Amarrados pela pátria: três belos poemas em português

Eu estava perdido entre as imagens e textos do Instagram, quando parei para ler o fragmento de uma canção, recortada e postada por um amigo (e também autor aqui no blog): o pesquisador Otávio Moraes, grande leitor e escritor exemplar de nossas belas letras. A foto dele era a reprodução de um trecho de “Língua”, famigerada música de Caetano Veloso, que deixo aqui, para servir de ruído de fundo às palavras suscitadas pela publicação de Otávio.

A proposta principal deste post é apresentar três poemas amarrados pelo signo da pátria: tema tão delicado a nós que vivemos essa lenta catástrofe do mundo contemporâneo – o mundo dos embargos e das diásporas, o mundo que definha cada dia um pouco mais, nas mãos de presidentes, facções e bancos. Mas antes de passar aos poemas propriamente escritos, gostaria de fazer uma breve contação (entre ficção e fato), para dar tempo não só de terminar a reprodução da canção, como também para contextualizar meu encontro com os versos que vou colocar adiante.

Pois bem, começo destacando que – à parte o relato pessoal de Otávio, que serve de legenda à foto postada em seu perfil – o trecho emprestado de Caetano é o seguinte:

E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua

O que me fisgou foram justamente os últimos versos: “E deixe os Portugais morrerem à míngua / Minha pátria é minha língua”, que, martelando em minha memória, fizeram de mim um inseto preso àquela teia de informações que a aranha da vida acabou tecendo, depois de tanto tempo aqui dentro da cabeça vazia. De repente, eu estava ali, diante dessa aranha, que amarrava outro verso àqueles últimos que li:

A pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações

E lá se foi uma manhã inteira, mastigando o tal verso, tentando adivinhar a autoria, porque têm horas que leitor é bicho orgulhoso e, contrariando a facilidade da internet, se empoleira na estante no exercício meticuloso de refazer os passos e as palavras que já leu. Sabia que era poeta de minha pátria (escrevia em português, é claro), mas quem podia ser? Perguntei à minha companheira, que também não se lembrava ou conhecia, e, daí, fui aos livros, tentando arrancar os segredos desde as lombadas.

Sempre que folheava e não encontrava nada parecido, eu me sentia exilado daquilo que restava só como algo familiar, mas pouco concreto, e quase cedi à vontade de ligar o computador e googlar aquelas poucas palavras de que me lembrava. Mas, apesar da demora do tomo a tomo, quando finalmente recuperei a possível origem daquele verso, o que encontrei foi uma surpresa feliz. Eu estava enganado: não se tratava apenas de um poema de qualquer brasileiro, na verdade, o verso se abriu em três joias raras de nossa seara lusófona, misturadas e picotadas pelo cotidiano e guardadas na forma simples que a memória encontrou: um pouco de “pátria” mais “língua” mais uns verbos mais umas nasais.

Eram três! Mário de Andrade, Rui Knopfli e Jorge de Sena… três nomes, três países, três continentes. Uma língua, uma pátria. O fato de serem poetas de lugares distintos reforçava a ideia que se fazia presente nos seus poemas e versos: o idioma como uma camisa, como a própria identidade (nacional e pessoal). Daí, o que antes era “a pátria é a língua em que escrevo por acaso de gerações” se tornou:

Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der (Mário de Andrade – Brasileiro)
Pátria é só a língua em que me digo (Rui Knopfli – Moçambicano)
A pátria é a língua que escrevo por acaso de gerações (Jorge de Sena – Português)

Cada um deles pediria uma análise atenta e pausada, a que não me proponho nesta publicação. Por isso, faço só uma pequena consideração final, porque, ainda que me sinta compatriota de tão belos versos e poetas, tento não esquecer o lugar que ocupa essa nossa língua, o português (língua de colonizadores), que traz consigo toda uma tradição altissonante ocidental, e muitas vezes bárbara, construída a preço de muitas e muitas “outras pátrias”.

É isso… Contada a anedota e desenovelada essa divagação curta, deixo vocês na companhia dos poemas, dos poetas, da pátria que pode e que quer ser língua.

O poeta come amendoim, de Mário de Andrade

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurús conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta república temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...

Estou com desejos de desastres...
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na cangerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.

Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.
Pátria, de Rui Knopfli

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.
Em Creta, com o Minotauro, de Jorge de Sena 

I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.


II


O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.



III


É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV


Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.


V


Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.

Conto – “Azrael e o príncipe”, de Ohran Pamuk

“Há muito tempo, havia um príncipe igual ao seu”, começou ele.

O príncipe era filho primogênito e favorito do rei. O rei amava muito o filho, fazia-lhe todas as vontades e promovia banquetes e festas em sua homenagem. Um dia, durante uma dessas festas, o príncipe viu um homem de barba preta e semblante sombrio ao lado de seu pai e percebeu que se tratava de Azrael, o anjo da morte. Os olhares do príncipe e de Azrael se cruzaram, e eles se fitaram surpresos. Depois da festa, o príncipe, aflito, disse ao pai que Azrael estava entre os convidados e que com certeza estava atrás dele: o príncipe percebera isso no semblante do anjo.

O rei ficou com medo: “Vá direto para a Pérsia, não conte nada a ninguém, mas esconda-se no palácio de Tabriz”, ele disse ao filho. “O xá de Tabriz é nosso amigo; ele não vai deixar ninguém pegar você.”

Então o príncipe foi enviado à Pérsia imediatamente. Depois disso, o rei deu outra festa e convidou o sombrio Azrael, como se nada tivesse acontecido.

“Meu rei, vejo que seu filho não está aqui esta noite”, disse Azrael, mostrando-se preocupado.

“Meu filho está na flor da juventude”, disse o rei. “Ele vai ter uma vida longa, se Deus quiser. Por que você pergunta por ele?”

“Três dias atrás, Deus me mandou ao palácio do xá de Tabriz, na Pérsia, para pegar seu filho, o príncipe!”, disse Azrael. “Foi por isso que fiquei muito surpreso e feliz ao vê-lo ontem aqui em Istambul. Seu filho viu o modo como olhei para ele, e acho que entendeu o que significava.”

Azrael deixou o palácio imediatamente.


Esta é uma famosa narrativa da cultura árabe, que aparece recontada nos livros religiosos islâmicos, e que ganhou algumas variações literárias. A versão aqui apresentada, por exemplo, foi redigida pelo autor turco Ohran Pamuk, sendo uma das muitas pequenas histórias que aparecem ao longo da obra A mulher ruiva, publicada pela editora Companhia das Letras, em parceria com a TAG – Experiências literárias, em 2021.

Deixamos, abaixo, uma suposta versão religiosa desta narrativa, um dos fragmentos do Corão. Infelizmente, não conseguimos determinar precisamente a fonte, portanto o texto é apresentado aqui apenas a título de curiosidade e não como material de pesquisa aprofundada.

Quando Asrael, o anjo da morte, passou certa vez por Salomão, dirigiu o olhar a um dos seus convivas. Este perguntou:

– “Quem é ele?”
– “O anjo da morte.” – respondeu Salomão.
– “Parece que ele pôs o olho em mim.” – continuou aquele. – “Por que não ordenas que o vento me leve daqui e me largue na Índia?”

Foi o que Salomão fez. Aí o anjo disse:

– “Se o fitei por tanto tempo, é porque ele me causou estranheza, uma vez que eu tinha ordens de buscar sua alma na Índia, ao passo que se encontrava contigo em Canaã.”

Esta história foi contada por Beidhawi, intérprete do Alcorão.

Poemas de amor: de Catulo para Lésbia e outros amantes

Caio Valério Catulo (c. 87-c. 54 a.C.) foi um poeta latino muito inventivo, apaixonado e de quem sabemos pouco. Dizem que nasceu em Verona e que viveu boa parte de sua vida em Roma, transitando entre personalidades importantes da política e da arte da época, em um período conturbado da história. Simultaneamente adolescente e maduro, Catulo amou a Clódia (sua Lésbia), uma mulher de família tradicional, com quem viveu encontros amorosos e a quem dedicou uma série de poemas de amor, mas também de escárnio, zombaria e de baixaria.

Como restaram apenas fragmentos da maior parte de seus antecessores e contemporâneos também poetas, alguns pesquisadores consideram que estes poemas escritos por Catulo para Lésbia e outros amores fazem parte da primeira obra consistente de poesia lírica latina – compõem o Liber Catulli (O livro de Catulo) –, que é uma possível antologia antiga, reunindo os poemas supostamente escritos pelo poeta de Verona.

Agora, fora toda essa lenga lenga histórica e contextual, para mim, Catulo é meu motivo latino, meu convite a conhecer sua língua (a da boca?) e uma de minhas paixões anacrônicas: é um poeta de meu cânone pessoal. Foi por esse motivo que decidi trazer um pequeno compilado com sete de seus poemas, especificamente aqueles em que o amor, às vezes debochado e violento, está em primeiro plano. As traduções são de João Angelo Oliva Neto, de sua versão integral da obra de Catulo: O livro de Catulo, publicado pela Edusp.

Espero que vocês aproveitem a leitura! ♥


5.

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores dos velhos mais severos,
a todos, voz nem vez daremos. Sóis
podem morrer ou renascer, mas nós quando breve morrer a nossa luz,
perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
muitos mil, depois outros sem fim, dá
mais mil ainda e enfim mais cem – então
quando beijos beijarmos (aos milhares!)
vamos perder a conta, confundir,
p’ra que infeliz nenhum possa invejar,
se de tantos souber, tão longos beijos.
7.

Perguntas, Lésbia, quantos beijos teus
bastam p'ra mim, e quantos são demais.
Quantos sejam os grãos de areia Líbica
a jazer em Círene, em láser fértil,
entre o templo de Júpiter ardente
e de Bato vetusto o sacro túmulo;
quantas estrelas dos homens testemunham
(furtivos), tantos beijos tu beijares
basta a Catulo, insano, e é demais.
Assim os curiosos não consigam 
computar nem más línguas pôr quebranto.
87.

Mulher alguma pode se dizer bastante 
amada quanto amada é por mim Lésbia.
Em pacto algum jamais houve tanta confiança
quanto a que em mim se viu em teu amor.
109.

Minha Vida!, me dizes que este nosso amor
será feliz aos dois, será eterno.
Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
que sincera e de coração o diga
e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.
14b.

Se acaso vós leitores sois
das minhas inépcias e as mãos
não vos repugnar ao tocar-nos, 
AFASTAI A SEVERIDADE
POIS VERSOS VIRÃO MAIS PICANTES

⚠️ Os poemas abaixo possuem linguagem sexual e obscena ⚠️

15.

A ti eu me confio e meus amores,
Aurélio, e de pudor eu peço vênia
pois se já desejaste algo em teu ânimo
que mantivesses casto e inteirinho, 
preserves em pudor este menino,
não digo das pessoas – delas nada
temo a passar na praça aqui e ali
com suas próprias coisas ocupadas.
Minha paúra és tu, e é o teu pau, 
fatal aos bons, fatal aos maus meninos;
por onde queiras, como queiras, leva-o,
quando saíres, pronto para tudo.
Só ele excluo, sim, pudicamente,
pois se uma ideia má ou louca fúria 
te impelir, pérfido, a tamanho crime 
de contra ele investir, outro eu,
então, ah!, infeliz e malfadado, 
pelos pés arrastado, por teu rabo
aberto vão passar mugens e rábãos.
32.

Peço minha, boa, doce Hipsitila, 
minhas delícias, meus encantos, pede 
que eu vá dormir a sesta junto a ti.
E se pedires cuida disto: que outro
não introduza entraves na portinha
nem queiras tu sair por aí fora.
Mas fica em casa e vai te preparando
para umas nove contínuas trepadas.
E se é que vais chamar-me, chama logo,
que almoçado, deitado, e satisfeito,
tanto a túnica eu furo quanto o manto.

Resenha – “A mão esquerda da escuridão”, de Ursula K. Le Guin

Ficção científica, política e de gênero

Não sei bem o que me levou a ler o livro A mão esquerda da escuridão, da escritora Ursula K. Le Guin, a não ser o fato de ter sido indicado por minha companheira, que o tinha lido para uma disciplina a respeito da ficção científica produzida nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ela gostara tanto da história de Le Guin que acabou comprando a versão física da obra, publicada em 2019, pela Editora Aleph, com tradução de Susana L. de Alexandria. Estando na estante e sem outras obras pendentes, acabei encarando a leitura e confesso que fiquei bastante impressionado.

Resumindo

Em A mão esquerda da escuridão nós acompanhamos a missão política empreitada por Genry Ai, um homem terráqueo, enviado para o planeta Inverno (ou Gethen), a fim de convencer seus “países” e habitantes a entrarem como planeta para o Ekumen, uma espécie de ONU interplanetária. O interesse do Ekumen em Gethen está ligado ao fato de os gethenianos serem parte de uma “humanidade maior”, apesar de o povo de Gethen não parecer ter qualquer interesse em tecnologias espaciais ou nas conquistas do progresso tecnológico, o que coloca o Sr. Ai, um alienígena entre eles, imerso em um jogo complexo de desconfiança e incredulidade.

Atravessando essa trama política está a maior dificuldade encontrada pelo terráqueo: o fator sexual e seus impactos na sociedade e na psique getheniana, ponto que é uma das cerejas do bolo confeitado por Le Guin. Os gethenianos, diferente dos “outros humanos”, de outros planetas, são ambissexuais, ou seja, têm a capacidade de desenvolver os dois órgãos genitais, o que se dá em períodos específicos de reprodução e/ou afeto: o kemmer. Genry Ai, homem da Terra, é um pervertido aos olhos de Gethen, por sempre estar “no cio” – ou no kemmer –, e ninguém no planeta confia nele, a não ser Therem Hart rem ir Estraven, um político getheniano, que, justamente por conta de seu interesse em Genry e no Ekumen, perde todo seu prestígio, sendo colocado diante de diversas armadilhas armadas por seus conterrâneos.

Os dois personagens, que são também os narradores da história, enfrentam uma odisseia política e social, criada por suas próprias escolhas, se vendo obrigados a enfrentar o povo e a cultura de um planeta que ainda passa por uma de suas eras glaciais e que ainda parece querer permanecer isolado.

Luz é a mão esquerda da escuridão
e escuridão, a mão direita da luz.
Dois são um, vida e morte, unidas
como amantes no kemmer,
como mãos entrelaçadas,
como o fim e a jornada.

Inteligência ficcional

Farei meu relatório como se contasse uma história, pois quando criança aprendi, em meu planeta natal, que a Verdade é uma questão de imaginação.

Em conversas com minha companheira, desde o começo de minha leitura, tenho elogiado a construção do universo de A mão esquerda da escuridão; quando as calotas polares derreterem e o mar cobrir a terra, ou quando o sol se apagar de vez, e não existir mais nada, eu vou continuar elogiando esta obra e a imaginação de sua autora. Isso porque é de uma inteligência invejável, e Ursula K. Le Guin consegue dar substância não só ao planeta glacial Inverno em si, como também à experiência e ao choque cultural vivido pelas duas personagens centrais. Nós, de fato, temos uma “percepção de alienígena”, ou no mínimo estrangeira, com relação a Estraven e aos códigos gethenianos, e temos a mesma impressão de Genry Ai, quando é Estraven quem está narrando, já que o terráqueo não é um homem da nossa terra e tão semelhante a nós, mas de uma Terra de alguns bons anos no futuro. A autora não deixa escapar nada e se vale de mitos, lendas, descrições geológicas e temporais, quase que completamente inventadas, para deixar o cenário mais real, mais palpável para o leitor. E diferente do que acontece com algumas obras, em que as descrições vão ficando enfadonhas e longas demais, em A mão esquerda da escuridão eu sempre queria avançar e descobrir mais um pouco sobre Gethen e sua gente. Acho que isso acontece porque os elementos descritivos estão espalhados por uma trama de acontecimentos bastante envolvente, que traz prisão, traição, assassinato, peregrinação e tudo mais.

A questão de gênero

Apesar da maestria com relação à construção do kemmer enquanto fator biológico e cultura local de Gethen, Ursula K. Le Guin acaba caindo em uma armadilha que ela mesma quer desconstruir nesta história: pelo fato de os gethenianos “não terem sexo definido”, todos os personagens que aparecem de forma central na trama apresentam traços tipicamente tratados como masculinos. É um livro de homens, contado por um homem terráqueo. Estes homens que convivem com Genry Ai são, no geral, tratados com pronomes e artigos masculinos, e o narrador sempre associa a eles a força, a racionalidade, a postura política e impositiva, a violência etc. Agora, quando, em algumas cenas, o Sr. Ai vê que algum personagem getheniano demonstra sensibilidade, fraqueza ou impaciência, ele imediatamente o associa ao feminino, reforçando alguns estereótipos que já não fazem sentido para nós, contemporâneos.

O livro de Le Guin saiu em 1969, ou seja, um ano depois do Maio de 68, o que significa que os debates acerca do gênero e da sexualidade ainda viviam uma espécie de germe de pensamento. O fato de ser antigo não invalida, é claro, as discussões levantadas em A mão esquerda da escuridão, principalmente no que diz respeito à relação entre masculinidade e feminilidade como parte de um sistema binário (e machista, em muitos casos), no qual se opõem: masculino e feminino, como positivo e negativo, ativo e passivo, racional e passional, destrutivo e construtivo etc.

“Yes i Say Yes i will yes”

Se não convenci com a resenha, tento agora com um pedido formal: – Leia A mão esquerda da escuridão.

Depois de eu ler uma série de e-livros, foi muito bom pegar um volume físico para ler, e melhor ainda foi encontrar esta obra prima da ficção, escrita por Ursula K. Le Guin, que, posso dizer com total certeza, foi um dos melhores livros que li em 2021. Assim, aos que querem ler uma boa ficção, não só científica, como também um bom livro, no geral, deixo essa indicação (essa EXIGÊNCIA, na verdade): – Leia A mão esquerda da escuridão.

Conto – “O Palácio de Cristal”, de Paulo Bittencourt

Os portões do Palácio de Cristal estavam intactos, mesmo seus arredores estando completamente arruinados. Apesar de os escombros dificultarem a chegada até os arcos metálicos que circundavam a entrada, o fenômeno era misterioso de uma maneira tal que se me apresentava irresistível em seu convite. Com um pouco de esforço e levado pela curiosidade, cheguei frente à aldraba — um condor esculpido em prata, encardida pela poeira circundante e pelo efeito do tempo, cuja argola pendia do bico como uma presa inevitável.

Adentrei, e a impressão foi atravessar logo a barreira do tempo alguns séculos atrás. A disparidade era visível: o local estava impecavelmente limpo, o que ressaltou ainda mais o contraste com o lado de fora, que agora se apresentava para mim como um local longínquo, mesmo estando ainda há poucos metros da entrada já fechada. Mas para além mesmo da notável diferença nas condições do local, adentrá-lo reservou a meu corpo uma mudança súbita de estado — antes, o escuro tomava conta, e a criança chorava toda sua angústia em desespero, imprimindo sobre o escândalo sua energia; agora, o calor do peito da mãe acalentava, e é como se nada mais existisse nos arredores e a escuridão nunca houvera existido. Dentre as várias portas à minha vista, apenas uma delas estava entreaberta, e de lá emanava um parco feixe de luz capaz de iluminar parcialmente o trajeto até o local.

Mesmo com o coração em ritmo acelerado, estranhamente à medida que me aproximava daquele cômodo, aumentava em mim o sentimento de segurança. Não houve sequer hesitação ao lançar impávido a mão sobre a maçaneta e lentamente abrir a pesada porta de madeira ornada em metal ondulado, simulando colunas jônicas, ao melhor estilo neoclássico. Lá se viam duas poltronas de couro marrom separadas por uma pequena mesa de centro, à altura dos braços, em cuja superfície fixava-se um candelabro com espaço para até cinco velas de tamanho médio, apesar de apenas três estarem lá fixadas e uma acesa, tornando o ambiente mal iluminado, mas suficientemente visível aos olhos.

À cadeira esquerda assentava-se um homem de feição apagada, à sombra de seu chapéu estilo fedora, de abas curtas e levemente curvadas à esquerda, que impedia a luz da vela de fazer claros os contornos de seu rosto. Nenhum centímetro de pele ficava à vista: o fraque e as luvas, as calças e o sapato, cobriam finamente o corpo bem ajustado e de pernas cruzadas do silencioso sujeito. Sentei-me na poltrona à sua esquerda com a perna arqueada e levemente irrequieta. A cena era convidativa à conversa, pois me pus a falar, rompendo primeiro a barreira do silêncio:

“Atlas Turned to Stone” – Edward Burne-Jones (1878)

— O senhor aparentemente está no mais pleno conforto aqui, em seu isolamento, cercado pela estrutura intocável deste palácio… Confesso que ao adentrar seu recinto, um inédito sentimento de segurança se apossou de meu corpo e, sem hesitar ou sequer me preocupar com qualquer formalidade de etiqueta, cá me apresento ao seu lado. Diga-me, como posso chamar-lhe? A quem devo prestar meu mais sincero respeito? — Procurei dirigir as palavras com serenidade e num tom algo grave, demonstrando ao mesmo tempo seriedade e empatia, para não causar nenhum tipo de constrangimento ao ambiente tão pacífico que construíra o homem.

Silêncio absoluto. A sombra tampava perfeitamente a feição deste estático senhor, o que tornava sua presença algo espectral.

— Sei que aqui, sentado ao seu lado, nada mais para mim se parece necessário. Você está absolutamente cercado da mais bela salvaguarda. Absteve-se da vulnerabilidade atormentadora do exterior, que agora encontra-se em ruínas. As espessas paredes de vidro que o separam daquele universo sequer sofreram um arranhão, e a calma rígida deste quarto, do seu corpo em estrutura formosíssima, seduzem-me à semelhança de uma torre de marfim, dentro da qual não há a menor exposição às intempéries daquele caos. O senhor me desperta uma aura de tão cristalina serenidade; mesmo o caráter lúgubre deste cômodo interior, em contraste à arquitetura translúcida do palácio, sequer traduz a impressão de qualquer solidão. Creio que este é um dos motivos que me levaram à desinibição de assentar-me aqui, ao seu lado. — Esta fala respeitosa com o mesmo tom da anterior, ao mesmo tempo suscitava um possível diálogo sobre aquela condição tão perfeita ao passo que pretendi de forma tangente um certo pedido de desculpas por minha entrada abrupta e desavisada.

Novamente nenhuma reação ou som procedeu de minha tentativa de estabelecer a comunicação. Cruzei as pernas de forma bastante similar àquele senhor, e mesmo na situação de silêncio um tanto quanto constrangedora a olhos alheios, meu corpo ainda se sentia plenamente seguro diante daquela figura, sem nenhuma vontade de levantar-me e sair.

— Sabe… O senhor é que está certo. Não há razão para se aventurar naquela selvageria. O mundo nunca se mostra da maneira como esperamos. De forma geral, há sempre um receio oculto das mais imprevisíveis surpresas. Por mais que por vezes avistemos belas flores a desabrocharem, virginais, à sorte das florestas, as rédeas nunca parecem corresponder aos nossos comandos, e o trote ligeiro imprime uma passagem invencível. Se junto àquela flor deixo minha alma, jamais a recobro; sigo com o corpo fechado, em estado de vertigem.

Senti aquelas finas camadas da mais perfeita segurança se sedimentando lentamente e transformando-se, de súbito, num tremor em minha mão direita, que repousava até então no braço de couro da poltrona. O estranhamento se me apossou ao perceber que esse mesmo tremor que agora tomava conta do meu corpo também assolava o fino senhor ao meu lado. Era como se a longa exposição àquele colo de mãe perdesse seu calor pelo costume banal, e fosse necessário agora negá-lo friamente, somente assim tornando-se possível a avaliação da perda. Impetuosamente dirigi àquele sujeito minha mão, que nervosa e flácida se aproximava da sua. O toque frio rapidamente desfez à minha frente sua imagem, e o espelho que nos separava estilhaçou-se. O fraque e o chapéu, as calças e o sapato, vestiam-me perfeitamente, como se feitos sob medida. O último suspiro da vela não me permitiu identificar a forma do meu próprio rosto. Agora a escuridão toma conta deste Palácio de Cristal, intransponível.


Devaneios de um viajante solitário

Em tempos de isolamento, a conexão pela palavra é a potência. Crônicas, poemas e contos com os quais se possa identificar e a partir dos quais se possa refletir, parar tirar de si aquilo que há de latente e encarar de frente, nunca mais desistir. Vamos juntos pelas ruas tortas desse mundo, de mãos dadas.

Resenha – “A vegetariana”, de Han Kang

Para colher dos outros frutos

Desde 2018, quando decidi morar com minha companheira e noiva, estou em contato (imerso, eu diria) com o discurso vegetariano/vegano e também com os hábitos que o compõem. Talvez tenha sido daí que surgiu o interesse em ler o livro da sul-coreana Han Kang: A vegetariana, publicado pela editora Todavia, em 2020, que, desde o título, parece tocar na questão dos direitos dos animais.

Mas, ao contrário do que sugere esse título, não se trata de uma narrativa que tem como centro do debate a animalidade e o vegetarianismo, e ao invés de colher pêssegos no pessegueiro de Han Kang, colhi algumas maçãs. Esse é um ponto que me causou, ao mesmo tempo, certa decepção e certa alegria durante a leitura, e espero que, nessa resenha, eu consiga esclarecer o porquê.

Trama

A vegetariana conta a história, mas principalmente o enigma, das consecutivas decisões da personagem Yeonghye: uma artista gráfica que – aos olhos do marido Cheong e de seus familiares – é completamente normal, mediana e, de certa maneira, cumpridora de suas obrigações.

Tudo começa com a narração de Cheong, revelando que a esposa, depois de ter um sonho, decide se tornar vegetariana/vegana, repudiando qualquer coisa que esteja relacionada à exploração animal, da carne aos sapatos de couro. A decisão dela se transforma em um empecilho para a dinâmica familiar que tanto agradava o marido, e seus desdobramentos são um crescente que move a narrativa e se desdobra em novos capítulos.

No livro, teremos três deslocamentos de narrador, passando primeiro pelo marido, depois pelo cunhado de Yeonghye e finalmente por sua irmã mais velha. Cada um dos três precisa lidar com o mistério da personagem central, que, assim como o Bartleby, de Herman Melville, entra em um processo contínuo de recusas absurdas: não comer, não se lavar, não se vestir, não falar (e não viver, talvez?).

Pêssegos e maçãs

Han Kang não fez um romance amador ou de primeira viagem: A vegetariana é, na verdade, afiadíssimo, tanto na construção de paralelos cênicos internos, bem como na brincadeira com as vozes narrativas, que, ainda que próximas, nunca alcançam ou entendem as intenções da personagem central da trama. Além disso, a áspera crítica a uma política ditatorial contra o corpo e contra o indivíduo, procurando encontrar uma outra relação consigo e com o outro, não perde de vista a força literária e evita, na maior parte do tempo, o didatismo e a auto explicação tão comuns em romances contemporâneos.

Agora, um ponto que também acho importante comentar é a maneira como se articulam no texto, intencionalmente ou não, o carnismo e o machismo (bem como outras formas de violência). Ainda que não apareça como ponto central, a barbaridade humana contra os animais aparece no livro como um sinédoque da relação que um “homem normal” – como se auto intitulam Cheong e o pai de Yeonghye – estabelece com uma mulher, uma vegetariana. Mas também poderia ser com um estrangeiro, com um negro, um gay etc. O que quero dizer é Han Kang acaba demonstrando que sempre haverá, segundo nossa cultura excessivamente capitalista, um descompasso que resulta em violência contra o que é diferente, ainda que ela seja insistentemente mascarada.

Frutas podres

A primeira impressão que tive do livro foi extremamente negativa e me sinto até um pouco estranho já que, agora, mal consigo pensar em algo de que não gostei na trama e no estilo da autora. Acho que, fora minha decepção momentânea com o fato de o vegetarianismo não estar no centro do debate, apenas o terceiro capítulo (“Árvores em chamas”) me causou uma má impressão, já que, nele, frequentemente, as metáforas são explicadas e desmontadas pelo narrador e pelos olhos da irmã de Yeonghye.

Fora esse fruto estranho e um tanto azedo para meu paladar, não colhi nada que não fossem boas maçãs do pessegueiro plantado por Han Kang. Talvez fosse o caso de subir outra vez à escada e retomar a obra, à procura de outros frutos, mesmo daqueles que contêm as larvas, quase invisíveis, por baixo da casca.

semear

É sempre muito bom poder ler um livro que sai do nosso ciclo tradicional, da cultura ocidental/acidental, para enveredar rumo a essas literaturas diferentes e, diga-se de passagem, de muita qualidade. A vegetariana é, com toda certeza, uma das melhores obras que li neste ano de 2021, e me deixou motivado a procurar outros textos de Han Kang e de seus conterrâneos.

Aos que querem ler uma obra pequena, mas poderosa e impressionante, e aos que têm curiosidade pelo fato de se tratar de um texto para lá de estrangeiro: cedeis à vossa curiosidade. A leitura, se não indispensável em tempos como os nossos, é extremamente frutífera. Acredito que não haverá arrependimentos.

Resenha – “O exército de um homem só”, de Moacyr Scliar

Um delírio, uma realidade

Confesso que meu interesse pela obra O exército de um homem só (1974), de Moacyr Scliar, surgiu por conta da canção homônima, presente no álbum O papa é pop (1990), da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii. Sendo um dos meus discos favoritos dessa banda, fui logo convidado à leitura com altas expectativas quanto ao conteúdo do livro, como se o compositor e vocalista, Humberto Gessinger, estivesse dialogando diretamente com a obra do escritor judeu, radicado em Porto Alegre, em suas composições.

Ao fim da leitura, consegui estabelecer de fato algumas relações entre canções e texto, mas são pontos que não vão muito longe e que talvez merecessem um texto mais longo e demorado. De qualquer modo, aos que não conhecem, deixo abaixo a música do(s) Engenheiros do Hawaii.

https://durasletras.com/wp-content/uploads/2022/07/01.-o-exercito-de-um-homem-so.mp3
Primeira faixa do álbum O papa é pop (1990) – Engenheiros do Hawaii

Resumo

Na história, acompanhamos alguns dos anos de vida de Mayer Guinzburg, um judeu de origem russa, excêntrico, que, vivendo no bairro do Bom Fim, em Porto Alegre, pretende criar “uma nova sociedade”, a Nova Birobidjan: uma comuna judaico-comunista em terras brasileiras e que é inspirada na Birobidjan russa, terra de judeus do antigo país soviético.

Tendo por parâmetro o socialismo de Stalin, mas tomando atitudes grotescas e muitas vezes antipopulares, nós assistimos Mayer fracassar diversas vezes, passeando entre ascensões econômicas e falências abruptas, alucinações e confrontos verdadeiros com as autoridades locais, a família, as amantes e os amigos.

O livro começa e termina no ano de 1970, com a suposta internação e morte do “Capitão Birobidjan”, apelido pelo qual Mayer é conhecido.

Bônus

Trata-se de um livro curto e muito dinâmico, ou seja, a leitura avança com velocidade e os problemas vencidos pelo personagem central vão rapidamente dando lugar a novos problemas e renovando nosso interesse pela narrativa. Além disso, é incrível estar em contato com aspectos da cultura judaica, tão presente no país, mas desconhecida por muitos. Por fim, acho interessantíssima a forma narrativa escolhida por Scliar, construída a partir de fragmentos intertextuais e múltiplos narradores, compondo, de fato, um exército de um homem só.

Ônus

Mas não são só flores esse exército! O aspecto fragmentário e as inúmeras maluquices do Capitão Birobidjan deixam algumas partes da obra muito confusas, exigindo que o leitor retome o fio da meada páginas atrás, sem saber quem está falando ou sobre o quê, ou que aceite a confusão toda da personagem e da forma narrativa. Existem também alguns trechos tediosamente longos dentro das alucinações de Guinzburg, que muitas vezes me pareceu um personagem antipático e insensível.

Comentário Final

Foi a primeira obra de Moacyr Scliar lida por mim e, em linhas gerais, eu gostei bastante. Como não tinha grandes expectativas quanto ao que encontraria em termos especificamente literários, já que minha leitura estava guiada pela canção do Engenheiros do Hawaii, topar com um estilo tão “pós-moderno” e com uma literatura de cultura judaico-brasileira foi gratificante. Aos que não sentem muita dificuldade com textos fragmentários, e que ao mesmo tempo se interessam por questões históricas ligadas ao socialismo e pela história de uma parcela do povo judeu no Brasil, recomendo fortemente a leitura de O exército de um homem só.

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