se limitando a uma rotina monótona, recluso em seu pequeno e sombrio quarto de pensão, sozinho com seus devaneios. A fim de conseguir algum dinheiro para se sustentar, Raskólnikov penhorava objetos pessoais com Aliona Ivanóva, uma usuária mesquinha e rabugenta pela qual ele nutria completa aversão. Rodion tinha uma teoria própria de que um crime, se cometido por uma pessoa extraordinária que almeja um bem maior (sendo Napoleão um exemplo de pessoas assim, para o anti-herói), seria algo perdoável, e o próprio autor do crime em nada seria afetado (psicologicamente). Raskólnikov, curioso para saber se é uma pessoa Extraordinária ou não e pensando realizar algo para o “bem maior”, passa a planejar o assassinato da velha Aliona com uma espécie crescente de incredulidade, que só desaparece quando enfim o ato é efetivado. Mas o verdadeiro crime ocorre quando Lizavieta, irmã da usuária, entra em cena e precisa ser morta para que não haja testemunhas da morte da velha – Crime cometido, dinheiro e joias roubadas, fuga perfeita.

Durante o restante do livro, acompanhamos então o Castigo de Raskólnikov: ele não faz uso do montante ou das joias roubadas, doando seu próprio dinheiro a pessoas que precisavam e, assim, permanecendo no estado de pobreza inicial, sem nenhuma intenção de melhorar suas condições de vida. E, apesar de afirmar não se arrepender do que fez, tantos são os conflitos internos que o protagonista passa a ter delírios, adoece e perambula sem destino pela cidade, sempre parecendo desejar confessar seu crime a alguém que o absolva de alguma forma. Essa figura é encontrada em Sônia Marmeladova, prostituta e cristã fervorosa, filha de um alcoólatra (Semion) que Rodion conhece por acaso em um bar:

Nela ele procurava um ser humano quando estava precisando de um ser humano; daí que ela o acompanharia aonde o destino mandasse.

Principais impressões

Primeiro, tenho que confessar que apesar do crime e do gênio odioso de Raskólnikov, segui torcendo por ele durante todo o livro. Seu sofrimento era tão intenso, sua angústia tão notável e sua condição tão humana, que foi difícil não acolhê-lo. E eis o aspecto que fez dessa leitura algo extraordinário para mim: a forma como Dostoiévski é impecável ao mostrar que seus personagens, na realidade, podem ser vistos em nós mesmos de alguma forma. Também nós não cometemos atos por nos pensarmos superiores? E, depois, também não nos torturamos com isso? Não procuramos em outros o que falta em nós? E a todos nós a consciência não castiga em algum momento da vida? Claro, na obra somos apresentados ao extremo da condição humana, mas não é difícil uma identificação.

O sofrimento e a dor são sempre obrigatórios para uma consciência ampla e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes, a meu ver, devem experimentar uma grande tristeza no mundo.

Outro ponto interessante da leitura foi que a história se passa dentro de 3 ou 4 meses, mas a impressão que se têm é que apenas alguns dias se passaram, tal é a imersão que temos com todo o processo psíquico do protagonista. O tempo passa, mas ao mesmo tempo têm-se uma estagnação. Dessa forma, as quase 600 páginas da obra se transformam, no fim, em um piscar de olhos.

Por fim, um ponto negativo para mim foi a frequência com que Sônia aparece na história. Apesar de os momentos em que ela se encontra com Raskólnikov serem muito significantes e de grande profundidade para os dois, senti falta de conhecer mais sobre a personagem e sobre sua relação com Rodion, de forma que ficou um tanto vago para mim a razão de tão forte conexão entre eles. Mas apesar disso, a história sobre o castigo de um homem que se achava extraordinário foi, para mim, uma das melhores já lidas, fazendo jus a sua fama.

Deus dê paz aos mortos, porque aos vivos ainda resta viver!

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