Resenha – “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk

Entre a literatura e o manifesto

Desde o momento em que li o título, vi a capa e li a sinopse de O som do rugido da onça (2021), livro de Micheliny Verunschk, tive vontade de lê-lo. Demorou, mas aconteceu, e agora trago essa pequena resenha, para a apreciação (ou não) de vocês.

Iatucasaua

Particularmente, acho difícil resumir a narrativa do livro de Micheliny – por ser fragmentada e costurada com uma linguagem única. Em síntese, eu diria que O som do rugido da onça faz uma reescritura da odisseia vivida pela personagem Iñe-e: uma jovem do grupo indígena Miranha, sequestrada – junto de outras crianças – por dois exploradores alemães que vieram ao Brasil, no século XIX. Tirada da família, de seu povo, terra e do mundo que conhecia, Iñe-e tem por companhia os espíritos e divindades de sua tradição, além dos pensamentos e impressões de um lugar cada vez mais estranho. Tem, também, como companheiro, o menino Juri, outra criança sequestrada, que, apesar de dividir o mesmo destino desgraçado, não fala a língua dela.

Mas não se trata só disso a história. Micheliny também amarra o passado ao presente, ao colocar a personagem Josefa (um alterego da própria autora?) em trânsito paralelo com as duas crianças, confrontando este nosso Brasil contemporâneo, que se mascara de “novo”, mas que continua, depois de tantos e tantos anos, massacrando as lutas e silenciando as reinvindicações indígenas sobre terra, sobre moradia, sobre dignidade, sobre seus direitos mais básicos.

“Ruindade não acaba” – diz Tipai uu, a Onça Grande, para Iñe-e.

Nheen eé, Nheen ayua

Como eu disse no começo, particularmente, eu não gostei do livro, porém acho que ele traz coisas de muita qualidade que precisam ser mencionadas. Para começar, acho que o adjetivo que melhor descreve a narrativa é: necessária, não só por tematizar e colocar como protagonistas personagens indígenas e feridas históricas ainda abertas, como também por lançar um novo olhar sobre estes machucados, lendo uma história do Brasil à contrapelo. Ao lado disso, está uma linguagem brilhante, que deixa evidente a inspiração no lirismo derramado que atravessa algumas das obras de Guimarães Rosa. O uso desta língua específica para narrar, que mescla prosa, poesia e vocabulário nheengatu, deixa a leitura dinâmica, rica e, por mais estranho que pareça, mais fácil: uma vez que a gente pega o ritmo, o livro flui muito bem.

Só que, para mim, O som do rugido da onça não teve apenas flores. Achei a narrativa incompatível com o nível da escrita, já que é excessivamente didática, a ponto de se transformar quase em um manifesto que afoga parte da força literária do livro. Trechos como: “como pode ser bom alguém que compra outras pessoas? Que as leva para longe dos seus parentes?” ou “por que Iñe-e, que era livre, agora tinha donos?” aparecem com certa frequência e seriam totalmente dispensáveis, uma vez que fica claro o ponto de vista que o narrador (e a autora e nós, “leitores esperados”) defende. Fora que, com exceção de Iñe-e, os outros personagens que aparecem são pouquíssimo significantes e quase desaparecem da memória ao fim do texto, talvez por sua falta de complexidade na tomada de decisões e na forma como são percebidos pelo olhar de Iñe-e.

Mas nenhum desses pontos desqualifica ou dispensa a leitura do romance de Micheliny. Volto a dizer: leia Osom do rugido da onça e tire suas impressões; é extremamente necessário, como todas as releituras que propõem um questionamento da chamada “história oficial”, feita por mãos brancas, colonizadoras e patriarcalistas.

A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector: a barata, O Mistério e o neutro

Já faz algum tempo que nós começamos a disponibilizar dois gêneros importantes aqui no Duras Letras: as resenhas e os artigos acadêmicos, em uma tentativa de aproximar ainda mais os leitores e leitoras de nossos colaboradores. E, justamente pensando nessa relação e nos gêneros, preparamos agora um tipo diferente de publicação, que se faz entre uma coisa e outra, entre a resenha e o artigo científico. Considerem, portanto, que esta publicação tem um quê de experimental e não deixem de comentar e curtir, pois será esse o nosso termômetro.

Ah, Clarice Lispector, escritora densa, mas extremamente poderosa e de um lirismo sem igual… Quem nunca se afogou em um de seus muitos livros? Você não? Bom, então o texto que disponibilizamos aqui oferece essa chance! Pode ser sua porta de entrada para a obra da autora brasileira. Produzido por Lorena Camilo a convite do Duras Letras, a resenha acadêmica “A (teo)poética em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector” propõe uma análise literária mais densa e demorada da escrita de Clarice e – sem se preocupar com os spoilers e emprestando uma boa dosagem do lirismo típico da obra clariciana – coloca sobre a lupa três elementos muito significativos do livro: a barata (ou o animal, em larga medida), O Mistério (o metafísico, o divino, o enigma) e o neutro (a suspensão das polaridades, o ponto entre uma coisa e outra).

Para baixar o texto e conferir, clique no botão abaixo:

Nós do Duras Letras agradecemos à querida Lorena, por dividir conosco e com vocês essa leitura tão instigante, e que funciona como uma entrada para a obra analisada. Esperamos que, como nós aqui do blog, vocês tenham aproveitado a leitura.

Rostam e Sohrab: ou “e se fosse o pai quem matasse Édipo?”

Foi apenas recentemente que terminei de ler A mulher ruiva (2010), de Ohran Pamuk, uma reescritura contemporânea de tragédias envolvendo pais e filhos, na esteira aberta por Édipo Rei, Hamlet e Os irmãos Karamazov. Este livro – literatura estrangeira em duplo sentido, por ser de fora do Brasil, mas também por estar ligado a uma tradição literária que chega apenas aos pedaços no mercado editorial brasileiro – é encantador e nos amarra à sua trama desde o momento em que o protagonista Cem Çelik conta que seu pai fugiu para viver suas aspirações revolucionários, deixando para trás sua esposa e seu jovem (e indignado) filho.

Mas, como o título da publicação sugere, não é a obra de Pamuk que quero comentar aqui. Mesmo assim, se você ficou interessado em conhecer mais sobre A mulher ruiva, pode acessar a resenha do livro, escrita pela Isadora Urbano, aqui no Duras Letras:

Vamos do início. As coisas começaram com A mulher ruiva, história de abandono e violência, que me conduziu até o Shahnameh ou a Épica dos Reis, de Ferdusi, livro que, para a surpresa de um total de zero pessoas, não tem uma edição integral em português, feita e distribuída no Brasil, apesar de ter sido escrito há mais de quatrocentos anos. Bem, eu comprei, por deslize (ou por impulso), uma edição em espanhol do Shahnameh, que faz uma adaptação da forma original, transformando os mais de cinquenta mil versos dísticos de Ferdusi em uma longa e precisa narrativa: fluida e muito impressionante.

Grosso modo, no Shahnameh, o clássico poeta iraniano conta a história mitológica do Irã, desde a criação do primeiro homem, até a conquista do território pelos mulçumanos. Mas, pelo que me pareceu do pouco que li, a cereja do bolo nessa grande narrativa são os episódios que envolvem o herói Rostã (ou Rostam, ou Rostem), cujo epíteto “Pehliva” sugere ser um guerreiro do porte de Odisseu, Aquiles e Gilgamesh.

Agora, orientado pelo olhar de Ohran Pamuk e seu Cem Çelik, a semelhança (ou diferença?) que mais me chamou a atenção foi com o famigerado e trágico Édipo, herói grego condenado pelo destino a matar o próprio pai e a se casar com a mãe. Rostã, nesse caso, é uma espécie de anti-Édipo, porque quiseram – o destino, os reis da Turquia e do Irã e sua ganância – que matasse seu filho, sem saber sua identidade, durante um combate de mais de dois dias. É esta a história do único capítulo que li do Shahnameh até agora: Rostam e Sohrab, da qual deixo também um trecho recriado (sem compromisso) da cena final da luta dos dois, na qual se consuma o destino terrível de Sohrab.

Quando Sohrab, outra vez, alcançou o pai
correu contra ele como louco elefante;

Rostã, já diante do monstro destemido,
pela primeira vez o medo conheceu

e, outra vez, a deus, como em dia passado,
pediu que superasse ao leão com a força.

E Ormuzd atendeu a prece de Rostã!
Munido da força que o deus do Irã lhe deu,

Rostã que Sohrab seus medos percebesse
não permitiu, e ele com todo o poder,

a oferta de Ormuzd para aquela luta,
recebeu na disputa o terrível rival

que por mais que desferisse bravos ataques
o herói de destaque não fez hesitar.

Rostã abraçou Sohrab pela cintura
e o atirou no chão com sua força absurda

e rompeu suas costas como simples graveto
e sacou sua espada e furou-lhe o corpo forte.

Então, Sohrab conheceu seu próprio fim
e assim suspirou e agonizou na terra

antes de dizer a Rostã toda a verdade
de quem Sohrab era, e o sangue de quem era.

Se mudássemos um pouquinho, trocando Sohrab por Édipo e Rostã por Laio, essa cena poderia ser uma inversão daquela que aconteceu entre o pai e o filho na tragédia grega, quando se encontraram em uma estrada, e o filho matou o pai. Sim… e daí? E se a troca fosse outra, e se fosse o pai quem matasse o filho, Laio quem matasse Édipo?

Talvez, apenas talvez, em certa altura de sua miséria familiar, depois de descobrir a verdade sobre a morte de seu pai e antigo rei de Tebas, Édipo tenha se perguntado: mas o que aconteceria se ele, Laio, ele, meu pai, tivesse me matado naquela luta? Será que tudo estaria bem? Como não foi o que aconteceu, podemos apenas fazer coro a essa questão fictícia e especular em cima dela. Talvez Tebas saísse imediatamente da desgraça e a esfinge voasse para outras terras; talvez Laio e Jocasta, mãe e esposa de Édipo, ficassem bem e não sofressem tanto quanto Rostã e Tahmineh, mãe de Sohrab, sofreram a perda de seu filho. (Afinal, diferente deles, os nobres de Tebas tinham para si que, se não matassem o pequeno Édipo, ele acabaria por matar o pai e se casar com a mãe – o que de fato aconteceu –, como sentenciou o oráculo.)

É difícil imaginar. Rostã não arrancou os olhos da face, não chegou a ser tão dramático, mas amaldiçoou seu próprio nome, se recusou a voltar a ser feliz, pôs fogo em seus espólios de guerra, em sua tenda, em sua sela e em suas armas; Tahmineh, como Jocasta, enlouqueceu e não demorou a se encontrar com o filho no mundo dos mortos. Fora da tragédia, talvez pudéssemos pensar em um Complexo de Rostã, se Sigmund Freud tivesse lido primeiro a tragédia iraniana, no qual, para compensar o desejo de matar o pai e se casar com a mãe, o sujeito abandona a mulher e mata o filho. (Bárbaro não?!)

Brincadeiras e especulações à parte, o que parece aproximar com mais força o caso de Édipo ao de Rostã é o sofrimento que ambos sentiram ao descobrir o que fizeram com seus parentes, a mesma autocondenação do ato parricida e filicida, respectivamente. Não sei se porque minha leitura da tragédia de Édipo está vencida, mas me senti muito mais comovido com a história de Sohrab e Rostã do que com a peça de Sófocles. Por isso mesmo, encerro esta publicação com a sugestão de leitura, e deixo abaixo duas edições integrais do texto de Ferdusi.

Conto – “O coelho sem pelos de Inaba”, um mito japonês tradicional

O Deus-das-Grandes-Terras tinha muitos irmãos por parte de pai e todos eles resolveram ceder o comando de suas respectivas terras para ele. Essa atitude tinha uma motivação muito forte…

Na verdade, os irmãos pretendiam casar com Yagami, a Princesa-das-Regiões-Prósperas, que morava em Inaba, um local muito distante. Quando se dirigiam em comitiva para lá, obrigaram o Deus-das-Grandes-Terras a carregar sozinho todas as provisões e bagagens.

Assim que os irmãos chegaram ao cabo de Keta, já na região de Inaba, encontraram um coelho completamente sem pelos estirado no chão. Os deuses deram o seguinte conselho a ele:

– Tome um banho de mar e, em seguida, suba até o cume da montanha mais alta. Ao chegar lá, deite-se no chão e deixe que o vento toque seu corpo.

O coelho seguiu todas as recomendações, com a esperança de recuperar seu pelo. Só que, conforme a água do mar evaporava e o corpo dele era tocado pelo vento, a pele rachava. As rachaduras provocavam uma dor tão intensa que o coelho, desesperado, se pôs a chorar.

O Deus-das-Grandes-Terras, que, exausto pelo peso que carregava, caminhava distante dos outros e não vira o que se passara, ao avistar o coelho perguntou:

– Coelhinho, por que você chora?

O coelho respondeu entre lágrimas:

– Eu estava na ilha de Oki e queria muito chegar até aqui, mas não conseguia. Então, resolvi enganar um tubarão e lhe propus uma disputa: “Vamos fazer uma aposta? Qual espécie você acha que é a mais numerosa, a minha ou a sua? Traga todos os da sua espécie e os enfileire desta ilha até o cabo de Keta. Eu saltarei por cima de vocês para contá-los e, assim, ao final, saberemos se há mais tubarões ou coelhos”. Consegui enganar o tubarão! Enquanto os contava, ia atravessando o oceano. Quando estava prestes a chegar desta lado, gritei: “Ei, seus tubarões bobões! Peguei vocês!”. Mal consegui pronunciar a frase e o último da fila me agarrou e arrancou minha pele! Estava eu chorando, lamentando o ocorrido, quando os deuses que acabaram de passar me aconselharam a tomar um banho de mar e ficar deitado aqui em cima até que o vento me secasse. Segui todas as recomendações, mas agora meu corpo está cheio de feridas! – lamentou o coelho.

Após ouvir o relato, o Deus-das-Grandes-Terras, mostrando sabedoria para ajudar os enfermos e conhecimento em plantas medicinais, aconselhou:

– Vá rapidamente a um estuário e tome um banho de água fresca. Em seguida, retire o pólen das flores de taboa, que nascem em abundância por aqui, espalhe-o no chão e role sobre ele Assim você voltará a ter pelos.

Ao seguir os conselho do Deus-das-Grandes-Terras, o corpo do coelho voltou a ser como antes e, assim, ele se popularizou como o Coelho Branco de Inaba. Ainda hoje, é conhecido como Deus-Coelho. Em agradecimento, o coelho profetizou:

– Nenhum dos irmãos do Deus-das-Grandes-Terras desposará a Princesa-das-Regiões-Prósperas. Embora hoje ele carrega a bagagem deles, num gesto humilde e subalterno, certamente é esse Deus que a desposará.

Foi então que o Deus-das-Grandes-Terras ficou conhecido como Oonamudi-no-Kami, o Digno-Deus-das-Terras.


Está é uma das narrativas que fazem parte do ciclo de histórias sobre o Ookuni Nushi no Kami – ou Deus das Grandes Terras –, uma divindade da mitologia japonesa. O texto que reproduzimos aqui está presente no livro A origem do Japão: Mitologia da Era dos Deuses, escrito por Nana Yoshida e Lica Hashimoto, publicado pela antiga Editora Cosac Naify.

Conto – “Nuvens”, de Graciliano Ramos

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, A quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou.

Houve uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi muitas caras, palavras insensatas. Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, andava em dois ou três anos. A recordação de uma hora ou de alguns minutos longínquos não me faz supor que a minha cabeça fosse boa. Não. Era, tanto quanto posso imaginar, bastante ordinária. Creio que se tornou uma péssima cabeça. Mas daquela hora antiga, daqueles minutos, lembro-me perfeitamente.

Achava-me numa vasta sala, de paredes sujas. Com certeza não era vasta, como presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas. Contudo pareceu-me enorme. Defronte alargava-se um pátio, enorme também, e no fim do pátio cresciam árvores enormes, carregadas de pitombas. Alguém mudou as pitombas em laranjas. Não gostei da correção: laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam.

A sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam folhas de papel e esgoelavam-se:

— Um b com um a b, a: ba; um b com um e — b, e: be.

Assim por diante, até u. Em escolas primárias da roça ouvi cantarem a soletração de várias maneiras. Nenhuma como aquela, e a toada única, as letras e as pitombas convencem-me de que a sala, as árvores, transformadas em laranjeiras, os bancos, a mesa, o professor e os alunos existiram. Tudo é bem nítido, muito mais nítido que o vaso. Em pé, junto ao barbado, uma grande moça, que para o futuro adquiriu os traços de minha irmã natural, tinha nas mãos um folheto e gemia:

— A, B, C, D, E.

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos desceram ao quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também. Resisti: o degrau que me separava do terreiro era alto demais para as minhas pernas. Transportaram-me — e adormeci, não cheguei a pisar no barro vermelho. Acordei numa espécie de cozinha, sob um teto baixo, de palha, entre homens que vestiam camisas brancas. Um deles perguntou como se havia de assar o bacalhau e outro respondeu:

— Faz-se um grajau de madeira.

Grajau? Que seria grajau? Tornei a mergulhar no sono, um sono extenso.

Disseram-me depois que a escola nos servira de pouso numa viagem.

Tínhamos deixado a cidadezinha onde vivíamos, em Alagoas, e entrávamos no sertão de Pernambuco, eu, meu pai, minha mãe, duas irmãs. Mas pai e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma natural, mais velha que eu, a outra legítima, direita, dois anos mais nova, eram manchas paradas.

Positivamente havia pitombas e um vaso de louça, esguio, oculto atrás de um móvel a que a experiência deu o nome de porta. Surgiram repentinamente a sala espaçosa, o velho, as crianças, a moça, bancos, mesa, árvores, sujeitos de camisas brancas. E sons estranhos também surgiram: letras, sílabas, palavras misteriosas. Nada mais.

E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro.

Passam através desses rasgões figuras indecisas: Amaro Vaqueiro, caboclo triste, encourado num gibão roto;  Sinha Leopoldina, companheira dele, vistosa na chita cor de sangue; mulheres que fumavam cachimbo. Mais vivo que todos, avulta um rapagão aprumado e forte, de olhos claros, risonho.

Calçava alpercatas, vestia a camisa branca de algodão que usa o sertanejo pobre do Nordeste, áspera, encardida, ordinariamente desabotoada, as pontas das aberturas laterais presas em dois nós. Chamava-se José Baía e tornou-se meu amigo, com barulho, exclamações, onomatopéias e gargalhadas sonoras.

Sentado, escanchava-me nas pernas e sacudia-me, sapateava, imitando o galope de um cavalo; em pé, segurava-me os braços, punha-se a rodopiar, cantando:

Eu nasci de sete meses, 
Fui criado sem mamar. 
Bebi leite de cem vacas 
Na porteira do curral

Quando me soltava, eu cambaleava, zonzo. Um dia, livre dos giros vertiginosos, saí aos tombos, esbarrei com um esteio e ganhei um calombo grosso na testa.

Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou.

Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio. A cabeçada valente que dei, solto das garras de José Baía, firmou o copiar, sustentado por colunas robustas, de aroeira ou sucupira. Ali perto era a sala, de janelas sempre fechadas, armas de fogo e instrumentos agrícolas pelos cantos, arreios suspensos em ganchos, teias de aranha, a rede segura em armadores de pau, grosseiros caixões verdes, depósitos de cereais, se não me engano. No corredor desembocavam camarinhas cheias de treva e a sala de jantar. A cozinha desapareceu, mas o quintal subsiste, duro e nu, sem flores, sem verdura, tendo por único adorno, ao fundo, junto a montes de lixo, um pédeturco, ótimo para a gente se esconder nas perseguições. Desse lado o pédeturco marcava o limite do mundo. Do outro lado a terra se estendia por longas distâncias. A casa, de material rijo, estava completa por dentro. Mas exteriormente havia nela singularidades. O oitão esquerdo era de altura incrível; à direita faltava oitão, não sei como o telhado podia equilibrar-se. Talvez currais e chiqueiros, construídos na vizinhança, ocultassem um dos muros. Chiqueiros e currais esvaíram-se.

Durante um redemoinho brabo notei esquisitices. Nuvens de poeira enrolaram-se em briga feia, escureceu, um rumor diferente dos outros rumores cresceu, espalhou-se, e no meio da terrível desordem um couro de boi espichado quebrou o relho que o amarrava a um galho e voou no turbilhão. Uma senhora magra, minha indistinta mãe, tentou com desespero fechar uma porta balançada pela ventania. Folhas e garranchos entraram na sala, um bicho zangado soprou ou assobiou, a mulher agitou-se pendurada na chave. Findo o despropósito, vi a pessoinha com a mão envolta em panos. Um dedo inchou demais, e foi necessário que lhe cortassem o anel com lima. Em seguida perdi a moça de vista. E a letargia continuou.

O pátio, que se desdobrava diante do copiar, era imenso, julgo que não me atreveria a percorrê-lo. O fim dele tocava o céu. Um dia, entretanto, achei-me além do pátio, além do céu. Como cheguei ali não sei. Homens cavavam o chão, um buraco se abria, medonho, precipício que me encolhia apavorado entre montanhas erguidas nas bordas. Para que estariam fazendo aquela toca profunda? Para que estariam construindo aqueles montes que um pó envolvia como fumaça? Retraí-me na admiração que me causava o extraordinário formigueiro. As formigas suavam, as camisas brancas tingiam-se, enegreciam, ferramentas cravavam-se na terra, outras jogavam para cima o nevoeiro que formava os morros.

Nova solução de continuidade. As sombras me envolveram, quase impenetráveis, cortadas por vagos clarões: os brincos e a cara morena de Sinha Leopoldina, o gibão de Amaro Vaqueiro, os dentes alvos de José Baía, um vulto de menina bonita, minha irmã natural, vozes ásperas, berros de animais ligando-se à fala humana. O moleque José ainda não se tinha revelado. Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as finas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas — e os meus receios esmoreciam. As grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos.

O vozeirão que as comandava perdia a aspereza, um riso cavernoso estrondava — e os perigos ocultos em todos os recantos fugiam, deixavam em sossego os viventes miúdos: alguns cachorros, um casal de moleques, duas meninas e eu.

De repente surgiu a terceira irmã, insignificância, nos braços de Sinha Leopoldina. Não fiz caso disso.

O que então me pasmou foi o açude, maravilha, água infinita onde patos e marrecos nadavam. Surpreenderam-me essas criaturas capazes de viver no líquido. O mundo era complicado. O maior volume de água conhecido antes continha-se no bojo de um pote — e aquele enorme vaso metido no chão, coberto de folhas verdes, flores, aves que mergulhavam de cabeça para baixo, desarranjava-me a ciência. Com dificuldade, estabeleci relação entre o fenômeno singular e a cova fumacenta. Esta, porém, fora aberta numa região distante, e o açude se estirava defronte da casa. Estava ali, mas tinha caprichos, mudava de lugar, não se aquietava, era uma coisa vagabunda.

A vazante das abóboras, por exemplo, ficava longe. Sozinho, não me seria possível atingi-la. Dez ou vinte aboboreiras na terra de aluvião. Amaro havia dito que uma bastava. Se o inverno viesse, aquele despotismo seria estrago; chegando a seca, não se colheria um fruto, ainda que enterrassem na lama todas as sementes. Meu pai desprezou o conselho do caboclo — e o resultado foi uma praga de abóboras. A princípio uns cordõezinhos se torceram na vaza, enfeitaram-se de botões amarelos, de pequenas cabaças. Um homem carrancudo examinava-as, marchando vagaroso. Era um meu tio, hóspede, convidado para ser padrinho da insignificância que berrava nos cueiros.

Ofereceu-me uma caixa de fogos de artifícios, desapareceu — e no ponto onde o conheci as vergônteas floridas engrossaram, tornaram-se cordas robustas, peludas. E as abóboras cresceram, tantas que a gente andava na roça pisando em cima delas. Juntavam-se, enganchavam-se duas, três, num bloco, figuravam bela calçada movediça. Os caçuás enchiam-se. Acomodava-me numa carga e lá nos íamos sacolejando, eu e o animal, em caminhos esburacados. Abarrotaram-se os caixões da sala, fizeram-se tulhas no alpendre, nos quartos. E a produção levantava-se, espalhava-se, desvalorizada. Escancararam-se afinal as porteiras, houve licença para que toda a gente se abastecesse. Franqueza vã: saciada a população escassa, empanzinada a meia dúzia de porcos da fazenda, a safra inútil apodreceu no campo.

Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se. Na harmonia conjugai a voz dele perdia a violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no cocuruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém, ranger de dobradiça ou choro de criança, lhe restituía o azedume e a inquietação.

Zangava-se ouvindo alguém afastar-se da sua prosódia curiosa. Suponho que nunca houve outra igual. A sintaxe e o vocabulário também diferiam bastante do que usamos comumente. Nessa linguagem capenga, D. Maria matracava um longo romance de quatro volumes, lido com apuro, relido, pulverizado, e contos que me pareciam absurdos. De um deles ressurgem vagas expressões: tributo, papa-rato, maluquices que vêm, fogem, tornam a voltar.

Tento arredá-las, pensar no açude, nos mergulhões, nas cantigas de José Baía, mas os disparates me perseguem. Lentamente adquirem sentido e uma historieta se esboça:

Acorde, seu papa. ..

Papa quê? Julgo a princípio que se trata de papa-figo, vejo que me engano, lembro-me de papa-rato e finalmente de papa-hóstia. É papa-hóstia, sem dúvida:

Acorde, seu Papa-hóstia, 
Nos braços de...

Nova pausa. Três ou quatro sílabas manhosas dissimulam-se obstinadas.

Despontam algumas, que experimento e abandono, imprestáveis. Enquanto procuro desviar as idéias, a impertinência se insinua no meu espírito, arrasta-me para a sala escura, cheia de abóboras. Subitamente as fugitivas aparecem e com elas o início da narrativa:

Acorde, seu Papa-hóstia, 
Nos braços de Folgazona.

Aí temos uma alteração:

Levante, seu Papa-hóstia, 
Dos braços de Folgazona.

Outra emenda. O hábito de corrigir a língua falada instiga-me a consertar o primeiro verso:

Levante-se, Papa-hóstia.

Vacilo um minuto, buscando cá por dentro a forma exata da composição.

Persuado-me enfim de que minha mãe dizia:

Levante, seu Papa-hóstia.

E repete-se a aventura seguinte, que D. Maria recitava embalando-se na rede, perto dos caixões verdes. Um menino pobre foi recebido caridosamente em casa de certo Vigário amancebado. Temendo ver na rua os seus podres, o Reverendo ensinou ao pequeno uma gíria extravagante que baldaria qualquer indiscrição possível. Afirmou que se chamava Papa-hóstia e à amante deu o nome de Folgazona; gato era papa-rato, fogo era tributo. Esqueci o resto, e não consigo adivinhar por que razão tributo serviu para designar fogo. Seguros de que o rapaz não os denunciaria, o padre e a rapariga começaram a maltratá-lo.

Não se mencionou o gênero dos maus tratos, mas calculei que deviam assemelhar-se aos que meus pais me infligiam: bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas. Acostumaram-me a isto muito cedo — e em consequência admirei o menino pobre, que, depois de numerosos padecimentos, realizou feito notável: prendeu no rabo de um gato um pano embebido em querosene, acendeu-o, escapuliu-se gritando:

Levante, seu Papa-hóstia, 
Dos braços de Folgazona. 
Venha ver o papa-rato 
Com um tributo no rabo.

Falta meia dúzia de linhas, não chego a reconstituí-las. Sei que, tendo-se queimado roupas e móveis, a história finda assim, furiosamente:

Acuda com todos os diabos.

Esta obra de arte popular até hoje se conservou inédita, creio eu. Foi uma dificuldade lembrar-me dela, porque a façanha do garoto me envergonhava talvez e precisei extingui-la. Ouvindo a modesta epopéia, com certeza desejei exibir energia e ferocidade. Infelizmente não tenho jeito para violência.

Encolhido e silencioso, aguentando cascudos, limitei-me a aprovar a coragem do menino vingativo. Mais tarde, entrando na vida, continuei a venerar a decisão e o heroísmo, quando isto se grava no papel e os gatos se transformam em paparatos. De perto, os indivíduos capazes de amarrar fachos nos rabos dos gatos nunca me causaram admiração. Realmente são espantosos, mas é necessário vê-los à distância, modificados.


“Nuvens” é uma das narrativas que compõem o livro Infância, escrito e publicado por Graciliano Ramos, em 1945. A versão que reproduzimos aqui foi tirada da edição da editora Record, em sua 11ª edição, de 1976. O livro já recebeu uma análise especializada aqui no blog, escrita pelo autor Alexandre Fonseca, que discorre sobre o tema da narrativa memorialística.

Violão em harmonia: uma valiosa aula de Paulinho Nogueira

Enquanto escrevia um artigo, deixando a playlist do Youtube Music rodar, eis que de repente escuto uma gravação antiga, o som um tanto quanto sujo, que eu já tinha ouvido não sei nem em qual altura da vida. Parei o teclado e fui ao reprodutor para ver o que estava ouvindo, e foi então que vi Paulinho Nogueira tocando “Samba em prelúdio”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell, em uma versão única e completamente instrumental dessa canção. Esse pequeno fragmento de vídeo me deixou muito interessado, por isso, me lancei na pesquisa de materiais relacionados a ele e finalmente descobri o Violão em harmonia, uma gravação de mais ou menos uma hora, na qual Paulinho Nogueira explica, misturando teoria e prática, alguns conceitos musicais relacionados à harmonização.

Método para violão [clique na imagem]

Não sei quando isso aconteceu – digo, quando assisti pela primeira vez ao Violão em harmonia – e também não sei o quanto aprendi daquilo que Paulinho explicava, porque, além de jovem, eu entendia bulhufas de teoria musical e de violão erudito. (Na verdade, ainda hoje continuo apenas “arranhando”/arriscando o violão e a teoria musical em geral.) Mas essa obra prima em formato de vídeo se tornou muito querida por mim, a ponto de eu adquirir uma cópia sua e decidir disponibilizá-la aqui no Duras Letras, já que sempre existe o risco de o vídeo desaparecer do Youtube.

Não se trata apenas de um material didático para músicos: Violão em harmonia é, antes de tudo, um show de Paulinho Nogueira, feito em formato de conversa, no aconchego de sua casa. Enquanto estamos na plateia, “do outro lado”, tomando um café, ou escrevendo artigos, Paulinho nos conduz pela seara da canção popular, relembrando nomes como Noel Rosa, João Gilberto, Tom Jobim, Cartola e Ernesto Nazareth, tentando enfiar em nossa cabeça distraída qualquer tantinho da especificidade de cada um desses músicos ímpares e de sua importância para uma história nacional do violão.

Então, se você gosta de canção, teoria musical ou de simples simpatia de um senhor muito jeitoso, dê play no vídeo abaixo e confira, em versão integral, o Violão em harmonia.

Violão em harmonia – Paulinho Nogueira [Completo]

Conto – “Estraven, o Traidor”, de Ursula K. Le Guin

Trata-se de uma lenda da região leste de Karhide, como foi contada em Gorinhering por Tobord Chorhawa e mais tarde registrada por Genly Ai, o Enviado. É uma história bem conhecida, tem diversas versões e há uma peça de teatro baseada nela e representada por grupos folclóricos ambulantes, no leste do Kargav.

Há muito tempo, antes da época de Argaven I, que unificou Karhide num reino único, havia inimizade de sangue entre o domínio de Stoke o domínio de Estre, na Terra de Kerm. Essa rivalidade se manteve através de saques e emboscadas durante três gerações, e não havia jeito de se apaziguarem, pois eram disputas em torno de terras. As terras férteis são abundantes em Kerm e o orgulho de um domínio reside na extensão de suas fronteiras, e os senhores das terras em Kerm são homens orgulhosos e suscetíveis, que vivem num ambiente sombrio.

Aconteceu então que o jovem herdeiro carnal do Lorde de Estre — da linhagem de Estraven —, ao esquiar no lago de Icefort, no mês de Irem, numa caçada de pesthry, chegou a um local em que a camada de gelo era fina e esta, com seu peso, rompeu-se e ele afundou no lago. Lutando contra o gelo, ele conseguiu emergir daquela água glacial e usou um esqui como alavanca sobre a borda mais firme do lago; suas condições, porém, eram péssimas, pois, molhado da cabeça aos pés, ficou exposto ao kurem. E a noite se aproximava.

Estre situava-se a oito milhas acima da encosta, e assim ele perdeu as esperanças de alcançá-la; dirigiu-se, com dificuldade, para o vilarejo de Ebos, na margem norte do lago. À proporção que anoitecia, um nevoeiro ia baixando das vertentes geladas e recobrindo o lago; tornando-se impossível encontrar a direção, ele nem sequer sabia para onde dirigir seus esquis. Continuou caminhando cuidadosamente com receio do gelo fino, tentando, ao mesmo tempo, agitar-se porque sabia que, gelado como estava até a medula dos ossos, em breve não se locomoveria mais. Finalmente, através da cerração intensa, vislumbrou uma luz incerta. Retirou os esquis, pois o terreno já estava áspero para deslizar e a neve era rala em muitos lugares. Suas pernas mal o sustentavam, mas o jovem reuniu toda a sua energia para chegar até a luz. Era uma cabana de floresta, rodeada de thore, única espécie de árvore que cresce nos bosques de Kerm. Bateu na porta com força e gritou por socorro; alguém abriu a porta e o levou até o calor do fogo. Não havia mais ninguém, apenas esta pessoa. Aproximou-se do jovem, e tirou-lhe a roupa encharcada, uma verdadeira armadura congelada. Depois o ajudou a deitar-se despido no leito quente, nas cobertas de pele, e com seu próprio corpo aqueceu-lhe os pés, as mãos, o rosto, e, a seguir, deu-lhe cerveja quente para beber. Afinal, recuperando a circulação, ele olhou para aquele que cuidava dele. Era um estrangeiro, mas tão jovem quanto ele. Olharam-se. Ambos eram graciosos, fortes de constituição, de traços delicados, morenos e de bela postura. O jovem de Estre percebeu que o fogo de kemmer estava marcado no rosto do outro. E falou:

— Eu sou Arek, de Estre, da linhagem Estraven.

— E eu — respondeu o outro — sou Therem, de Stock.

Então o jovem Arek de Estre esboçou um sorriso triste e disse, num murmúrio ainda fraco:

— Você me aqueceu e devolveu-me a vida para matar-me, Therem de Stok?

— Não! — respondeu firme o outro.

E estendendo a mão, tomou a mão de Arek procurando sentir se a frieza já havia desaparecido de seu corpo. A este contato, embora Arek estivesse ainda se aproximando do seu kemmer, ele sentiu o fogo do amor despertar em seu íntimo. Por algum tempo ficaram assim, imóveis, tocando-se nas mãos.

— Elas são iguais — disse Therem, e colocando a palma de sua mão de encontro à do outro, mostrou que ambas eram iguais em tamanho e forma, dedo por dedo, tão idênticas como as mãos de uma mesma pessoa.

— Eu nunca o vi antes… — disse Therem.

— Somos inimigos mortais… — respondeu Arek.

Surpreendido, ele se ergueu, ajeitou o fogo da lareira e voltou para junto de Arek.

— Somos inimigos mortais — murmurou Arek —, mas eu juraria kemmering com você. — E eu com você — retrucou o outro.

Assim, juraram laços eternos um com o outro e, justamente, nas terras de Kerm. Naquela época, como agora, aquele voto de fidelidade não podia ser quebrado nem substituído. Permaneceram juntos por alguns dias na cabana, às margens geladas do lago.

Certa manhã, um grupo de caçadores de Stok chegou à cabana. Um deles conhecia Arek de vista; nada disse. Repentinamente puxou seu punhal e, diante de Therem, esfaqueou o jovem na garganta e no peito. Ele caiu morto, banhado em sangue, ao pé da lareira.

— Ele era o herdeiro de Estre! — gritou o assassino.

— Ponha-o no trenó e leve-o à terra dele para ser enterrado lá! — ordenou Therem. E, abatido, deixou a cabana e voltou para Stok.

Mas os homens que partiram com o corpo de Arek no trenó abandonaram-no na floresta para ser comido pelas feras e retornaram, na mesma noite, para Stok. Therem compareceu em pessoa ante seu pai carnal, Lorde Harish rem ir Stokven, e interrogou os caçadores que tinham voltado da missão não cumprida:

— Obedeceram às minhas ordens?

— Obedecemos, senhor.

Mas Therem retrucou:

— Mentira! Se tivessem ido lá, jamais voltariam com vida das terras de Estre! Estes homens desobedeceram às minhas ordens e mentiram para ocultar sua insubordinação. Eu exijo seu banimento.

Lorde Harish o atendeu e eles foram expulsos de seus lares e perderam seus direitos.

Pouco tempo depois destes acontecimentos, Therem deixou os domínios e passou a residir no Monastério Rotherer. Só um ano mais tarde voltou a Stok. Naquele verão, no domínio de Estre, procuraram por Arek nas montanhas e planícies; por fim puseram luto por ele e lamentaram sua morte durante todo o verão e todo o outono, pois ele era o filho único do seu senhor.

No fim do mês de Therm, quando o inverno recobria, com seu pesado manto glacial, a superfície da terra, um homem desceu a encosta da montanha, em esqui, e entregou ao guardião do portão de Estre um vulto envolvido em peles, dizendo:

— Este é Therem, o filho do filho do senhor de Estre.

Logo em seguida desapareceu para o lado das montanhas, antes mesmo que alguém pensasse em detê-lo.

Embrulhado nas peles estava um recém-nascido chorando. Levaram a criança a Lorde Sorve e repetiram as palavras do forasteiro. O velho senhor, cheio de dor, viu nas feições da criança seu filho morto, Arek. Ordenou que o criassem como filho do lar e conservassem o nome de Therem, apesar de este nome nunca ter sido usado por seu clã.

A criança cresceu graciosa, elegante e forte; era morena e silenciosa. Todos encontravam nela muita semelhança com o falecido Arek. Adolescente, Lorde Sorve, na generosidade da velhice, nomeou-o herdeiro de Estre. Houve, então, corações partidos entre os filhos de kemmering de Lorde Sorve, todos homens fortes, no auge da pujança, e que haviam esperado por aquela regalia. Prepararam uma emboscada contra o jovem Therem e quando este saiu para caçar, no mês de Irrem, tentaram pegá-lo. Mas Therem não seria apanhado desprevenido. Atirou em dois irmãos de criação e os atingiu, apesar do espesso nevoeiro que recobria o lago. Com o terceiro, ele lutou a faca e o matou, por fim, ficando muito ferido no peito e no pescoço, com cortes profundos da luta. Permaneceu ao lado do corpo do meio-irmão morto ali no gelo e viu que a noite caía. Tornava-se fraco e nauseado à proporção que o sangue se lhe esvaía pelos ferimentos. Pensou, então, em dirigir-se a Ebos, em busca de socorro. Mas, na crescente escuridão, perdeu seu caminho e chegou à floresta de thore, na margem oriental do lago. Vendo ali uma cabana abandonada, entrou e, muito enfraquecido para acender o fogo, caiu sobre as pedras frias da lareira, e lá ficou, com as feridas sangrando.

Alguém veio à noite, um homem sozinho. Parou à soleira e ficou quieto, contemplando o homem ensanguentado na lareira. Entrou, então, apressadamente e fez uma cama de peles tiradas de uma velha arca, acendeu o fogo e fez curativos nos ferimentos de Therem. Quando ele viu o jovem olhar para ele, disse:

— Eu sou Therem de Stok.

— E eu sou Therem de Estre.

Houve um silêncio entre ambos. Então o jovem sorriu:

— Você tratou dos meus ferimentos para me matar, Stokven?

— Não — disse o mais velho.

— Como aconteceu que você, o Lorde de Stok, esteja aqui, sozinho, nesta terra em litígio?

— Eu venho muito aqui — replicou Stokven.

Procurou o pulso do jovem e sua mão para ver se tinha febre; por um instante a palma de sua mão se colocou contra a palma da mão do jovem, dedo por dedo; ambas eram iguais, como as mãos de um mesmo homem.

— Somos inimigos mortais — disse Stokven.

— Assim é, mas eu nunca o vi antes.

Stokven desviou o rosto para o lado e continuou:

— Eu já o vi, há muito tempo. Meu maior desejo é que haja paz entre nossas casas.

— Jurarei paz com você — respondeu o jovem Therem. Assim fizeram e não falaram mais, adormecendo, em seguida, o ferido. Pela manhã, o senhor de Stokven tinha ido embora. Um grupo de gente do vilarejo chegou à cabana e levou Therem de volta para seu lar, em Estre. Aí, ninguém ousou se opor à vontade do senhor, cuja decisão havia sido consumada, a sangue, no lago gelado. Por morte de Sorve, Therem tornou-se o senhor de Estre. Dentro de um ano, ele terminou com a velha rivalidade, dando metade das terras em litígio para o domínio de Stok. Por isto e pelo assassinato de seus irmãos de criação, ele passou a ser chamado Estraven, o Traidor. Entretanto, seu primeiro nome, Therem, continuou sendo dado às crianças desse domínio.


Esta história é um fragmento do livro A mão esquerda da escuridão, escrito e publicado por Ursula K. Le Guin em 1969. A versão que reproduzimos aqui foi tirada da edição da editora Círculo do Livro S. A., com tradução de Terezinha Eboli e Yeda Salles. O livro, porém, foi reeditado em 2019, saindo com nova produção gráfica e nova tradução, feita por Susana L. de Alexandria, pela Editora Aleph. Na narrativa geral do romance de Le Guin – que trata das aventuras de Genry Ai, um terráqueo, enviado a um planeta glacial chamado Inverno –, a autora mescla alguns gêneros, entre os quais figuram histórias como a de “Estraven, o Traidor”, que mimetiza os mitos ou lendas tradicionais.

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